Categoria: Sociologia
Imagem: João Calvino - ReasonableTheology.org
Publicado: 25 de Setembro de 2020, Sexta Feira, 00h24
Sobre as ideias políticas em Calvino e na tradição reformada rios de tinta ja morreram. Um exemplo é Quentin Skinner, professor da Universidade de Cambridge, no segundo tomo de sua monumental obra Los Fundamentos del pensamiento político moderno (1978), dedicado à Reforma Protestante, que não vacila em qualificar Calvino como “um mestre da ambigüidade”[1]. Ao citá-lo, Denis Crouzet, em sua biografia de Calvino, admite esta ambigüidade situando-a como parte “dos próprios mecanismos da fé restabelecida”[2].
Além disso, acrescenta que o pensamento calviniano flutuou não apenas segundo a evolução dos acontecimentos e de certas contribuições teóricas externas, “mas também, estruturalmente”. Sua “inteligência pragmática” sempre o conduziu de forma “a estar em condições de mudar virtualmente em relação a si mesmo”[3].
1 – Um tema sempre polêmico
Comecemos pelo princípio. Em “Divina Glória”, o último capitulo de seu livro, Crouzet traça um perfil bastante diversificado das posturas políticas do reformador, a partir do postulado de que Calvino foi também “um grande técnico da infiltração doutrinária, o grande ordenador de uma batalha no dia-a-dia”.[4] Com isso em mente, Crouzet expõe como o escatologismo de Calvino pode ser lido no contexto de um internacionalismo que o levou, sem sair de Genebra, a ter influência na Inglaterra, Alemanha, Escócia, Polônia e Hungria. Para Calvino, “o reino de Cristo devia testemunhar a reconciliação de todos os homens, quaisquer que fossem suas raças, situação social e identidade política ou nacional. Em um dia não determinado, o mundo seria uno”.[5] Tal otimismo enfrentaria enormes barreiras, como o imprevisível papel dos monarcas e da nobreza. As implicações políticas desta percepção certamente seriam provadas frente à crua realidade.
Frente à atuação do papado, a partir de 1555, a situação dos heterodoxos perseguidos levou à consideração do problema da autoridade política. Em princípio, Calvino a definiu como uma autoridade legítima, pois para ele, os poderosos deste mundo nada mais são que funcionários de Deus, que receberam de suas mãos a autoridade para redigir leis e, como têm esta autoridade por delegação divina, não existe motivo para a rebelião. Não há dúvida de que esta teoria da submissão irá se enfraquecer diante do dever de fazer com que “a glória de Deus avance diante do clamor dos fiéis famintos de fé no reino da França”.
2 – A Necessidade do Estado
No item cujo título é “Necessidade”, fiel a um impecável estilo de esboçar sucintamente os diversos episódios da vida do reformador, Crouzet desenvolve suas ideias básicas sobre o Estado. Em primeiro lugar, a perspectiva de Calvino sobre a relação com o evangelho é a de um conservador, pois a existência do Estado não é fortuita, pois foi estabelecida por Deus. Portanto, a resistência a este estado de coisas por parte do anabatismo lhe parecia inaceitável, pois equivalia a “deixar-se cair na barbárie e na negação de Deus”.[6] O Estado é necessário da mesma forma que o são a comida, o sol, o ar. “Sua necessidade, que é essencial para a vida em comum, ressalta ao mesmo tempo o direito divino e o direito natural”. Além disso, tem a missão de evitar os escândalos que obscurecem a glória de Deus e estabelecer o que cabe a cada um. O Estado, para ampliar seu significado teológico, surgiu também por causa do pecado, pois se este não houvesse infectado a vida humana sequer existiria “e o homem traria a lei no fundo de seu coração”, nas palavras de Marc Édouard Chenevière (La pensée politique de Calvin, 1937). As leis constituem um recurso contra o pecado e preservam a humanidade entre os seres humanos. “Sua função é conseguir que o homem seja advertido por sua injustiça, demonstrando a justiça de Deus”.[7]
Tendo em vista tudo isso e como advertiu Michael Walzer, a política calviniana é realista, mas não amoral. Desde a primeira edição da Instituição, ao dirigir-se a Francisco I, Calvino valoriza a presença do poder político nesse sentido, lembrando-lhe que todo príncipe é ministro de Deus e tem uma série de responsabilidades diante dele. Seu fundamento para isso, vem do apóstolo Paulo.
