AS 95 TESES DE LUTERO COMENTADAS [PARTE 1]: I ao XIX


Categoria: As 95 Teses de Lutero Comentadas
Imagem: Martinho Lutero pregando suas 95 teses na porta da Igreja de Wittenberg - The Gospel Coalition
Publicado: 07 de Novembro de 2021, Domingo, 14h26

Palavras de Martinho Lutero.

Protestação
Como este é um debate teológico, repetirei aqui, mais uma vez, a protestação habitual nas escolas, para pacificar os ânimos que porventura tenham se ofendido com o simples texto de debate.

Em primeiro lugar, protesto que absolutamente nada quero dizer ou sustentar senão o que é e pode ser sustentado primeiramente nas Sagradas Escrituras e a partir delas, depois em a partir dos pais da Igreja aceitos e até agora conservados pela Igreja Romana, e, por fim, a partir dos cânones e das decretais pontifícias. Se alguma coisa não pode ser aprovada ou desaprovada a partir deles, mantê-la-ei apenas por causa do debate, segundo o juízo da razão e a experiência; nestas coisas, porém, fica sempre ressalvada a decisão de todos os meus superiores.

Uma coisa acrescento e reivindico para mim conforme o direito da liberdade cristã: quero refutar ou aceitar, segundo meu arbítrio, as opiniões do B. Tomás, do B. Boaventura ou de outros escolásticos ou canonistas que sejam meramente propostas, sem texto e sem prova. Farei isto de acordo com o conselho de Paulo: “Julgai todas as coisas, retende o que é bom.” (1 Ts 5.21). No entanto, conheço a opinião de alguns tomistas que querem que o B. Tomás seja aprovado pela Igreja em todas as coisas. É suficientemente sabido quanto vale a autoridade do B. Tomás. Creio que por meio desta minha protestação fica suficientemente claro que por certo posso errar, mas que não sou um herege, por mais que rujam e se desfaçam de raiva aqueles que pensam ou desejam outra coisa.


TESE I
Ao dizer: “Fazei Penitência”, etc. [Mt 4.17], nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos fiéis fosse penitência.


Afirmo esta tese e dela em nada duvido.
Contudo, demonstro-a por causa dos incultos: em primeiro lugar, a partir do próprio termo grego metanoite, isto é, fazei penitência, o que pode ser traduzido de maneira extremamente exata por transmentamini, isto é, “tomai outra mente e maneira de pensar e sentir, recobrai os sentidos, fazei uma transição da mente e uma passagem do espírito”, de modo que vós, que até aqui compreendestes as coisas terrenas, agora compreendais as celestiais. É o que o apóstolo diz em Rm 12.2: “Renovai-vos pela novidade de vossa mente”. Através dessa recuperação dos sentidos acontece que o prevaricador cai em si e odeia seu pecado. Certo é, porém, que essa recuperação dos sentidos ou ódio de si mesmo deve acontecer durante a vida toda, conforme aquela passagem: “Quem odeia a sua vida neste mundo preservá-la-á para a vida eterna” (Jo 12.15). E de novo: “Quem não toma a sua cruz e me segue não é digno de mim” (Mt 10.38). E no mesmo lugar: “Não vim para enviar paz, mas a espada.” (Mt 10.34). Mt 5.4: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados”. E Paulo, em Rm 6 e 8, bem como em muitos outros lugares, ordena mortificar a carne e os membros que estão sobre a terra. Em Gl 5.24 ensina que se crucifique a carne com suas concupiscências. Em 2 Co 6.4,5 ele diz: “Mostremos a nós mesmos em muita paciência, em muitos jejuns”, etc. Exponho isso extensamente, como se lidasse com pessoas que não conhecem nossa posição.

Por isso demonstro a mesma tese também pela razão. Porque Cristo é o mestre do espírito, não da letra, e suas palavras são vida e espírito, é necessário que ele ensine uma penitência que seja feita em espírito e em verdade, não uma penitência que possa ser feita exteriormente pelos mais soberbos hipócritas, desfigurando o rosto em jejuns, orando nos cantos e dando esmolas com trombetas. Digo que é preciso que Cristo ensine uma penitência que possa ser feita em toda espécie de vida – que o rei em sua púrpura, o sacerdote em sua pureza e os príncipes em sua dignidade possam fazer não menos do que o monge em seus ritos e o mendigo em sua pobreza, assim como fizeram Daniel e seus companheiros em meio à Babilônia. Pois a doutrina de Cristo deve convir a todos os seres humanos, isto é, de todas as condições.

Em terceiro lugar, por toda a vida oramos e devemos orar: “Perdoa-nos as nossas dívidas” (Mt 6.12). Logo, durante toda a vida fazemos penitência e desagradamos a nós mesmos, a não ser que alguém seja tão tolo, que creia que deve fazer de conta que ora pela remissão das dívidas. Pois as dívidas pelas quais nos é ordenado orar são verdadeiras e não devem ser menosprezadas; mesmo que sejam veniais, não podemos ser salvos se não tiverem sido perdoadas.


TESE II
Esta expressão não pode ser entendida no sentido da Penitência sacramental (da confissão e satisfação celebrada pelo ministério dos sacerdotes).


Afirmo e demonstro também esta tese:

  1. Em primeiro lugar, porque a Penitência sacramental é temporal e não pode ser feita a todo momento. Do contrário, dever-se-ia falar incessantemente com o sacerdote e não fazer qualquer outra coisa exceto confessar os pecados e cumprir a satisfação imposta. Por isso ela não pode ser aquela cruz que Cristo manda tomar sobre si, nem é a mortificação das paixões da carne.
  2. A Penitência sacramental é apenas externa e tem a interna como pré-requisito, sem a qual nada vale. Ora, esta é interna e pode existir sem a sacramental.
  3. A Penitência sacramental pode ser fingida; esta só pode ser verdadeira e sincera. Se não fosse sincera, seria uma penitência de hipócritas, não a que Cristo ensina.
  4. A respeito da Penitência sacramental não se tem um mandamento de Cristo. Ela foi estatuida pelos pontífices e pela Igreja (pelo menos no que diz respeito à sua terceira parte, ou seja, à satisfação). Por esta razão, também pode ser mudada segundo o arbítrio da Igreja. Mas a penitência evangélica é lei divina, não podendo ser mudada nunca, pois é aquele sacrifício perpétuo chamado um coração contrito e humilhado.
  5. Cabe aqui a observação de que os mestres escolásticos são unânimes em distinguir a penitência como virtude da Penitência sacramental, considerando a penitência como virtude como matéria ou objeto do Sacramento da Penitência.

TESE III
No entanto, ela não se refere apenas a uma penitência interior; sim, a penitência interior seria nula se, externamente, não produzisse toda sorte de mortificação da carne.


