AS 95 TESES DE LUTERO COMENTADAS [PARTE 4]: LX ao LXXIX


Categoria: As 95 Teses de Lutero Comentadas
Imagem: Martinho Lutero pregando suas 95 teses na porta da Igreja de Wittenberg - The Gospel Coalition
Publicado: 07 de Novembro de 2021, Domingo, 15h33

TESE LX
É sem temeridade que dizemos que as chaves da Igreja, que lhe foram proporcionadas pelo mérito de Cristo, constituem este tesouro.


Se esse mérito fosse chamado também de tesouro das indulgências, isto é, de poder das chaves, então o sentido é claro. Pois ninguém duvida que tudo o que foi dado à Igreja lhe foi dado pelo mérito de Cristo.


TESE LXI
Pois está claro que, para a remissão das penas e dos casos, o poder do papa por si só é suficiente.


[Esta tese] é demonstrada a partir do próprio estilo do papa, que, ao ligar ou desligar, nunca menciona os méritos de Cristo, mas diz unicamente: da plenitude do poder, a partir de conhecimento seguro e de moto próprio.

  1. Em segundo lugar, a partir da opinião comum a todos os que provam que as indulgências são dadas por força daquela palavra onde Cristo diz: “Tudo o que desligares”, etc. [Mt 16.19]. Esta palavra, julgam eles, seria sem vigor se não concedesse o poder de dar. Por esta razão, também entendem que só o poder é suficiente, porém não provam o tesouro com qualquer passagem da Escritura, aduzindo esta passagem como se fora suficiente. Entretanto, ela se refere unicamente ao poder, e não à aplicação de méritos.
  2. Do contrário, também em outras ligações e desligamentos dever-se-ia entender uma distribuição de méritos, a saber, quando, através de seu ofício sacerdotal, ele excomunga, absolve, ordena, exclui da ordem, determina, abroga, proíbe, dispensa, muda, interpreta. Pois em todas estas coisas se age por força desta palavra: “tudo o que”. Se, pois, nestas coisas não é necessária uma distribuição de méritos, bastando só o poder das chaves, quanto mais na remissão de penas canônicas! É que tal remissão não é outra coisa do que uma absolvição de penas. Sim, se em algum lugar ocorre uma distribuição dos méritos de Cristo, ela deve acontecer principalmente na absolvição de um excomungado, pois aí um pecador é reconciliado com a Igreja e mais uma vez declarado participante dos bens de Cristo e da Igreja. Portanto, não existe nenhuma razão por que aquela palavra: “Tudo o que desligares” devesse incluir o tesouro de Cristo no caso das indulgências e não também em todos os outros desligamentos, já que se trata da mesma passagem, das mesmas palavras e do mesmo sentido nelas [contido].

[…]

Por conseguinte, assim como sob “ligar” se entende tornar [alguém] devedor sem reunião do tesouro e sem tirar-lhe algo realmente, da mesma forma sob “desligar” é preciso entender tornar [alguém] livre sem uma expensão efetiva do tesouro.


TESE LXII
O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus.


Em boa parte da Igreja o Evangelho de Deus é uma coisa bastante desconhecida. Por isto, temos que falar dele um pouco mais amplamente. Pois Cristo nada deixou no mundo exceto tão-somente seu Evangelho. Daí que nada entregou a seus servos chamados senão minas, talentos, dinheiro, denários, para, a partir destas palavras de tesouros, demonstrar que ele é o verdadeiro tesouro. Paulo diz que entesoura para seus filhos. Cristo [fala de] um tesouro escondido no campo. E o fato de ser abscôndito faz com que ao mesmo tempo ele também seja negligenciado.