Crouzet destaca que no sermão no. 55, sobre Deuteronômio 7, Calvino critica amplamente os governantes que se deixam levar pelos cortesãos e optam por estabelecer a paz mediante acordos mantidos pelos abusos de alguns. No sermão no. 51 evoca a violência como dever do Estado, o que possibilita que este desempenhe seu papel às vezes com uma crueldade também necessária, pois “o homem não se deve considerar mais misericordioso que Deus”.[8] O magistrado perfeito, além de pouco presente até então, é aquele que assume uma postura paternal para com o povo, como guardião da paz, seu protetor e protetor da justiça. Isto não impediu que Calvino tivesse “uma visão pessimista do poder político, opressor do povo e assassino de inocentes, que não vacila em ser “um bandoleiro por direito”, chegando a cair em “vícios enormes e estranhos”.
Portanto, fica muito difícil asseverar que Calvino preferiu este ou aquele regime político. Fazer isso implicaria em seguir algum dos estereótipos anacrônicos que lhe têm sido atribuídos como o de sua hipotética “opção republicana”. O certo é que Calvino insistiu em relacionar a política com a ética, como o faz no terceiro sermão sobre Deuteronômio 1 (1555), no qual demonstra que os que vierem a ocupar cargos públicos devem ser eleitos com extremo cuidado, devendo ser pessoas virtuosas, tementes a Deus, opostas à avareza, prudentes e experientes. Calvino expõe com toda clareza o apego à piedade em sua famosa carta ao rei da França: “Engana-se quem espera uma grande prosperidade para um Reino que não seja governado pelo cetro de Deus, ou seja, por sua santa Palavra, pois o mandato celestial não pode mentir”.
Desse modo, segundo Calvino, um rei infame é um castigo enviado por Deus ao povo, embora “inclusive em sua perversidade, detenha o mesmo poder que Deus concede aos bons reis”.[9] Aí aparece a ambiguidade calviniana manifesta praticamente sem qualquer dissimulação! Apesar disso, esta seção conclui com a observação de que, assim como Deus ordenou obediência ao tirano Nabucodonosor, devem se contentar os súditos em pedir a ajuda divina contra o príncipe desumano. Cedo ou tarde a providência divina atuará. Mesmo assim, Calvino se encarregou de esclarecer quanto à atitude dos monarcas: “…não é racional que nos consideremos súditos de quem, como rei, de sua parte nada nos acrescente.” Uma vez entre aberta a porta da dúvida, a seção seguinte do livro de Crouzet completará a compreensão das ideias política calvinianas.
3 – O Germe da Rebelião
Na segunda parte do capítulo, “Divina glória”, com que Crouzet encerra sua esplêndida biografia de Calvino, ele rastreia muito bem o modo pelo qual o reformador criticou abertamente a autoridade política: o rei Henrique II foi o alvo de seus ataques e “invectivas proféticas”, sendo o 31º. sermão, sobre Deuteronômio 5, um exemplo. Aí ele afirma que “quando se exerce mal o poder, rompe-se com a obediência, (a qual) pode se transformar em uma desobediência que, para Calvino, não é mais que passiva, espiritual”. Quando pais, mães e magistrados querem se o opor a Deus, e (citação de Calvino) ‘levantar-se contra esta tirania, ao ponto de usurpar aquilo que pertence somente a Deus, querendo apenas nos desviar de sua obediência’, ocorre uma exceção à regra: não devem ser obedecidos” (p. 296).
Este confronto ocorre a partir de marcos espirituais e teológicos, ou seja, quando os governantes pretendem, de maneira idolátrica, suplantar a Deus. O conflito é evidente: trata-se de “usurpadores que ofendem a honra de Deus”. Entretanto, Calvino não abre imediatamente as portas à rebelião, pois a perspectiva enunciada não implica a necessidade da rebelião.