Afirmo e demonstro também esta tese:

  1. Em Rm 12.1 o apóstolo ordena que ofereçamos nossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus. Em seguida, expõe clara e amplamente como isso deve ser feito, ao ensinar que pensemos com humildade, sirvamos e amemos uns aos outros, perseveremos na oração, sejamos pacientes, etc. Como ele também diz em 2 Co 6.4,5: “Mostremos a nós mesmos em muita paciência, em jejuns e vigílias”, etc. Porém também Cristo ensina, em Mt 5 e 6, a jejuar, orar, dar esmolas corretamente. Do mesmo modo, em outro lugar: “O que resta, dai como esmola, e eis que tudo vos será limpo.” [Lc 11.41]

Daí se segue que, por serem preceito de Cristo, aquelas três partes da satisfação – jejum, oração e esmola – não pertencem à Penitência sacramental no que diz respeito à substância das ações. Pertencem a ela no que diz respeito ao modo e tempo determinado segundo o qual a Igreja as ordenou, a saber, quanto tempo se deve orar, jejuar, dar, do mesmo modo quanto e o que se deve orar, quanto e o que não se deve comer e quanto e o que se deve dar. Contudo, na medida em que pertencem à penitência evangélica, o jejum compreende todos os castigos da carne, sem escolha de alimentos e sem diferença de roupas; a oração, todo exercício da alma: meditar, ler, ouvir, orar; a esmola, todo obséquio para com o próximo. Assim, pelo jejum [a pessoa] serve a si mesma; pela oração, a Deus; e pela esmola, ao próximo. Pelo primeiro, ela vence a concupiscência da carne e vive sóbria e castamente; pela segunda, vence a soberba da vida e vive piedosamente; pela terceira, vence a concupiscência dos olhos e vive de maneira justa neste mundo. Por isso, todas as mortificações que a pessoa compungida se impõe – sejam elas vigilias, trabalhos, privações, estudos, orações, evitar o sexo e os prazeres – pertencem à penitência interior como seus frutos, na medida em que promovem o espírito.

  1. Assim agiu o Senhor mesmo, e com ele todos os seus santos. Assim, finalmente, ele ordenou: “Que a vossa luz brilhe diante dos seres humanos, para que vejam nossas boas obras.” [Mt 5.16] Pois sem dúvida as boas obras são, exteriormente, frutos da penitência e do Espírito, já que o Espírito não faz nenhum som senão o da rola, isto é, o gemido do coração, a raiz das boas obras.

[…]

Cristo é, sem dúvida, um legislador divino, e sua doutrina, direito divino, isto é, um direito que nenhum poder pode mudar ou do qual pode dispensar. Mas se a penitência ensinada por Cristo nessa passagem [Mt 4.17] significa a Penitência sacramental, isto é, a satisfação, e se a esta o papa pode mudar e, de fato, muda conforme seu arbítrio, então ou o papa tem em seu poder o direito divino, ou ele é o mais ímpio adversário de seu Deus, anulando o mandamento de Deus. Se ousam afirmar isso aqueles que se gloriam de debater para o louvor de Deus, e para a defesa da fé católica, e para a honra da santa Sé Apostólica, e para a revelação da verdade, e para a supressão dos erros; por fim, se é assim que honram a Igreja e defendem a fé os que querem ser vistos como inquisidores da depravação herética […] o que, pergunto, sobra para os mais loucos hereges, com que também eles possam blasfemar e incriminar o papa e a Sé Apostólica? A tais pessoas eu não chamaria publicamente de inquisidores, mas de enxertadores da depravação herética. […]


TESE IV
Por conseqüência, a pena perdura enquanto persiste o ódio de si mesmo (isto é a verdadeira penitência interior), ou seja, até a entrada no reino dos céus.


Afirmo e demonstro também esta tese:

  1. Ela se segue como conseqüências segura, qual corolário, do que foi dito. Pois se toda a vida é uma penitência e uma cruz de Cristo, não só nas aflições voluntárias, mas também nas tentações por parte do diabo, do mundo e da carne, sim, também nas perseguições e nos sofrimentos, como se evidencia a partir do que foi dito, de toda a Escritura, do exemplo do próprio santo dos santos e de todos os mártires, é certo que essa cruz dura até a morte e, assim, até a entrada no reino.
  2. Isso é evidente também em outros santos. Santo Agostinho fez com que lhe fossem copiados os sete salmos penitenciais e os orava e meditava com lágrimas, dizendo que mesmo que algum bispo tivesse vivido de maneira justa, não deveria partir deste mundo sem penitência. Assim clamou também o B. Bernardo, quando agonizante: “Vivi de maneira infame, porque desperdicei o tempo. Nada tenho senão que sei que tu, Deus, não desprezarás um coração contrito e humilhado.”
  3. Por meio da razão: essa cruz da penitência deve durar até que, segundo o apóstolo, seja destruído o corpo do pecado, pereça a velhice do primeiro Adão juntamente com sua imagem, e o novo Adão seja tornado perfeito à imagem de Deus. O pecado, porém, permanece até a morte, embora diminua a cada dia pela renovação diária da mente.
  4. Pelo menos o castigo da morte permanece em todos, bem como o temor da morte, que certamente é o maior dos castigos e, em muitos, mais penosos do que a própria morte, para não falar do medo do juízo e do inferno, do terror da consciência, etc.

TESE V
O papa não quer nem pode dispensar de quaisquer penas senão daquelas que impôs por decisão própria ou dos cânones.


Esta tese eu debato e peço humildemente que me instruam. E assim como roguei no prefácio, da mesma forma rogo ainda agora: quem puder, que me estenda a mão e atente para meus motivos.

  1. Em primeiro lugar, vamos reunir as espécies de penas que os crentes podem sofrer:

A primeira é a pena eterna, o inferno dos condenados, que não tem nada a ver com o assunto em pauta. Pois é certo que, como sustentam todos em toda a igreja, este castigo não está no poder nem do maior nem do menor dos pontífices. Esta pena só Deus remite pelo perdão da culpa.

A segunda pena é a do purgatório, a respeito da qual veremos mais abaixo na tese que dela trata; entrementes, pressupomos que ela não está no poder do pontífice ou de qualquer ser humano.

A terceira pena é a pena voluntária e evangélica. Quanto a ela, dissemos acima que é realizada pela penitência espiritual, segundo aquela palavra de 1 Co 11.31: “Se nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados pelo Senhor.” Ela é aquela cruz e mortificação das paixões mencionada acima na tese 3. Ora, como esta pena é ordenada por Cristo, pertence à essência da penitência espiritual e é inteiramente necessária para a salvação, de forma nenhuma está no poder de qualquer sacerdote aumentá-la ou diminuí-la. Pois ela não depende do arbítrio de um ser humano, mas da graça e do Espírito. Sim, esta pena está nas mãos do papa menos do que o estão todas as outras penas, como quer que se chamem. Mesmo que possa anular junto a Deus, pelo menos através de oração, a pena eterna, purgatória, aflitiva, assim como pode obter a graça justificante para o pecador – esta pena, no entanto, ele não pode anular, nem mesmo através de oração. Deve, antes, obtê-la para o pecador e impô-la, isto é, anunciá-la como imposta, não menos que [lhe] obtém a graça. Do contrário, esvaziaria a cruz de Cristo, e uniria o resto dos cananeus com seus próprios filhos e filhas, e não mataria os inimigos de Deus, ou seja, os pecados, até o extermínio; a não ser que visse que algumas pessoas, com fervor excessivo, se afligem mais do que é conveniente para sua salvação e para a necessidade dos outros. Neste caso, deve não só perdoar, mas também proibir, assim como São Paulo diz a Timóteo: “Não mais bebas água”, etc. [1 Tm 5.23].

A quarta pena é castigadora e uma flagelação da parte de Deus, da qual [diz] Sl 89.31s.: “Mas se seus filhos pecarem e não guardarem minha lei, visitarei suas iniqüidades com a vara e seus pecados com açoites de seres humanos.” Quem duvida que essa pena não esteja nas mãos dos pontífices? Pois Jr 49.12 diz que ele a impõe a inocentes: “eis que os que não estavam condenados a beber o cálice o beberão, e tu sobrarias como que inocente? Não serás inocente, mas o beberás.”. E do mesmo profeta: “Eis que na cidade em que meu nome é invocado eu começo a afligir; e vós sereis como que inocentes? Não sereis inocentes.” (Jr 25.29). Donde [diz] o B. Pedro em 1 Pe 4.17: “Agora é tempo de começar o júizo pela casa de Deus; se o primeiro por nós, qual será o fim daqueles que não crêem no Evangelho?” Ap 3.19: “Eu castigo a quem amo.” E Hb 12.6: “Ora, ele açoita todo filho a quem recebe.” Se o sumo pontífice quisesse remitir esta pena ou se o pecador cresse que ela é remitida, certamente aconteceria que resultariam [filhos] adulterinos e espúrios, como [diz] Hb 12.8: “Se estais sem disciplina, de que todos foram feitos participantes, logo sois bastardos, e não filhos.” Pois João Batista e os maiores santos sofreram esta pena.

