Categoria: As 95 Teses de Lutero Comentadas
Imagem: Martinho Lutero pregando suas 95 teses na porta da Igreja de Wittenberg - The Gospel Coalition
Publicado: 07 de Novembro de 2021, Domingo, 15h46
TESE LXXX
Terão que prestar contas os bispos, curas e teólogos que permitem que semelhantes conversas sejam difundidas entre o povo.
Mas o poder da Igreja é temido; além disso, os erros e ofensas atualmente cometidos contra a Sé Romana são punidos com dupla espada. Todavia, será que por causa disto se deve silenciar? “Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. [Mt 10.28]. “Quem me confessar perante os seres humanos, também eu o confessarei diante de meu Pai”. [Mt 10.32]. Entretanto, admira-me muito quem inventou por primeiro essa glosa de que as duas espadas significam que uma é espiritual (não como o apóstolo a chama, a saber, a espada do Espírito, a palavra de Deus) e a outra, material, de modo a, assim, nos fazerem do pontífice, armado com ambos os poderes, não um pai amável, mas como que um tirano temível, em quem não vemos senão poder por todos os lados.
E esta é a fidelíssima glosa sobre os decretos dos pais, em que tão rigidamente se proíbem as armas aos clérigos. Vê aqui se o Deus irado, vendo que, em lugar da espada do Espírito e do Evangelho, preferimos compreender uma espada de ferro, não agiu justissimamente conosco dando-nos a espada que quisemos e tirando-nos a que não quisemos, de modo que em parte alguma do mundo os estragos das guerras foram mais cruéis do que entre os cristãos, e de modo que, inversamente, a Sagrada Escritura dificilmente foi mais negligenciada do que entre os cristãos. Eis que tens a espada que quiseste! Ó glosa digna do próprio inferno! No entanto, ainda somos de pedra, de modo que não percebemos a ira de Deus. Por que, pergunto eu, aquela amabilíssima inteligência não interpreta também as duas chaves com igual sutileza, a saber, que uma prodigaliza as riquezas do mundo, a outra, porém, as riquezas do céu? A respeito de uma delas a opinião é suficientemente manifesta, porque, segundo os pregadores de indulgências, ela abre incessantemente o céu e faz as riquezas de Cristo transbordarem. Mas ele não pode entender a outra assim, sabedor da voragem avidíssima de riquezas existente na Igreja. Pois não é conveniente à Igreja e ao patrimônio de Cristo dissipar as riquezas do céu. Por isso, a outra chave é a chave da ciência. Se acrescentasse: “A outra espada é a espada da ciência”, se falaria apostolicamente. Em todas essas coisas o furor do Senhor ainda não está afastado, sua mão ainda está estendida, e isto porque é uma coisa extraordinariamente penosa estudar as Sagradas Escrituras. Delas munidos (segundo o apóstolo), destruiríamos fortificações e toda altitude que se levanta contra o conhecimento de Deus. Agrada-nos uma economia desse labor, de modo que não destruímos as heresias ou os erros, mas queimamos os hereges e os que erram. Nisto nos orientamos pelo conselho de Catão – [que consideramos] melhor que o de Cipião – acerca da destruição de Cartago. Sim, [fazemos isto] contra a vontade do Espírito, que escreve que jebuseus e cananeus foram deixados na terra da promissão para que os filhos de Israel aprendessem a fazer guerra e tivessem o hábito da terra. Se S. Jerônimo não me engana, creio que isso foi prefigurado a respeito das guerras contra os hereges. Ou então o apóstolo, por certo, merece crédito ao dizer: “Importa que haja heresias.” [1 Co 11.19]. Nós, entretanto, dizemos: “De forma alguma. Importa queimar os hereges e, assim, arrancar a raiz junto com os frutos, sim, o joio junto com o trigo.” O que diremos quanto a isto, exceto dizer com lágrimas ao Senhor: “Tu és justo, Senhor, e reto é o teu juízo” [Sl 119.137]? Pois que outra coisa merecemos? Ora, menciono essas coisas também para que os begardos, nossos vizinhos, hereges, povo infeliz, que se regozija com o fedor romano (assim como o fariseu em relação ao publicano), mas não se compadece – para que, digo, eles não creiam que nós desconhecemos nossos vícios e nódoas e não se ensoberbeçam desmesuradamente contra nossa miséria, se parece que os silenciamos e aprovamos. Nós conhecemos nossa desgraça e sofremos por causa dela, mas não fugimos como os hereges e não passamos ao largo do semimorto, como se temêssemos nos manchar com pecados alheios. Devido a esse insensato temor eles temem de tal maneira que não têm vergonha de se gloriar que fogem para não serem manchados. Tão grande é o amor [deles]! Nós, porém, quanto mais miseravelmente sofre a Igreja, tanto mais fielmente assistimos e acorremos chorando, orando, advertindo, suplicando. Pois assim ordena o amor, que levemos as cargas uns dos outros, não como faz o amor dos hereges, que só procura o proveito do outro para ser, antes, carregado e para não suportar nada de molesto dos pecados dos outros. Se Cristo e seus santos tivessem querido agir desse modo, quem teria sido salvo?