O Evangelho, porém, segundo o apóstolo em Rm 1, é uma prédica a respeito do Filho encarnado de Deus, nos dado sem méritos [nossos] para salvação e paz. Ele é palavra de salvação, palavra de graça, palavra de consolo, palavra de alegria, a voz do noivo e da noiva, palavra boa, palavra de paz, como diz Is 40: “Quão jucundos são os pés dos que anunciam boas-novas, que anunciam a paz, que pregam coisas boas.” A lei, contudo, é palavra de perdição, palavra de ira, palavra de tristeza, palavra de dor, voz do juiz e do réu, palavra de inquietação, palavra de maldição. Pois, segundo o apóstolo, a lei é a força do pecado, a lei opera a ira, é lei da morte. Com efeito, a partir da lei nada temos senão uma má consciência, um coração inquieto, um peito pávido em face de nossos pecados, que a lei mostra, mas não remove e que também nós não podemos remover. Assim, pois, a luz do Evangelho vem aos cativos, tristes e totalmente desesperados e diz: “Não temas!” [Is 35.4]. “Consolai-vos, consolai-vos, povo meu!” [Is 40.1]. “Consolai os pusilânimes!” [1 Ts 5.14]. “Eis o vosso Deus!” [Is 40.9]. “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” [Jo 1.29]. Eis aquele que é o único que cumpre a lei por vós, a quem Deus vos fez justiça, santificação, sabedoria, redenção, a todos quantos crêem nele. Quando ouve esta dulcíssima mensagem, a consciência pecadora revive, e exulta em saltos [de alegria], e [fica] cheia de confiança, e já não teme a morte, nem as espécies de penas associadas à morte, nem o inferno. Por isto, as pessoas que ainda temem as penas ainda não ouviram Cristo nem a voz do Evangelho, e sim, antes, a voz de Moisés.

Assim pois, deste Evangelho nasce a verdadeira glória de Deus, ao sermos ensinados que a lei está cumprida não por meio de nossas obras, mas da graça do Deus que se comisera em Cristo, e que ela é cumprida não obrando, mas crendo, não oferecendo qualquer coisa a Deus, mas tudo recebendo e participando de Cristo, de cuja plenitude todos nós participamos e recebemos. Disto trato mais amplamente em outro lugar.


TESE LXIII
Este tesouro, entretanto, é o mais odiado, e com razão, porque faz com que os primeiros sejam os últimos.


É que o Evangelho destrói as coisas que são, envergonha as fortes, envergonha a sabedoria e as reduz ao nada, à fraqueza, à tolice, porque ensina humildade e cruz. Assim diz Sl 9.5: “Repreendeste os gentios, e o ímpio perece; apagaste o nome deles.” Mas têm horror dessa regra da cruz todos aqueles aos quais agradam as coisas terrenas e o que é seu e dizem: “Duro é este discurso.” [Jo 6.60]. Por isso não admira que o discurso de Cristo seja sobremodo odioso aos que amam ser alguma coisa, ser sábios e poderosos diante de si mesmos e das pessoas, e se crêem os primeiros.


TESE LXIV
Em contrapartida, o tesouro das indulgências é o mais benquisto, e com razão, pois faz dos últimos os primeiros.


Porque ele ensina a ter horror das penas; mais ainda: torna livre da pena, o que cabe unicamente aos justos. Pois ninguém necessita de indulgências senão um servo das penas, isto é, que não as calca com os pés, reinando sobre elas com soberbo desprezo, mas é por elas premido e delas foge como uma criança das sombras da noite e das trevas. Não obstante, são deixadas livres, ao passo que mesmo os justos estão sujeitos a várias penas.


TESE LXV
Por esta razão, os tesouros do Evangelho são as redes com que outrora se pescavam homens possuidores de riquezas.


Pois assim diz o apóstolo: “Não busco os vossos bens, mas a vós mesmos.” [2 Co 12.14]. E Cristo: “Farei de vós pescadores de seres humanos.” [Mt 4.19]. Com efeito, a doce palavra cativa a vontade; mais ainda: faz com que o ser humano entregue sua vontade a Cristo. Daí que S. Pedro, pintado como pescador em Roma, diz: “Governo a Igreja como nave, as regiões do mundo são o meu mar, a Escritura é minha rede, o peixe é o ser humano”.


TESE LXVI
Os tesouros das indulgências, por sua vez, são as redes com que hoje se pesca a riqueza dos homens.


Creio que esta tese está clara a partir do que foi dito, porque pelas remissões das penas o ser humano não é tornado melhor nem mais puxado para Deus (o que acontece tão-somente pela palavra de Cristo), uma vez que são palavras de um ser humano que concede licença e relaxação mais do que pega e liga. Se pegam alguma coisa, certamente só pegam dinheiro; almas é que eles não pegam. Não que eu condene esse negócio de juntar dinheiro; sim, em minha opinião, a providência de Deus parece cuidar para que esse negócio fosse remunerado ao menos nesta vida, ainda que com quantias módicas, para que nada permaneça não-remunerado. É que esse negócio é o mais vil entre as dádivas e os ofícios da Igreja e não merece ser coroado na vida futura. No entanto, antigamente as relaxações aconteciam de graça.


TESE LXVII
As indulgências apregoadas pelos seus vendedores como as maiores graças realmente podem ser entendidas como tal, na medida em que dão boa renda.