[…]

A quinta é a pena canônica, isto é, estabelecida pela Igreja. Não há dúvida de que ela está de pleno direito nas mãos do sumo pontífice, porém assim que (como dizem) haja uma justa razão para sua remissão e a chave não erre. Eu, contudo (em minha temeridade), não compreenderia essa justa razão tão rigidamente como muitos soem fazer. Pois a piedosa vontade do pontífice parece ser suficiente, e esta deveria ser uma razão suficientemente justa. Também não vejo como, nessa remissão, poderia acontecer um erro da chave, ou, se acontecer, em que ele haveria de prejudicar, já que a alma é salva, mesmo que, por um erro, tais penas não fosse remitidas.

[…]

A sexta pena – que quero imaginar até ser instruido de outra maneira – é aquele que eles dizem ser exigida segundo a justiça divina, para satisfazer a justiça divina. Esta pena, entretanto – se é diferente da terceira e da quinta (como é necessário que seja, se deve ser a sexta) -, não pode ser sequer imaginada exceto no sentido de que seria imposta – a saber, mais oração, jejum, esmolas – onde a terceira e a quinta não fossem suficientes. Assim, ela diferiria da quinta ou da terceira somente pelo grau de intensidade. Ela não pode significar a pena civil, pois esta (como eu disse) ele não remite; de outro modo, as cartas de indulgências aboliriam todos os patíbulos e locais de tortura e execução pela Igreja. Mas ela também não pode significar a pena canônica de fato imposta através da sentença de um tribunal de causas litigiosas, pois, como a experiência evidencia suficientemente, ele não remite excomunhões, interditos ou quaisquer censuras eclesiásticas já infligidas. Resta, portanto, a pena que eu disse que vou apenas imaginar. Contudo, estou persuadido de que tal pena é inexistente: em primeiro lugar, porque por afirmação nenhuma da Escritura, dos mestres, dos cânones nem por um argumento racional plausível se pode ensinar que existe uma pena dessas; e é muito absurdo ensinar qualquer coisa na Igreja que não possa ser fundamentada nem na Escritura, nem nos mestres, nem nos cânones, nem ao menos através de argumentos racionais. Em segundo lugar, porque, mesmo que houvesse uma pena dessas, ela não pertenceria à remissão do papa, já que é voluntária e imposta para além dos cânones; aliás, ela não é imposta, e sim assumida por vontade própria, pois é diferente das penas que são impostas, como foi dito acima no contexto da quinta pena.

  1. Em segundo lugar, demonstro a tese da seguinte maneira: aqueles dois poderes – o de ligar e o de desligar – são iguais e se referem à mesma matéria. No entanto, o sumo pontífice não tem [poder] para ligar e impor nenhuma pena exceto a canônica ou quinta; logo, também não pode desligar e anular alguma [outra]. Ou então teria que se dizer que esses dois poderes são de extensão desigual. Se diz isto, ninguém é obrigado a crer, pois não é provado por quaisquer passagens da Escritura nem por quaisquer cânones, ao passo que é claro o texto em que Cristo concedeu [o poder de] ligar sobre a terra e [o de] desligar sobre a terra, medindo e estendendo ambos os poderes de igual modo.
  2. A extravagante de pe. et re. li. V. c. Quod autem diz expressamente que as remissões não têm validade para quem não as receber de seu juiz, visto que ninguém pode ser ligado ou desligado por alguém que não seja seu juiz. Certo é, porém, que o ser humano não está sob a jurisdição do papa nas penas da primeira, segunda, terceira, quarta e sexta espécies, mas apenas na quinta, como é claramente evidente e como ficará mais evidente abaixo.

[…]


TESE VI
O papa não pode remitir culpa alguma senão declarando e confirmando que ela foi perdoada por Deus, ou, sem dúvida, remitindo-a nos casos reservados para si; se estes forem desprezados, a culpa permanecerá por inteiro.


A primeira parte é tão evidente, que alguns até confessaram que é uma maneira de falar imprópria quando [se diz que] o papa dá remissão da culpa. Outros, porém, confessam não entender. Pois todos confessam que a culpa é perdoada unicamente por Deus, conforme Is 43.25: “Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas iniqüidades por amor de mim, e dos teus pecados não me lembrarei.” E Jo 1.29: “Eis o cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo.” E Sl 129[130].3s: “Se observares, Senhor, iniqüidades, quem, Senhor, subsistirá? Pois contigo está a propiciação.” E mais abaixo: “Junto ao Senhor há misericórdia, junto a ele, copiosa redenção. É ele quem redime Israel de todas as suas iniqüidades.” (Sl 130.7s). E Sl 50[51].10: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro”, etc. E, em tantas obras contra os donatistas, o B. Agostinho outra coisa não diz senão que os pecados são perdoados somente por Deus.

A segunda parte é igualmente muito clara, pois a quem desprezasse os casos reservados certamente não seria remitida nenhuma culpa. “Quem vos desdenhar”, diz ele, “a mim me desdenha.” [Lc 10.16] Sim, ninguém retorna de Deus com a culpa perdoada se não leva consigo, ao mesmo tempo, reverência para com as chaves.

Uma vez que esta tese é admitida por todos como verdadeira, não é necessário que ela seja reforçada por minha afirmação. Não obstante, indicarei aqui o que me preocupa e, mais uma vez, confessarei minha ignorância, se alguém se dignar a me instruir e elucidar essa questão com maior clareza. Em primeiro lugar, quanto à primeira parte, parece que essa maneira de falar ou opinião é imprópria e incompatível com o texto do evangelho, já que se diz que o sumo pontífice desliga, isto é, declara desligada a culpa ou confirma. Pois o texto não diz: “Tudo o que eu desligar nos céus tu desligarás na terra”, mas, pelo contrário: “Tudo o que desligares na terra eu desligarei, ou será desligado, nos céus”, onde o sentido é mais de que Deus confirma o desligamento do sacerdote do que vice-versa. Em segundo lugar, em relação à segunda parte, é certo que os casos que o papa desliga são desligados também por Deus, e que ninguém pode se reconciliar com Deus se não reconciliar primeiramente, pelo menos em desejo, com a Igreja. Também é certo que a ofensa a Deus não é removida enquanto permanecer a ofensa à Igreja. Mas é de se perguntar se alguém, tão logo esteja reconciliado com a Igreja, também está reconciliado com Deus. O texto sem dúvida diz que tudo o que está desligado na Igreja estará desligado também no céu, porém não parece seguir-se daí que, por este motivo, pura e simplesmente tudo estará desligado no céu, mas unicamente aquilo que está desligado na Igreja. Em minha opinião, essas duas perguntas não são de pouca importância; quanto a elas, talvez vou expor minha opinião mais amplamente na tese seguinte.


TESE VII
Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao sacerdote, seu vigário.