TESE LXXXI
Essa licenciosa pregação de indulgências faz com que não seja fácil, nem para homens doutos, defender a dignidade do papa contra calúnias ou perguntas, sem dúvida argutas, dos leigos.
Embora meus amigos já há muito tempo me tachem de herege, ímpio, blasfemo, porque não compreenderia a Igreja de Cristo e as Santas Escrituras no sentido católico, eu, apoiado em minha consciência, creio que eles estão enganados e que amo a Igreja de Cristo e sua beleza: “Mas quem me julga é o Senhor, ainda que eu não esteja consciente de nada.” [1 Co 4.4]. Sou obrigado a expor todas essas minhas teses porque vi que alguns eram infectados por falsas opiniões, que outros riam disso pelas tavernas e zombavam manifestamente do santo sacerdócio da Igreja, o que era ocasionado pela excessiva licença com que se pregavam as indulgências. Não se deveria provocar o povo dos leigos, através de um maior número de ocasiões, a odiar os sacerdotes, pois ele, já há muitos anos ofendido por nossa cobiça e nossos péssimos costumes, infelizmente só honra o sacerdócio por causa do medo do castigo.
TESE LXXXII
Por que o papa não evacua o purgatório por causa do santíssimo amor e da extrema necessidade das almas – o que seria a mais justa de todas as causas -, se redime um número infinito de almas por causa do funestíssimo dinheiro para a construção da basílica – que é uma causa tão insignificante?
Esta pergunta é suscitada não pelo papa, mas pelos questores, porque, como eu disse acima, em parte alguma se lê qualquer decreto do sumo pontífice sobre essa questão. Por isso, que a respondam os que a suscitaram. Eu responderia todas essas perguntas com uma palavra, tanto quanto pode ser feito em favor da honra dos pontífices, a saber, que ninguém os informa sobre a verdade da questão, e freqüentemente acontece que fazem más concessões aos que os informam mal.
TESE LXXXIII
Por que se mantêm as exéquias e os aniversários dos falecidos e por que ele não restitui ou permite que se recebam de volta as doações efetuadas em favor deles, quando já não é justo orar pelos redimidos?
Conheço muitos que se fatigaram comigo por causa desta pergunta, e, apesar de muitas saídas, laboramos em vão. Dissemos também que se as almas saíssem voando, então os ofícios em prol delas instituídos se transformariam em louvor de Deus, assim como acontece quando morrem crianças e infantes. Outro disse outra coisa, mas ninguém satisfez. Por fim, comecei a debater e a negar que os discursos deles sejam verdadeiros, para talvez assim finalmente arrancar dos mais doutos o que se deveria responder aqui.
TESE LXXXIV
Que nova piedade de Deus e do papa é essa: por causa do dinheiro, permitem ao ímpio e inimigo redimir uma alma piedosa e amiga de Deus, porém não a redimem por causa da necessidade da mesma alma piedosa e dileta, por amor gratuito?
TESE LXXXV
Por que os cânones penitenciais – de fato e por desuso já há muito revogados e mortos – ainda assim são remidos com dinheiro, pela concessão de indulgências, como se ainda estivessem em pleno vigor?
TESE LXXXVI
Por que o papa, cuja fortuna hoje é maior que a dos mais ricos Crassos, não constrói com seu próprio dinheiro ao menos esta uma Basílica de São Pedro, ao invés de fazê-lo com o dinheiro dos pobres fiéis?
Quanto a esta e a perguntas semelhantes eu digo: não nos cabe julgar a vontade do papa, mas apenas suportá-la, ainda que por vezes fosse iniqüíssima, como disse acima. Não obstante, ele e os pregadores de indulgências devem ser advertidos, para que não se dê ao povo ocasião tão manifesta para falar, como fez outrora o sacerdote Eli, de modo que, por causa de seus filhos, as pessoas detraiam o sacrifício do Senhor. Todavia, se alguma vez foi intenção do papa construir a Igreja de São Pedro com tanto dinheiro arrebanhado, e não, antes, daqueles que abusam da complacência do papa em proveito próprio, não é necessário expor por escrito o que em toda parte se fabula sobre essa construção. O Senhor conceda que eu esteja mentindo; essa extorsão não poderá correr bem por muito tempo.
TESE LXXXVII
O que é que o papa perdoa e concede àqueles que, pela contrição perfeita, têm direito a remissão e participação plenária?
Essa pergunta provém do fato de que muitos, mesmo juristas, dizem que não sabem o que é a remissão da culpa por meio das chaves. A este respeito expus minha opinião acima.
TESE LXXXVIII
Que benefício maior se poderia proporcionar à Igreja do que se o papa, assim como agora o faz uma vez, da mesma forma concedesse essas remissões e participações 100 vezes ao dia a qualquer dos fiéis?