Pois a audaz ignorância se atreve ao ponto de chamar de o maior aquilo que é o menor, e então se deixam por conta do povo o juízo e a faculdade de compreender corretamente, para que, errando, creia que a graça de Deus é dada aqui. Pois eles mesmos não explicam, para não serem obrigados a contradizer a si mesmos ou serem descobertos como mentirosos, porque chamaram o pequeno de grande.


TESE LXVIII
Na verdade elas são as graças mais ínfimas em comparação com a graça de Deus e a piedade da cruz.


Sim, em comparação com a graça de Deus, elas são nada e são nulas, já que, antes, operam o contrário da graça de Deus. Não obstante, são toleradas por causa dos indolentes e preguiçosos, como é evidente a partir do que foi dito.


TESE LXIX
Os bispos e curas têm a obrigação de admitir com toda a reverência os comissários de indulgências apostólicas.


Porque em tudo se deve ceder à autoridade papal com reverência. Pois “quem resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus; mas os que resistem a Deus obtêm para si condenação.” [Rm 13.2]. E o Senhor mesmo diz: “Quem vos despreza, a mim me despreza.” [Lc 10.16]. Por conseguinte, deve-se ceder à autoridade em coisas pequenas não menos do que em grandes. Daqui vem também que, ainda que o papa pronuncie setenças injustas, elas devem ser temidas, e, como diz o imperador Carlos, “tudo o que ele tiver imposto, por mais pesado que seja, deve ser suportado.” Também por experiência vemos isso acontecer por parte da Igreja, que hoje certamente é premida por infinitos fardos e, mesmo assim, [os] carrega quieta, com piedade e humildade. Contudo, isto deve ser compreendido, para que alguém não chegue a uma cosnciência errônea, como se as sentenças injustas devam ser temidas porque devam ser aprovadas como justas por aqueles que têm obrigação de temê-las, visto que o próprio pontífice decreta que são ligadas pela Igreja algumas pessoas que, não obstante, não estão ligadas perante Deus, e as obriga a suportar a ligação. No entanto, tal ligação não as prejudica, porque é apenas uma pena e deve ser temida, mas não deve causar inquietação de consciência. Do mesmo modo, devemos temer a Deus em toda outra violência, também profana, e não relutar soberbamente com desprezo. Desta maneira devem ser suportados também os fardos, não porque ocorram com justiça e devam ser aprovados, porém como flagelos infligidos por Deus, que devem ser carregados com humildade. Por esta razão, setenças injustas e fardos devem ser temidos não por causa daquele preceito geral: “Entra em acordo com teu adversário no caminho.” [Mt 5.15]. E daquela palavra: “A quem te ferir na face direita, oferece-lhe também a esquerda.”, etc. [Mt 5.39]. Em Rm 12.19: “Não defendais a vós mesmos”, etc. Pois se isto fosse apenas um conselho (como muitos, inclusive teólogos, parecem crer erroneamente), então seria permitido resistir com a mesma liberdade ao papa em seus fardos e suas sentenças injustas como ao turco ou a outros adversários. Entretanto, não se deve resistir absolutamente a ninguém, embora não se deva aprovar a obra deles, para que não haja erro na consciência. Mas este assunto, muito necessário, exige outro tempo e outra obra.


TESE LXX
Têm, porém, a obrigação ainda maior de observar com os dois olhos e atentar com ambos os ouvidos para que esses comissários não preguem os seus próprios sonhos em lugar do que lhes foi incumbido pelo papa.


É uma regra provadíssima dos juristas aquela de que, em todas as concessões, o papa age de tal forma que não prejudica a nenhum outro, a menos que o faça com menção expressa e da plenitude de seu poder, como ensinam também o costume e o estilo da Cúria. Por esta razão, é certíssimo que, ao dar indulgências, ele quer que elas nada mais sejam do que indulgências e que não valham outra coisa do que valem por natureza; permite, porém que elas valham tanto quanto valem, satisfeito com as haver dado, pois em nenhum lugar declara o valor delas. Esta é a incumbência do papa. Contudo, nossos pregoeiros vão mais longe e não apenas se jactam nos púlpitos de que são papas – outros os consideram, mais corretamente, papos -, mas ao nome também conjugam o ofício tanto do papa quanto da Igreja, e nos determinam como que do céu e proclamam com confiança o que são as indulgências, sim, muitíssimo além do que elas são e jamais podem ser, como pode ser provado mesmo a partir de seu último livro. Assim pois, os bispos têm obrigação de proibir os sonhos deles, para não deixar que lobos entrem no aprisco de ovelhas de Cristo, como é expressamente ordenado no livro V, de pe. et re. c. Cum ex eo, e nas Clementinas, no mesmo livro, capítulo Abusionibus, que permitam que seja apresentado ao povo unicamente o que está contido em suas cartas.