Afirmo esta tese. Ela não necessita de debate ou de demonstração, já que é aprovada por tão grande consenso de todos. Todavia, ainda me preocupo com sua compreensão. E vou expor minha maneira de pensar primeiramente como um tolo. Pois esta tese, juntamente com a precedente, afirma que Deus não perdoa a culpa a não ser que haja anteriormente uma remissão por parte do sacerdote, pelo menos em desejo, como diz o texto com clareza: “Tudo o que ligares”, etc. [Mt 16.19]. E Mt 5.24: “Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e então, voltando, faze a tua oferta.” E esta passagem: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” [Mt 22.21]. E na oração do Senhor: “Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como também nós perdoamos aos nossos devedores.” [Mt 6.12] Em todas estas passagens é dado a entender que a remissão na terra é anunciada antes que [acontece] a remissão nos céus. Pergunta-se, com razão, como isso pode acontecer antes da infusão da graça, isto é, antes da remissão de Deus, pois, sem que a graça de Deus tenha perdoado primeiramente a culpa, o ser humano não pode ter sequer o desejo de buscar a remissão. Quanto a isso, assim digo e compreendo: quando Deus começa a justificar o ser humano, ele o condena primeiro; ele destrói a quem quer edificar, fere a quem quer curar, mata a quem quer vivificar, como diz em 1 Rs 2 e Dt 32.39: “Eu mato e vivifico”, etc. Ora, ele faz isso quando abate o ser humano e o humilha e assusta no conhecimento de si mesmo e de seus pecados, para que diga, como mísero pecador: “Não há paz nos meus ossos por causa dos meus pecados; não há saúde em minha carne por causa de tua ira.” [Sl 38.3]. Pois assim os montes se desvanecem perante o Senhor. “Assim ele envia suas setas e os conturba; pela tua repreensão, Senhor, e pelo sopro do espírito da tua ira.” [Sl 18.14s]. Assim os pecadores são voltados para o inferno, e sua face se enche de ignomínia. Essa conturbação e agitação foi experimentada freqüentemente por Davi, que a confessa com muitos gemidos em diversos salmos. Contudo, nessa conturbação começa a salvação, pois o temor do Senhor é o início da sabedoria. Aqui (como diz Naum 1.3), ao limpar, o Senhor não faz ninguém inocente e tem seus caminhos na tempestade e no turbilhão, e as nuvens são o pó de seus pés; aqui brilham os seus relâmpagos, a terra o vê e se agita; aqui suas flechas cruzam e se fincam, e a voz de seu trovão rola, isto é, faz a volta, e as águas o vêem e ficam com medo; em suma, aqui Deus realiza sua obra estranha, para realizar sua obra [própria]; esta é a verdadeira contrição do coração e humilhação do espírito, o sacrifício mais agradável a Deus; aqui está a vítima já imolada, cortada em pedaços e com a pele tirada, com o fogo aceso para o holocausto. E aqui a graça é infundida (como dizem), como afirma Is 41.3: “Ele os persegue e passa adiante em paz.” E Is 66.2: “Meu espírito não repousará senão sobre quem é quieto e humilde e treme às minhas palavras.” E Ezequias, em Is 38.16: “Ó Senhor, se assim se vive e em tais coisas está a vida do meu espírito, tu me castigarás e me farás viver.” Porém então o ser humano ignora a sua justificação a tal ponto, que se crê próximo da condenação e crê que isso não é uma infusão da graça, mas sim uma efusão da ira de Deus sobre ele. No entanto, bem-aventurado é ele se sofre essa tentação, pois no momento em que se julgar consumido, se levantará como a estrela da manhã.

[…]

Portanto, a remissão de Deus opera a graça, mas a remissão do sacerdote opera a paz, a qual também é graça e dom de Deus, porque é a fé na remissão e na graça presentes. Em minha opinião, esta é a graça que nossos mestres dizem ser conferida eficazmente através dos sacramentos da Igreja, porém ela não é a primeira graça justificamente, que deve estar nos adultos antes do sacramento, e sim, como se diz em Rm 1.17, fé em fé; pois é necessário que quem vem creia. Por outro lado, também a pessoa batizada precisa crer que creu e veio corretamente, ou então nunca terá a paz que só se tem a partir da fé. Por conseguinte, Pedro não desliga antes do que Cristo, mas declara e mostra o desligamento. Quem crer nisso com confiança obteve verdadeiramente paz e perdão junto a Deus (isto é, tornou-se certo de que está absolvido), não pela certeza da coisa, mas pela certeza da fé, por causa da palavra infalível daquele que promete misericordiosamente: “Tudo o que desligares”, etc. Assim [diz] Rm 5.1: “Justificados gratuitamente por sua graça, temos paz junto a Deus por meio da fé”, em todo caso não por meio de uma coisa, etc.


TESE VIII
Os cânones penitenciais são impostos apenas aos vivos; segundo os mesmos cânones, nada deve ser imposto aos moribundos.


Esta tese eu debato, embora haja muitas pessoas que se admiram que ela seja duvidosa.

  1. Em primeiro lugar, ela é provada em Rm 7.1: “A lei tem domínio sobre o ser humano enquanto este vive”, etc. Como o apóstolo explica isto a respeito da lei divina, é muito mais verdade com relação à lei humana. Daí que ele diz no mesmo capítulo: “Quando morrer o marido, a mulher está desobrigada da lei do marido.” [Rm 7.2]. Muito mais ele, quando morto, está desobrigado da lei da esposa que [ainda] vive. Pois o apóstolo argumenta do menor ao maior: se o vivo é desobrigado pela morte do outro, muito mais o é o próprio morto, pelo qual o [que ainda está] vivo é desobrigado.
  2. Como todas as outras leis positivas, as leis canônicas estão presas às circunstâncias de tempo, lugar e pessoas (dist. XXIX), como é do conhecimento de todos. Pois somente a respeito da palavra de Cristo é dito: “Para sempre, ó Senhor, permanece a tua palavra, a tua verdade de geração em geração” [Sl 119.89s]; “e a sua justiça permanece para sempre.” [Sl 111.3]. A palavra e a justiça dos seres humanos, porém, só permanecem por um tempo. Por isso, mudadas as circunstâncias, cessam também as leis, a menos que se queira dizer que, destruída a cidade, o lugar deserto ainda seja obrigado a fazer tudo o que a cidade fazia anteriormente, o que é absurdo.
  3. Se o direito obriga a dispensar mesmo os viventes e a mudar a lei quando cessa a condição da lei ou quando ela se inclina para pior – visto que (como diz o papa Leão) aquilo que foi estabelecido em favor do amor não deve militar contra ele, assim certamente [isto vale também para] o que começar a militar contra a unidade, a paz, etc. -, quanto mais devem ser abolidas as leis para os moribundos, visto que neste caso não cessa apenas a condição das leis, mas também a própria pessoa para a qual e para cujas condições elas foram estabelecidas.

[…]

  1. Se os cânones penitenciais permanecem para os mortos, pela mesma razão permanecem também todos os outros cânones. Por conseguinte, eles devem celebrar, observar festas, jejuns e vigílias, dizer as horas canônicas, não comer ovos, leite e carne em certos dias, mas apenas óleo, peixe, frutas e legumes, vestir roupas pretas ou brancas conforme a diferença dos dias e [carregar] outros pesadíssimos fardos com os quais agora a mísera, outrora libérrima Igreja de Cristo é premida. Pois não existe qualquer razão pela qual [apenas] alguns cânones cessem por causa do tempo, e não todos. Se cessam os que são bons e meritórios para a vida, por que não, antes, os aflitivos, estéreis e impeditivos? Ou vamos inventar também aqui uma troca, de modo que, assim como sofrem outras penas, proporcionadas a eles, da mesma forma fazem outras obras, proporcionadas a eles, e de modo que, não obstante, se deve dizer que eles lêem as horas canônicas?