A resistência deve ser, em primeiro lugar, espiritual. Contudo, explica Crouzet, não se prende a uma visão fechada da história, uma vez que esta é condicionada “por um princípio de obediência ativa ou de desobediência passiva”. Sua finalidade “não consiste em permitir que o homem tome em suas mãos a própria história por iniciativa própria, com sua vontade corrompida e sua inteligência embrutecida”, pois fazer isso implicaria em cair na tentação de converter-se em seu próprio amo. Largo é o caminho que vai destas afirmações até a possibilidade real de resistir à tirania dos governantes ímpios.
Uma vez que todo o “sistema calviniano” parte e se remonta a Deus e a humanidade deve viver por Ele e para Ele, a única forma de entender os caminhos teológicos até a rebelião política, que se encontra em germe aqui é portanto, aquela em que “frente a um governante injusto somente a majestade divina está em condições de realizar uma libertação”. Portanto, não busquemos uma resposta linear à pergunta sobre como, onde e quando enfrentar um governante que apresente estas características em nome de Deus. Pelo contrário, trata-se de perceber como se concatenam as coordenadas teológicas e históricas para tomar decisões políticas concretas.
4 – Os Condicionamentos Teológicos da Rebelião
Crouzet lembra, em primeiro lugar, a afirmação de Calvino que a majestade de Deus pode intervir quando sua bondade, poder e providência determinem que surja um eleito “para castigar um domínio injusto e libertar da calamidade o povo iniquamente afligido”. O esquema bíblico que sustenta essa ideia está fora de discussão, pois basta lembrar a história de Moisés: o caudilho experimenta uma vocação libertadora que o coloca às ordens da vontade divina. Os cristãos primitivos sabiam muito bem que os demônios dirigiam o mundo. Mesmo assim, estavam convencidos de que todo aquele que se dedicava à política, ou melhor, que se valia do poder e da violência era porque tinha um pacto com o diabo. Por conseguinte, a realidade é que em seu dinamismo, já não é o bom e que só produz o bem nem o mau o mal, mas que, frequentemente, ocorre o contrário. Não levar em conta isso na política, é pensar de maneira pueril.[10]
Apesar disso, em terceiro lugar, Crouzet chama a atenção para o contexto político do século XVI e adverte que Calvino chegou a “descobrir na história casos de magistrados inferiores aos quais competia, entre o lacedemônios, os atenienses e os romanos, colocar um freio no “abuso” dos reis e assim criar uma forma institucional de resistência” (p. 297). Em seu tempo, ele acreditou que esse mesmo papel seria desempenhado nos reinos pelas assembléias dos três estados, às quais reconhece o direito de resistir “à intemperança ou crueldade dos reis”. Seu dever seria não trair a liberdade popular, pois foram instituídas como uma espécie de “tutores pela vontade de Deus”.
Estas ideias não mostram um Calvino inovador nem muito menos que isso, pois já Lutero, influenciado por pensadores reformados radicais adotou esquemas que podiam legitimar a resistência contra Carlos V. Nesse sentido, Crouzet observa que talvez tenha sido Andréas Osiander (1498-1552) o primeiro teólogo que defendeu a resistência ativa ao redefinir a concepção paulina de poder, embora Bucer seria quem teria radicalizado o pensamento político entre 1530-1535. Para ele, Romanos 13 não se refere ao poder mas aos poderes, de tal modo que, se o magistrado superior não cumpre a missão de preservar o povo contra as tentações do maligno, os magistrados inferiores deveriam resistir ativamente a eles em nome de Deus. Segundo Crouzet, essas ideias constituem a fonte do imaginário político de Calvino.
O ponto de ruptura surge quando o ser humano interior, que permanece na fé apesar das pressões e opressões do governante injusto e sujeito a Deus, é confrontado com a afirmação fundamental de que a liberdade cristã é uma liberdade de obediência a Cristo, uma arma ideológica contra toda forma de tirania, uma vez que lhe será possível transcender as imposições legalistas que já não poderiam impedir sua “livre obediência” à vontade de Deus.