TESE LXXI
Seja excomungado e maldito quem falar contra a verdade das indulgências apostólicas.


Pois, embora a distribuição de indulgências seja coisa pequena em comparação com a graça de Deus e com o grande berreiro dos que as pregam, age soberbamente contra a autoridade quem contradiz. Por isto, ele é merecidamente maldito, já que a obediência eclesiástica é tanto mais admirável quanto, também em coisas menores, cede a opinião dele e se humilha. Ora, o que é a verdade das indulgências foi suficientemente debatido até agora e ainda aguarda a determinação da Igreja; só que é certo que elas são relaxações de penas temporais tão-somente, o que quer que afinal sejam. A relaxação de penas, porém, é (como disse) uma dádiva de menor valor que a Igreja pode dar, especialmente se a dá àqueles a quem remitiu a culpa. A remissão da culpa, contudo, é, juntamente com o santo Evangelho, a maior dádiva de todas. Com esta eles não se importam tanto, ou pelo menos a ignoram.


TESE LXXII
Seja bendito, porém, quem ficar alerta contra a devassidão e licenciosidade das palavras de um pregador de indulgências.


Pois tal é o estado da viúva de Cristo, da santa Igreja, hoje em dia, que tudo é permitido a todos, principalmente aos teólogos escolásticos, entre os quais se encontram os que condenam também opiniões verdadeiras, só porque não provieram da fonte deles; a eles, entretanto, é permitido afirmar que Deus faz o pecado, que Deus é a causa do mal, da culpa, e muitas outras coisas. Se algum poeta ou orador (como chamam), ou alguém instruído em grego, latim ou hebraico dissesse isso, seria o pior de todos os hereges. Mas este dano é maior. Se um cristão vende armas aos turcos, ou impede os que se dirigem a Roma, ou viola escritos apostólicos, isso é um crime tão grande, que jamais é dado nenhum poder de remití-lo ainda que seja dado o mais pleno dos poderes. [Tais casos] a Sé Apostólica reserva para si. Então a Igreja agia de maneira tão santa que, observados primeiramente os mandamentos de Deus, queria punir com tanto rigor mesmo coisas tão pequenas. Pois ainda não havia essa Lerna e esse Tártaro de simonias, devassidões, pompas, assassinatos e demais abominações na Igreja.

Ora, se essas coisas são punidas tão duramente, com que rigor cremos que devem ser punidos os que não oferecem aos turcos, mas aos demônios, [e oferecem] não quaisquer armas, mas nossas próprias armas, isto é, a palavra de Deus, contaminando-a com seus sonhos e (como Isaías costuma falar) transformando-a num ídolo por seu espírito, de modo que ela não é um instrumento pelo qual a alma é atraída, mas desviada para falsas opiniões? Porém esse vício é de tal modo permitido em toda parte, que é viciosíssimo que não o considera uma virtude e o maior dos méritos, por quem quer que seja praticado. Assim também o B. Jerônimo se queixa que a Escritura está aberta para todos não para aprender, mas para dilacerar.

[…]

Assim pois, são dignos de bênção os que se esforçam para purificar as Santas Escrituras e para elucidá-las [livrando-as] das trevas das opiniões e dos argumentos humanos, pelos quais nos tornamos pelagianos no pensamento e donatistas na ação. Mas disto tratarei em outra ocasião.


TESE LXXIII
Assim como o papa com razão fulmina aqueles que de qualquer forma procuram defraudar o comércio de indulgências,


Digo mais uma vez, assim como já disse anteriormente (qualquer que seja a intenção pessoal do sumo pontífice), que se deve ceder humildemente ao poder das chaves e favorecê-lo, e que não se deve resistir a ele inconsideradamente. Pois ele é poder de Deus, que, quer seja bem usado, quer seja mal-usado, deve ser temido assim como qualquer outra obra vinda de Deus – ele porém, mais ainda.


TESE LXXIV
muito mais deseja fulminar aqueles que, a pretexto das indulgências, procuram defraudar a santa caridade e verdade.