[…]

  1. Se a morte não é pena suficiente a não ser que o morto sofra também os cânones, então a pena dos cânones será maior do que a pena da morte, porquanto dura para além da morte. [Assim] se faz injustiça à morte dos cristãos, a respeito da qual é dito: “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte de seus santos.” [Sl 116.15].
  2. Imagina que um pecador fosse raptado e, ao confessar a Cristo, sofresse incontinenti o martírio, antes de satisfazer os cânones (como se lê a respeito do mártir B. Bonifácio). Haverá o purgatório de reter tal pessoa, para que ela não esteja com Cristo? E acontecerá que se tenha de orar por um mártir na Igreja? Ora, toda pessoa que morre de livre vontade (é dessa pessoa que falamos, isto é, do cristão) também morre segundo a vontade de Deus.

[…]

  1. Essa opinião de que os cânones devem ser cumpridos após a morte não tem absolutamente nenhuma passagem da Escritura, nenhum cânone ou razão plausível, mas, assim como muitas outras superstições, parece ter sido introduzida unicamente pela preguiça e negligência dos sacerdotes.
  2. Além disso, temos exemplos dos antigos pais. Cipriano, talvez o mais rígido observante de censuras e disciplinas eclesiásticas, ordena, ainda assim, na carta 17 do Livro III, que se dê a paz àqueles que estão submetidos a perigo de morte, para que venham com paz ao Senhor, tendo feito sua confissão ao presbítero ou ao diácono, como ele diz no mesmo lugar. Esse dar a paz nada mais é do aque aquilo que, hoje em dia, é chamado de remissão plenária, como fica claro para quem olha atentamente.

Portanto, podemos concluir que os cânones só devem ser impostos aos vivos, e entre estes, só aos sãos e robustos, sim, só aos preguiçosos e aos que não querem agir melhor espontaneamente. Por certo eu não teria exposto isso tão amplamente se não soubesse que alguns afirmam, com extrema tenacidade, o contrário, que não podem provar de nenhuma maneira. Pois se quisesse tratar com pessoas inteligentes e eruditas, eu teria feito melhor se calasse ao invés de falar.

[…]


TESE IX
Por isso o Espírito Santo nos beneficia através do papa quando este, em seu decreto, sempre exclui a circunstância da morte e da necessidade.


Esta tese é, antes, uma prova da tese precedente. Pois é certo que, se o sumo pontífice quer excetuar os casos de necessidade temporal, [ele o quer] muito mais [nos casos de] necessidade eterna. É para esta que o ser humano vai através da morte, ao passo que uma pessoa doente ou legalmente impedida só é retida por uma incapacidade temporal. Sim, mesmo que o sumo pontífice não excetue a necessidade, ainda assim se entende que ela está excetuada, porque a necessidade não tem lei. Ora, a morte é a mais extrema necessidade e o último e maior de todos os impedimentos.


TESE X
Agem mal e sem conhecimento de causa aqueles sacerdotes que reservam aos moribundos penitências canônicas para o purgatório.


Também esta tese é um corolário evidente da oitava. Certamente existem pessoas que perguntam com espanto se os sacerdotes fazem tais coisas. Sem dúvida que fazem. Todavia, como isso significa dar mais peso à obediência aos cânones do que à obediência ao chamado de Deus, e preferir as mais baratas obras dos cânones ao valor da preciosíssima morte dos cristãos, não sei se aqueles que estão imbuídos dessa opinião possuem a regra da fé verdadeira.

  1. É conhecido e freqüentemente [afirmado] por insignes autores na Igreja: Se Deus levasse uma pessoa ao êxtase ou a uma iluminação singular justamente em meio às obras de obediência eclesiástica, então a pessoa seria obrigada a interromper a obra, deixar de lado a obediência à Igreja e obedecer mais a Deus do que aos seres humanos. Sim, eles dizem que, mesmo nas horas canônicas, devemos, contra o mandamento da Igreja, abandonar a atenção às palavras se por acaso formos agraciados com uma iluminação e um arrebatamento celestes. Portanto, se as leis da Igreja deixam de vigorar nesses chamamentos, como não haveriam de cessar num tão grande chamamento e êxtase que é o da morte? A menos que talvez se deva seguir a multidão de tolos que de tal modo se apegam a suas obras cerimoniais, que, por causa delas, muitas vezes pospõem a obediência manifesta a Deus e aos seres humanos e crêem ter agido corretamente se fizeram apenas aquelas, mas nunca as outras.
  2. A Igreja certamente seria muito ímpia para com Deus se retivesse em seu foro inferior a quem ele já chama para seu tribunal supremo. Ou quando é que o sumo pontífice tolera que um réu seja retido pela lei e pelos direitos do foro inferior de um bispo ou prelado, depois de ter sido chamado a comparecer perante seu foro? Acaso exige ele de seus subordinados o que ele mesmo, como ser humano, não permite a seu Deus, que é superior a ele? Então um ser humano fecha a mão de Deus, se um ser humano não pode fechar a de outro ser humano? Longe seja! Ora, se ele impõe cânones ao moribundo, certamente está claro que o julga e pune segundo seu foro.

Assim, são essas as quase 20 razões que me levaram a duvidar – não sem ponderação, como espero – quanto a esse assunto das penas canônicas, ao passo que no lado contrário não há passagem [da Escritura], nem cânone, nem argumento racional, nem uso universal da Igreja, mas tão-somente o abuso de algumas pessoas.


TESE XI
Essa erva daninha de transformar a pena canônica em pena do purgatório parece ter sido semeada enquanto os bispos certamente dormiam.


Aqui rogo que ninguém pense que eu esteja levantando uma calúnia contra os reverendíssimos bispos ao afirmar que eles dormiram. Essas palavras não são minhas, mas do evangelho, só que lá não está colocado o nome dos bispos, mas dos seres humanos. Não obstante, é certo que por “seres humanos” ele entende as autoridades e os dirigentes da Igreja, a não ser que o interpretemos tropologicamente como o espírito e a mente de toda pessoa sobre seu corpo. Por conseguinte, os pontífices na verdade não ensinam isso à Igreja, porque, como eu disse, não temos nenhum cânone, nenhuma determinação dos cânones a partir dos quais isso possa ser ensinado. Assim sendo, é em vão que se esforçam alguns canonistas quando procuram mostrar de que espécie são os anos, dias e quadragésimas no purgatório, pois na verdade não os há, ou, pelo menos, não se pode provar que os haja. O erro provém do fato de que só são obrigatórios na terra. É como alguém que, mudando de município, também muda, ao mesmo tempo, de direitos municipais. Se deve alguma coisa, é obrigado a saldar [a dívida] antes de mudar. Portanto, absolutamente nada deve ser imposto aos moribundos, e eles também não devem ser remetidos ao purgatório com o resto da penitência (como diz Gérson em certo lugar); antes (como ele ensina melhor em outra parte), devem assumir a morte com firmeza e de bom grado, de acordo com a vontade de Deus.

Aqui temos que examinar aquela invencionice e fútil cavilação com que querem nos assustar como as criancinhas com as máscaras, dizendo que, como o sacerdote não conhece a medida de contrição da pessoa a ser absolvida e, por isso, talvez não imponha uma satisfação tão grande quanto a justiça de Deus o exige, é necessário satisfazer também por isto, seja através de uma obra própria, seja através de indulgências.