A principal libertação que nunca está em jogo, é a espiritual, a qual nenhum governante poderá interditar. Por isso, Calvino, frente aos tiranos, exalta inicialmente o primado da paciência, quando os crentes se voltam para a providência divina, mediante aquilo que Pierre Mesnard classifica como “fidelidade heróica” em El arranque de la filosofia política em el siglo XVI (1977). Assim, diante dos abusos do governante, as alternativas para que um crente não coloque em risco sua fidelidade a Deus são o exílio ou o martírio.
Todavia, “para além do rei injusto se encontra o rei dos reis, que está por cima de tudo” e nada nem ninguém pode separar do amor de Deus. Portanto, para Calvino, os fiéis que se encontravam dispersos por terras dominadas por príncipes maus são como cativos, mas não devem deixar de honrar a Deus. E não deveriam se sujeitar a uma religião subjetiva, alienante, pois todo o ser é consagrado a Deus e seu destino é glorificá-lo. “A obediência a Deus constitui a ordem natural do homem” (p. 300). Em meio a tudo existe uma convicção profunda de que a justiça de Deus domina plenamente em suas vidas e por isso a atitude paciente está bastante distante da resignação, pois se trata de uma ação em Cristo, tal como expressou Calvino em seus sermões sobre o livro de Jó. Portanto, em qualquer circunstância, “o povo deve glorificar a Deus em sua justiça” (ênfase acrescentada) e a vida secular não pode ser entendida como se pudesse se esgotar no presente.
Para Calvino é certo que a luta contra a impiedade e a injustiça é uma luta entre Deus e satanás, mas mesmo assim, conclui Crouzet: “O calvinismo é uma militância espiritual que, sem se valer da rebelião contra os poderes seculares e apesar dos instrumentos a que estes recorrem para manter o poder de satanás, pode e deve trabalhar para fazer avançar a glória divina” (p.301). No entanto, entre os seguidores de Calvino, como Teodoro Beza, John Knox e Christopher Goodman, surgiria mais tarde uma sólida teoria teológica sobre a rebelião contra os poderes injustos.
“Para Calvino é certo que a luta contra a impiedade e a injustiça é uma luta entre Deus e satanás, mas mesmo assim, conclui Crouzet: ‘O calvinismo é uma militância espiritual que, sem se valer da rebelião contra os poderes seculares e apesar dos instrumentos a que estes recorrem para manter o poder de satanás, pode e deve trabalhar para fazer avançar a glória divina”. (Denis Crouzet)
Notas
1 – Q. Skinner, Los Fundamentos del pensamiento político moderno. II. La Reforma. México, Fondo de Cultura Econômica, 1986, p. 198. A frase completa é: “Calvino é em cada momento um mestre da ambigüidade, e embora seja indiscutível seu compromisso básico com uma teoria da não-resistência, em sua argumentação ele introduz um bom número de exceções”. Em português: Quentin SKINNER, Fundamentos do Pensamento Político Moderno. S. Paulo: Companhia das Letras, 1996.
2 – D. Crouzet, Calvino. Trad. de I. Hierro. Barcelona; Ariel, 2001, p. 338.
3 – Idem.
4 – D. Crouzet, ibidem, p. 287.
5 – Idem, p. 288. Ênfase acrescentada.
6 – Ibidem, p. 289.
7 – Ibidem, p. 290.
8 – D. Crouzet, p. 292.
9 – Idem, p. 295.
10 – M. Weber, El político y el científico. Documento preparado pelo Programa de Redes Informáticas e Produtivas da Universidade Nacional de General San Martín (UNSAM), Argentina, http://www.bibliotecabasica.com.ar, em HACER. Hispanic American Center for Economic Research, http://www.hacer.org/pdf/WEBER.pdf, p. 34.
Fonte: Revista Teologia e Sociedade, No 6, 06/11/2009 - São Paulo/SP