Quanto a isto [ouvem-se] coisas realmente assombrosas. Alguns imaginam um tesouro comum que seria aumentado através das indulgências. Por isso, se uma pessoa obtiver remissão plenária sete vezes ao dia, como pode acontecer em Roma, tanto mais bens obterá. Estes contradizem a si mesmos, porque, segundo eles, as indulgências implicam gastar – portanto, não juntar – o tesouro. Outros pensam que os pecados são perdoados do mesmo modo como a divisão de um [objeto] contínuo [é feita] ao infinito. Assim como a madeira é dividida em [pedaços] sempre divisíveis, da mesma forma são remitidos os pecados, sendo sempre ulteriormente remissíveis, embora se tornem sempre menores. Confesso que não sei o que dizer.
TESE LXXXIX
Já que, com as indulgências, o papa procura mais a salvação das almas do que o dinheiro, por que suspende as cartas e indulgências outrora já concedidas, se são igualmente eficazes?
Isto é o que mais inquieta e desagrada, e, confesso, com grande espécie. Pois essa suspensão é a única causa por que as indulgências se tornam sem valor. Assim, eu não posso negar que tudo o que o pontífice faz deve ser suportado, porém me dói o fato de não poder demonstrar que o que ele faz é o melhor. Não obstante, se eu tivesse que falar a respeito da intenção do papa sem a intromissão dos mercenários, diria que se deve presumir o melhor a respeito dela, falando com breviedade e confiança. A Igreja necessita de uma reforma, o que não é tarefa de uma única pessoa, do pontífice, nem de muitos cardeais – como o provou, a ambas as coisas, o último concílio -, mas de todo o mundo, mais ainda: unicamente de Deus. Mas só aquele que criou os tempos conhece o tempo dessa reforma. Nesse meio-tempo, não podemos negar falhas tão manifestas. As chaves sofrem abuso e estão a serviço de cobiça e ambição. O turbilhão ganhou ímpeto, e nós não podemos pará-lo. Nossas iniqüidades nos respondem, e a palavra de cada um é um fardo para ele.
TESE XC
Reprimir esses argumentos muito perspicazes dos leigos somente pela força, sem refutá-los apresentando razões, significa expor a Igreja e o papa à zombaria dos inimigos e desgraçar os cristãos.
Pois enquanto são reprimidos mediante o terror, o que é ruim fica pior. Quão mais correto seria que fôssemos ensinados a compreender essa ira de Deus, a orar pela Igreja e a tolerar tais coisas na esperança de uma reforma futura do que provocarmos coisa pior ao querer obrigar que vícios tão manifestos sejam considerados virtudes. Pois, se não merecêssemos ser vexados, Deus não permitiria que só seres humanos fossem senhores na Igreja. Ele nos daria pastores segundo seu coração, os quais, ao invés de indulgências, nos dariam a medida de trigo a seu tempo. Agora, porém, mesmo que haja bons pastores, eles não podem chegar a seu ofício. Tão grande é a ira do furor do Senhor.
TESE XCI
Se, portanto, as indulgências fossem pregadas em conformidade com o espírito e a opinião do papa, todas essas objeções poderiam ser facilmente respondidas e nem mesmo teriam surgido.
Como? A saber, se tivesse pregado que as indulgências devem ser consideradas assim como são, apenas como remissões de penas, não como meritórias e inferiores às boas obras, jamais alguém teria sido levado a pôr em dúvida qualquer coisa em relação a elas. Agora, por causa de sua excessiva magnificação, suscitam questões insolúveis, para seu próprio aviltamento. Pois a opinião do papa não pode ser outra senão que as indulgências são indulgências.
TESE XCII
Fora, pois, com todos esses profetas que dizem ao povo de Cristo: “Paz, paz!” sem que haja paz!
TESE XCIII
Que prosperem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: “Cruz! Cruz!” sem que haja cruz!
TESE XCIV
Devem-se exortar os cristãos a que se esforcem por seguir a Cristo, seu cabeça, através de penas, da morte e do inferno;
TESE XCV
e, assim, a que confiem que entrarão no céu antes através de muitas tribulações do que pela segurança da paz.
A respeito de cruz e penas – um sermão raro hoje em dia – foi o dito o suficiente acima.
Ao leitor sincero e erudito:
Não creias que este escrito foi publicado para ti, leitor erudito e sincero (mas que necessidade há dessa advertência?), como se eu temesse que ele te parecesse ciceroniano. Para teu deleite, tens o que ler em outra parte. Precisei tratar com meus semelhantes de nossas questões, isto é, de questões rudes e bárbaras. Assim aprouve aos céus. Eu não teria me atrevido a apelar para o nome do papa para essas minhas ninharias se não tivesse visto meus amigos confiarem o mais possível no terror em relação a ele, e também porque o peculiar ofício do papa consiste em tornar-se devedor a sábios e ignorantes, a gregos e bárbaros. Passa bem!
No ano do Senhor de 1518.
Fonte: Martinho Lutero, Obras Selecionadas - Os Primórdios Escritos de 1517 a 1519. Volume I. Comissão Interluterana da Literatura São Leopoldo. Co-Editoras: Editora Sinodal (São Leopoldo), Concórdia Editora (Porto Alegre), Editora da Ulbra (Canoas). 2004