  1. Vê como fazem soar suas palavras nuas, sem qualquer prova, como oráculos [divinos], embora profeta diga: “Deus não dirá uma palavra sem revelar seu segredo aos seus servos, os profetas.” [Am 3.7]. Também não é crível – pois ele é o nosso Deus, que nos ensina as coisas úteis, como diz pelo profeta – que não nos revelasse, em qualquer parte, também esta exigência de sua justiça.
  2. Não sei se os que assim falam querem transformar Deus num usuário ou num mercador, como alguém que não remite gratuitamente a menos que se lhe preste uma satisfação como pagamento. Porventura querem que negociemos a respeito de nossos pecados com a justiça de Deus, perante a qual pessoa alguma é justificada?
  3. Se isto é assim, por que então o papa concede absolvição plenária, já que, da mesma maneira, não conhece a medida da contrição, nem pode, ele mesmo, completar a imperfeição da contrição? A contrição perfeita, porém não necessita da absolvição dele. Ele também não tem um poder de gênero diferente do que um outro sacerdote, mas sim de outra quantidade, porque remite os pecados de todos, ao passo que os outros [sacerdotes] remitem de alguns; tanta satisfação quanta eles podem remitir para algumas pessoas, ele pode para todas, e nada mais. Do contrário a Igreja seria um monstro, constituída de diversos gêneros de poder.

[…]


TESE XII
Antigamente se impunham as penas canônicas não depois, mas antes da absolvição, como verificação da verdadeira contrição.


Esta décima segunda tese prova novamente a oitava, pois as penas canônicas são de tal forma temporais, que têm como seu fim a própria absolvição. Como, porém, todo moribundo deve ser absolvido (as demais condições sendo iguais), evidencia-se que não devem ser impostas [penas], mas, antes, que também as [já] impostas e aquelas a serem impostas devem ser relaxadas. Se aquele antigo costume da Igreja tivesse sido conservado até hoje, esse erro não teria surgido. Agora, contudo, visto que a absolvição precede as penas, aconteceu que, para prejuízo da absolvição, remetem a pessoa não absolvida para a morte e cometem algo assim como uma monstruosidade a não absolverem [mesmo] concedendo absolvição e ao ligarem a pessoa absolvida com a mesma palavra [com que a absolvem].

  1. A tese é provada a partir do próprio uso da Penitência solene, descrita nos cânones, do qual ainda temos um exemplo ou ainda resta um vestígio na Penitência em caso de homicídio. Pois por que, neste caso, absolvem da pena a pessoa que vive e não a remetem a outras [penitências] a serem feitas em vida, enquanto que são tão rígidos no caso dos moribundos?
  2. Assim, escreve o B. Jerônimo, foi perdoada sua Fabíola. Assim o B. Ambrósio absolveu seu Teodósio. Por fim, em ninguém se lê isto com maior freqüência do que no glorioso mártir Cipriano, no livro III de suas cartas. A mesma coisa [se lê] na História eclesiástica e na História tripartida. Da mesma forma, em Dionísio, na Hierarquia eclesiástica, é descrito o estado dos penitentes e dos energúmenos. Em todos estes casos vemos que naquela época os pecadores não eram aceitos para graça e absolvição antes de terem feito penitência.
  3. Também Cristo só absolveu Maria Madalena e a mulher adúltera após lágrimas, unção e uma aflição sobremodo veemente e humilde.
  4. Lemos em Gn 44 que José afligiu seus irmãos com muitas tentações para verificar se sua afeição por ele e Benjamim era verdadeira. Quando descobriu isso, deu-se a conhecer a eles e os recebeu em graça.

TESE XIII
Através da morte, os moribundos pagam tudo e já estão mortos para as leis canônicas, tendo, por direito, isenção das mesmas.


Esta tese conclui o que foi dito acima e é suficientemente evidente. Pois seria uma coisa muito estranha se o moribundo fosse desligado de todas as obras, coisas, leis, pessoas e além disso das próprias leis de Deus – a saber, em que se ordenam esmola, oração, jejum, cruz, trabalho e tudo o que pode ser feito pelo corpo -, por fim, até mesmo das obras do santo amor ao próximo (que é o único que nunca morre), e que a única coisa da qual não possa ser desligado sejam os canônes. Então o cristão seria mais miserável do que todos os gentios, porque, mesmo morto, as leis dos vivos o atormentariam, ao passo que é, antes, uma pessoa que, mesmo entre os mortos, deve ser livre por meio de Cristo, em que ele vive.

[…]


TESE XIV
Saúde ou amor imperfeito no moribundo necessariamente traz consigo grande temor, e tanto mais, quanto menor for o amor.


Isso se torna evidente através de 1 Jo 4.18: “No amor não existe medo. O amor perfeito lança fora o medo, pois o medo tem castigo.” Portanto, se o amor perfeito lança fora o medo, é necessário que o amor imperfeito não o lance fora e que, por isso, haja medo com o amor imperfeito. Mas onde está esse amor perfeito? E (para fazer alguma pequena digressão) quem não tem medo da morte, do juízo, do inferno? Pois, por mais santa que seja uma pessoa, nela há restos do velho ser e do pecado, e, neste tempo, os filhos de Israel não conseguem destruir completamente os jebuseus e cananeus e demais gentios. Permanece [sempre] o vestígio do velho Adão. Esse velho ser, porém, é erro, concupiscência, ira, temor, apreensão, desespero, má consciência, horror da morte, etc. Essas coisas são [características] do ser humano velho e carnal. Elas diminuem no novo ser humano, mas não são extinguidas até que ele mesmo seja extinguido pela morte. Como diz o apóstolo: “Mesmo que o nosso ser humano exterior se corrompa, o interior é renovado de dia em dia.” [2 Co 4.16]. Portanto, esses males dos restos do velho ser não são suprimidos pelas indulgências nem pela contrição iniciada; eles começam a ser suprimidos e, aumentando, são suprimidos mais e mais. Esta é a saúde espiritual, que não é outra coisa senão a fé ou o amor em Cristo.

Estando as coisas assim estabelecidas, a tese está suficientemente clara. Porque se alguém é surpreendido pela morte antes de alcançar o amor perfeito que expulsa o medo, necessariamente morre com medo e horror, até que o amor se torne perfeito e lance fora aquele medo. Ora, esse medo é justamente a consciência má e inquieta por causa da falta de fé. Pois nenhuma consciência é medrosa exceto a consciência que é ou vazia ou imperfeita em termos de fé. Pois assim diz também o apóstolo: “O sangue de Cristo liberta nossas consciências de obras mortas”. [Hb 9.14]. E mais uma vez, em Hb 10.22: “Com os corações aspergidos de uma má consciência na plenitude da fé.”

[…]


TESE XV
Este temor e horror por si sós já bastam (não para falar de outras coisas) para produzir a pena do purgatório, uma vez que estão próximos do horror do desespero.


Não falo nada sobre o fogo e o lugar do purgatório, não porque o negue, mas porque esse é um outro debate que não me propus agora; além disso, porque não sei onde é o lugar do purgatório, embora o B. Tomás creia que ele esteja debaixo da terra. Nesse meio-tempo, entretanto, fico com o B. Agostinho, a saber, que os receptáculos das almas são escondidos e estão fora de nosso conhecimento. Digo isso para que o herege Begardo não imagine que obteve de mim [a afirmação de] que o purgatório não existe porque confesso que seu lugar é desconhecido, ou que a Igreja Romana erra por não rejeitar a opinião do B. Tomás. É-me certíssimo que existe um purgatório. Não me impressiona muito o que blateram os hereges, visto que, já há mais de 1.100 anos, no livro IX de suas Confissões, o B. Agostinho ora por sua mãe e seu pai e pede que se ore [por eles], e sua santa mãe, ao morrer (como ele lá escreve), desejou que sua memória [fosse lembrada] junto ao altar do Senhor; mas ele conta que isso também aconteceu com o B. Ambrósio. E mesmo que na época dos apóstolos o purgatório não existisse, como se ensoberbece o altivo Begardo – acaso deve-se, por esta razão, crer num herege que nasceu mal-e-mal há 50 anos e pretender que a fé de tantos séculos seja falsa? Principalmente porque ele não faz outra coisa exceto dizer: “Não creio”, tendo, assim, provado todas as suas [asserções] e rejeitado todas as nossas, como se também a madeira e a pedra não crescem. Mas isto fica para uma obra e um tempo apropriados.