Pois por mais que o poder deva ser honrado, não é por isto que devemos ser ignavos ao ponto de não reprovar seu abuso ou não lhe resistir. Com efeito, assim todos os santos sustentaram e honraram o poder secular – que o apóstolo também chama de poder de Deus – mesmo em meio às penas e torturas que ele lhes causou; não obstante, abominavam com constância seu abuso. E não o sustentaram porque aqueles tivessem usado o poder corretamente ao persegui-los, mas lhes deixaram a consciência do mal feito e, através da morte, levaram consigo o testemunho e a confissão da inocência, como diz o B. Pedro: “Que ninguém sofra como ladrão”, etc. [1 Pe 4.15]. Assim, se a Igreja ou o pontífice privarem alguém da comunhão dos crentes sem razão, ele deve suportar isso e não condenar o poder. Todavia, não deve temê-lo de tal forma que aprove isso como se tivesse sido bem feito; deve, antes, morrer na excomunhão. Pois está excomungado só por um erro da chave; se aprovar esse erro pedindo para ser absolvido, erra de modo pior ainda. Deve honrar e suportar a chave, mas não aprovar o erro.

Por conseguinte, devem ser fulminados os que pregam as indulgências de tal maneira, que querem que elas sejam vistas como graças de Deus; pois isto é contra a verdade e o amor, que, tão-somente, constituem tal graça. E seria muito melhor que não houvesse indulgências em algum lugar do que tais opiniões fossem semeadas entre o povo. É que podemos ser cristãos sem indulgências; com tais opiniões, porém, não podemos ser senão hereges. Ora, é certo que o sumo pontífice crê ou deve querer que no povo haja primeiramente caridade e misericórdia mútua e que os outros mandamentos de Deus nele floresçam, e assim concede indulgências. Agora, contudo, ele é enganado, porque amor, misericórdia e fé estão quase extintos entre nós, e não apenas esfriaram. Pois se ele soubesse disso, deixaria as indulgências de lado e faria com que o povo voltasse primeiramente à caridade mútua. Assim, eu invoco o Senhor Jesus como testemunha de que o povo em grande parte (alguns dizem: completamente) ignora que obras de caridade são melhores do que indulgências, crendo, pelo contrário, que nada de melhor pode fazer do que comprar indulgências. E nesta opinião herética e pestilenta o povo não tem nenhum censor ou mestre fiel; tem, antes, instantíssimos instigadores por meio dessas pomposas trombetas.


TESE LXXV
A opinião de que as indulgências papais são tão eficazes ao ponto de poderem absolver um homem mesmo que tivesse violentado a mãe de Deus, caso isso fosse possível, é loucura.


Sou obrigado a chamar de insanas as pessoas que têm tal opinião, e devemos pedir perdão à divina Virgem por sermos obrigados a dizer e pensar tais coisas, mas não havia caminho disponível para evitar essa necessidade. Não sei por obra de que diabo aconteceu que o povo espalhou esse rumor em toda parte, quer isso tenha sido realmente dito assim, quer tenha sido entendido assim pelo povo. Embora muitas pessoas, e pessoas conceituadas, asseverassem com firmeza que é assim que se prega em muitos lugares, eu antes me admirei do que acreditei, julgando que tinham ouvido erradamente. Por esta razão, nesta tese não quis argüir qualquer pregador, e sim advertir o povo, que começou a pensar coisas que talvez ninguém tenha dito, pois quer eles as tenham dito, quer não, não me importa, até que eu adquira mais certeza. Entretanto, de onde quer que tenha surgido, essa péssima opinião tinha que ser repelida e condenada. Contudo, não seria de admirar que o povo entendesse tais coisas, pois ouve que, por causa da magnitude das graças, pecados grandes e horrendos são considerados de algum modo levíssimos.

A pregação verdadeira e evangélica consiste em magnificar os pecados tanto quanto possível, para que o ser humano chegue ao temor e a uma penitência autêntica. Por fim, de que serve trovejar com tantos exageros, por causa da vilíssima remissão de penas, com a finalidade de exaltar as indulgências, e mal-e-mal dizer um pio por causa da laubérrima sabedoria da cruz? Sim, como isso não haveria de prejudicar o povo simples, que costuma julgar do valor da palavra conforme a gesticulação e a pompa com que é pregada? Ora, o Evangelho é apresentado sem nenhuma pompa, ao passo que as indulgências o são com toda a pompa, e isto para que o povo creia que o Evangelho não é nada e que as indulgências são tudo.