Portanto, está admitido que há horror nas almas. Agora vou provar que esse horror é uma pena do purgatório, ou melhor, a máxima:

  1. Todos admitem que as penas do purgatório e do inferno são as mesmas, diferindo apenas no que diz respeito à eternidade. Ora, a Escritura descreve as penas do inferno como sendo perturbação, pavor, horror e fuga, como diz Sl 1.4: “Os ímpios não são assim; são, porém, como a palha que o vento dispersa.” Mas também em Jó e em Isaías e em muitos outros lugares os ímpios são comparados à palha e ao pó, arrastados e dispersos pelo turbilhão; nisto [a Escritura] certamente denota a horrível fuga dos condenados. Do mesmo modo Sl 2.5: “Então falará a eles em sua ira e em seu furor os conturbará.” Em Is 28.16: “Quem confia nele não será envergonhado”, isto é, não se precipitará, não se assustará nem fugirá perturbado e horrorizado, querendo dizer, em todo caso, que os que não confiam serão confundidos e tremerão. Pv 1.33: “Quem me der ouvidos repousará sem terror e gozará de abundância, sem temor dos males.” E Sl 111[112].7: “Não se atemorizará de más notícias.” Nestas e em outras passagens da Escritura a pena dos ímpios é expressa como terror, horror, pavor, temor, ao passo que a respeito dos piedosos se afirma o contrário. Por fim, também o B. Tiago diz que os demônios crêem e tremem. E Dt 28.65 afirma claramente que a pena do ímpio é pavor, dizendo: “O Senhor Deus te dará um coração pávido”, etc. Pois se esse pavor não existisse, nem a morte, nem o inferno, nem pena alguma seriam molestos, como diz em Cantares: “O amor é forte como a morte, e duro como o inferno é o ciúme” [Ct 8.6], o que se mostrou suficientemente nos mártires, a tal ponto, que o Espírito diz quanto aos ímpios em Sl 13[14].5: “Eles tremeram de medo lá onde não havia medo”, e em Pv 28.1: “O ímpio foge sem que ninguém o persiga, mas o justo, audacioso como um leão, estará sem terror.” De outro modo, por que uma pessoa teme a morte e se aflige, enquanto que uma outra pessoa a despreza, senão porque a pessoa que interiormente não tem confiança na justiça teme onde não deve temer?

[…]


TESE XVI
Inferno, purgatório e céu parecem diferir da mesma forma que o desespero, o semidesespero e a segurança.


Quem tiver considerado verdadeiras as duas teses precedentes admite facilmente também esta. Sim, como cremos que no céu reinam paz, alegria e segurança na luz de Deus, no inferno, contudo, pelo contrário, esbravecem desespero, dor e horrível fuga nas trevas exteriores, [que] o purgatório, porém, é o meio entre ambos, mas de tal forma que está mais próximo do inferno do que do céu (porque não tem alegria e paz, sim, em nada participam do céu, pois se considera que se trata da mesma pena como no inferno, diferente apenas da duração), está suficientemente claro que também nele há desespero, fuga, horror e dor. Todavia, quando mencionei o desespero acrescentei “semi”, visto que, por fim, esse desespero cessa. No mais, enquanto está nele, a alma realmente não sente senão desespero, não porque ela desespere, mas porque está em tamanha perturbação e confusão de pavor, que não sente que tem esperança. Lá somente o Espírito socorre sua fraqueza o mais possível, intercedendo por elas com gemidos inexprimíveis. Pois o mesmo acontece aos tentados nesta vida, de modo que não sabem se esperam ou desesperam; sim, parece-lhes que desesperam, restando só um gemido por auxílio. A partir desse sinal, não são eles mesmos, mas outros que reconhecem que eles ainda têm esperança. No entanto, não vou falar mais longamente sobre esse assunto, que é sobremaneira abstruso, para que os vendedores de indulgências não acusem também a mim de estar falando sem provas, embora eu não afirme o que ignoro, como fazem eles, mas sim debata a pergunte. Ademais, sustento que a presumida certeza deles é dúbia e, mais ainda, nula.

[…]


TESE XVII
Parece necessário, para as almas no purgatório, que o horror diminua na medida em que cresce o amor.


Também esta tese se apóia nas três precedentes. Não obstante, vamos explicá-la e propor (assim como começamos) três espécies de almas que partem. A primeira é constituída pelas almas completamente desprovidas de fé (isto é, condenadas). Na morte, elas são necessariamente tomadas do mais extremo horror e desespero, conforme aquela mensagem: “Os males se apoderarão do homem injusto na morte.” [Sl 140.11]. E mais uma vez: “A morte dos pecadores é a pior de todas” [Sl 34.21], isto porque não têm confiança em Deus; por esta razão, a ira os apanha. A segunda espécie são as almas completamente cheias de fé e perfeitas (isto é, bem-aventuradas). Na morte, elas são necessariamente tomadas da maior segurança e alegria, conforme aquela passagem: “Ainda que cair, o justo não se quebrará, pois o Senhor põe sua mão debaixo.” [Sl 37.24]. E de novo: “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos.” [Sl 116.15]. E mais uma vez: “Se for assaltado cedo demais pela morte, o justo estará em refrigério.” [Sb 4.7]. E a causa de ambos é que o injusto encontra o que temia, sendo que ele sempre temia morte e castigo. O justo, porém, saciado desta vida, desejava ao máximo ser livrado; por esta razão, seu desejo lhe é concedido. Aquele não chegou à metade dos seus dias; este prolongou sua morada para além da consumação. Por isso, o que aquele teme, este busca, pois estão tomados de um desejo totalmente diferente; o que para aquele é supremo horror, para este é supremo ganho e alegria. A terceira espécie são as almas imperfeitas na fé, que diferem de modo variado, indo desde a fé plena até nenhuma fé. Ora, creio que ninguém nega que algumas almas partem com fé imperfeita; mesmo assim, abaixo demonstraremos isso mais amplamente. Portanto, como a imperfeição de fé não é outra coisa do que a imperfeita novidade da vida no Espírito e um resto ainda existente do velho ser da carne e de Adão (pois se fosse perfeita não temeria o castigo, nem morreria a contragosto, ou não partiria com afeição terrena por esta vida), parece claro que as almas não só precisam remover as penas, mas também acrescentar a perfeição da novidade e fazer desaparecer o resíduo do velho ser (isto é, o amor à vida e o temor da morte e do juízo). Ocorre que, por mais que a pena fosse removida (se fosse possível), a alma não ficaria sã através dessa remoção, assim como também nesta vida ninguém se torna melhor apenas pela remoção das penas, mas sim pela adição da graça e pela remoção do pecado. Por isso, também delas primeiramente deve ser retirado o pecado, isto é, a imperfeição da fé, da esperança e do amor.

[…]


TESE XVIII
Parece não ter sido provado, nem por meio de argumentos racionais nem da Escritura, que elas se encontram fora do estado de mérito ou de crescimento no amor.