Visto que ousam clamar de homicídios, latrocínios, libidinagem de toda espécie, blasfêmias contra a virgem Maria e contra Deus são coisas de pouca monta, sendo remitidas através dessas indulgências, é de admirar por que não clamam que são remitidas também aquelas coisas de menor importância que são reservadas na bula da Ceia. “O pontífice não remite”. Vê, pois, que por acaso ele não remita também aquelas coisas – ou, pelo menos, não as remita tão facilmente -, que são muito mais graves do que essas.


TESE LXXVI
Afirmamos, pelo contrário, que as indulgências papais não podem anular sequer o menor dos pecados veniais no que se refere à sua culpa.


Eu não teria apresentado este abrandamento se não quisesse tornar abominável a opinião da tese precedente. Está claro, porém, que nenhuma culpa é perdoada senão unicamente por Deus. Por esta razão, também aqueles grandes pecados não são remitidos por meio de autorizações, mas são declarados perdoados, e sua pena é que é remitida. Digo isto segundo a opinião deles; a minha ficou suficientemente clara acima. Aqui, contudo, deveria ter me demorado mais no pecado venial, que hoje em dia é considerado de tão pouca importância, como se quase não fosse pecado, e, temo eu, para grande ruina de muitos, que roncam seguramente nos pecados, não vendo que cometem crimes. Eu confesso que enquanto li os mestres escolásticos nunca entendi o que e quão grande é o pecado venial. Não sei se eles mesmos o compreendem. Digo brevemente: quem não teme e age assiduamente como se estivesse repleto de pecados mortais dificilmente será salvo alguma vez, porque a Escritura diz: “Senhor, não entres em juízo com o teu servo”. [Sl 143.2]. Pois não só os pecados veniais, como os chamam agora em toda parte, mas também as boas obras não podem resistir ao juízo de Deus, necessitando da misericórdia perdoadora. Pois ele não diz: “Não entres em juízo com o teu inimigo”, mas sim “com o teu servo e filho, que te serve”. Portanto, este temor deveria nos ensinar a suspirar pela misericórdia de Deus e a confiar nela. Onde ele falta, começamos a confiar mais em nossa consciência do que na misericórdia de Deus, não estando cônscios de haver praticado qualquer crime.

Estas pessoas vão cair num juízo horrendo.


TESE LXXVII
A afirmação de que nem mesmo S. Pedro, caso fosse o papa atualmente, poderia conceder maiores graças é blasfêmia contra São Pedro e o papa.

TESE LXXVIII
Afirmamos, ao contrário, que também este, assim como qualquer papa, tem graças maiores, quais sejam o Evangelho, os poderes, os dons de curar, etc., como está escrito em 1 Co 12.


Porque estão sob o poder e na obediência do papa todos quantos têm esses dons na Igreja. Ele pode enviá-los para onde quiser, mesmo que ele próprio não os tivesse pessoalmente – para não dizer que a bula da Ceia, juntamente com seus casos, ainda não está suspensa. Maior ainda seria a graça do sumo pontífice se concedesse, de graça, todas essas faculdades a todos os cristãos que delas necessitassem; depois se, tendo abolido os onerosos cânones, restituísse a liberdade do povo cristão e condenasse a tirania dos [ocupantes de] cargos e simoníacos. Mas talvez essas coisas não estejam em seu poder, pois o inimigo tornou-se forte e a princesa das províncias foi colocada sob tributo. A destra do Senhor fará essa proeza, se formos dignos de obtê-la.


TESE LXXIX
É blasfêmia dizer que a cruz com as armas do papa, insignemente erguida, equivale à cruz de Cristo.


Quem não vê quão descaradas são essas pessoas? O que não haverão de ousar os que ousam tais coisas? Devem as almas redimidas pelo sangue de Cristo ser confiadas a essa gente? A cruz de Cristo vivifica o mundo todo, tendo morto o pecado; aquela cruz armada concede remissão de certas penas – e assim a pena eterna e a temporal são iguais? Porém por que eu haveria de enumerar todas as monstruosidades que se seguem de tal discurso, monstruosidades essas cuja exibição nem o céu poderia suportar?

 

Fonte: Martinho Lutero, Obras Selecionadas - Os Primórdios Escritos de 1517 a 1519. Volume I. Comissão Interluterana da Literatura São Leopoldo. Co-Editoras: Editora Sinodal (São Leopoldo), Concórdia Editora (Porto Alegre), Editora da Ulbra (Canoas). 2004


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