Este é o meu mais forte argumento contra a opinião contrária: ela é ensinada sem prova. Nossa opinião, porém, certamente se apóia pelo menos naquela passagem que diz que sem o acréscimo da graça nenhum temor é expulso; este só é lançado fora pelo amor perfeito. Esta tese previne o argumento daqueles que poderiam dizer contra mim: “Elas estão fora do estado de mérito, razão pela qual as três teses precedentes são falsas.” Eu, contudo, para continuar (assim como comecei) a opinar e debater, sem nada afirmar, digo: se o purgatório é tão-somente uma oficina para o pagamento de penas e as almas que nele estão são impuras por sua moderação (como penso eu) e não são purificadas desse vício, o purgatório se tornaria o mesmo que é o inferno, pois o inferno é onde existe pena com culpa que permanece. Ora, nas almas do purgatório existe culpa, a saber, o temor das penas e falta de amor, ao passo que o justo, segundo Is 8.13, nada deve temer senão apenas Deus; portanto elas pecam sem interrupção enquanto temem as penas e buscam repouso. Provo isso pelo fato de que buscam seu próprio interesse mais do que a vontade de Deus, o que é contra o amor. Se amam a Deus, amam-nos com o amor da concupiscência (isto é, com um amor vicioso), enquanto que deveriam, mesmo em suas penas, amar e glorificar a Deus e suportar com firmeza. Mas, para também afirmar alguma coisa em meio a tantos espinhos dos debates, confesso francamente que creio que nenhuma alma é redimida das penas do purgatório por causa de seu temor, até que ponha de lado o temor e comece a amar a vontade de Deus em tal pena, e a ame mais do que teme a pena, sim, até que ame unicamente a vontade de Deus, mas vilipendie a pena ou até a ame na vontade de Deus. Porque é necessário amar a justiça antes de ser salvo. A justiça, porém, é Deus, que opera essa pena. Depois, há aquela palavra de Cristo: “Quem não toma (isto é, carrega de bom grado e com amor) a sua cruz e me segue, não é digno de mim.” [Mt 10.38] Ora, a cruz das almas é aquela pena. Sendo as coisas assim, e as reputo sumamente verdadeiras, diga quem puder de que forma esse amor das penas pode substituir o temor sem uma nova infusão da graça. Eu confesso que não sei, a menos que digas que o purgatório não tem terror das penas e, por isso, não é semelhante ao inferno, contra o dito anteriormente; mas então é em vão que oramos por aqueles que, conforme ouvimos, querem e amam suas penas, sem temor.

[…]


TESE XIX
Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas e seguras de sua bem-aventuranças, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.


Pois nós, porque cremos que nenhuma alma vai ao purgatório a menos que pertença ao número daquelas a serem salvas, estamos certos da bem-aventurança delas, assim como estamos certos da salvação dos eleitos. Mesmo assim, não impugno muito se alguém afirma que elas estão certas [de sua bem-aventurança]. Eu digo [apenas] que nem todas estão certas. Mas como todo o assunto das almas no purgatório é sobremaneira abscôndito, explico a tese mais persuadindo do que demonstrando.

  1. Em primeiro lugar, a partir das afirmações anteriores: se a pena do purgatório é aquele pavor e horror da condenação e do inferno, todo pavor, porém, torna o coração perturbado, incerto, privado de conselho e auxílio, e tanto mais quanto mais intenso e inopinado for. Ora o pavor das almas é o mais intenso e inopinado de todos, como foi dito acima e como diz Cristo: “Aquele dia sobrevém como um laço.” [Lc 21.34]. E o apóstolo: “O dia do Senhor virá como ladrão de noite. [2 Pe 3.10; 1 Ts 5.2]. Por esta razão, é muito provável que, por causa de sua perturbação, elas não saibam em que estado estão, se condenadas ou salvas; sim, parece-lhes que já estão a caminho da condenação, que já estão descendo ao inferno e que, em verdade, já estão nas portas do inferno, como diz Ezequias. Mas também 1 Rs 2.6 diz: “O Senhor faz descer aos infernos e faz subir.” Portanto, não sentem outra coisa senão que sua condenação está começando, só que sentem que a porta do inferno ainda não se fechou atrás delas e também não abandonam o desejo de auxílio, ainda que este não seja visível em parte alguma. Pois assim falam os que o experimentaram. Façamos uma comparação: suponhamos que alguém vem inopinadamente ao juízo da morte, caindo, por exemplo, nas mãos de salteadores, que o ameaçam de morte de todos os lados, ainda que tenham decidido aterrorizá-lo, não matá-lo. Neste caso, eles estão certos de que ele viverá, ele mesmo, contudo, nada mais vê exceto a morte iminentíssima e, por isso mesmo, já está morrendo. A única coisa que lhe resta é o fato de ainda não ter morrido e poder ser redimido da morte, mas não sabe de onde (pois vê que aqueles podem, porém não querem). Assim sendo, ele em quase nada difere de um morto. O mesmo parece acontecer no caso do medo da morte eterna, visto que não sentem outra coisa senão que a morte eterna os ameaça de toda parte. Assim canta a Igreja por eles: “Arranca suas almas da porta do inferno e liberta-as da goela do leão, para que o inferno não as engula”, etc. O único conhecimento que lhes resta é que Deus pode redimi-los. No entanto, parece-lhes que ele não quer [fazê-lo]. Os condenados, porém, imediatamente acrescentam a blasfêmia a esse mal, ao passo que aqueles acrescentam apenas queixa e gemido inexprimível, auxiliados pelo Espírito. Pois aqui o Espírito de Deus paira por sobre as águas, onde há trevas sobre a face do abismo. Mas sobre isso [falei] mais amplamente acima.

[…]

De novo se objeta: “Se as almas suportam as penas de bom grado, por que oramos por elas?” Respondo: se não as suportassem de boa vontade, certamente estariam condenadas. Mas será que por isso não devem desejar orações? Pois também o apóstolo desejou que fizessem orações por ele, para que fosse livrado dos descrentes e se lhe abrisse uma porta à palavra. Não obstante, era ele quem, cheio de toda confiança, se gloriava de desdenhar a morte. Mesmo que as almas não desejassem orações, é nosso dever condoer-nos de seu sofrimento e socorrê-las através da oração, assim como a quaisquer outros, por mais corajosamente que sofram. Depois, como as almas não sofrem tanto com a pena presente quanto com o horror da perdição iminente que as ameaça, não é de admirar que desejem intercessão, para que perseverem e não se tornem faltas de confiança, tendo em vista que, como eu disse, estão incertas quanto ao seu estado e não temem tanto as penas do inferno quanto o ódio de Deus que existe no inferno, assim como é dito: “Na morte não há quem se lembre de ti; no inferno quem se confessará a ti?” [Sl 6.5]. Assim é evidente que não sofrem por temor da pena, mas por amor da justiça, como dissemos acima. Pois ela têm mais medo de não louvar e amar a Deus (o que aconteceria no inferno) do que de sofrer. Toda a Igreja ajuda, com razão, esse seu santíssimo, porém ansiosíssimo desejo tanto quanto pode, principalmente porque também Deus quer que elas sejam auxiliadas por meio da Igreja. E aqui finalmente chegamos ao fim desse tão obscuro e dúbio debate sobre as penas das almas. Não invejarei quem puder exibir coisa melhor, contando que o faça apoiado em melhores passagens da Escritura e não obnubilado pelas fumosas opiniões de seres humanos.

 

Fonte: Martinho Lutero, Obras Selecionadas - Os Primórdios Escritos de 1517 a 1519. Volume I. Comissão Interluterana da Literatura São Leopoldo. Co-Editoras: Editora Sinodal (São Leopoldo), Concórdia Editora (Porto Alegre), Editora da Ulbra (Canoas). 2004


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