Categoria: Martinho Lutero
Imagem: Leipziger Disputation zwischen Luther und Eck, Gemälde von Julius Hübner (1806-1882) (zerstört) - Simul Justus et Peccator Blogspot
Publicado: 11 de Dezembro de 2016, Domingo, 01h27
Introdução
Ao final da entrevista com Miltitz[2] (4 e 5 de janeiro de 1519), Lutero prometera não publicar mais nada sobre a questão das indulgências, desde que seus adversários não publicassem mais nada contra ele.
Entrou então em cena o dr. João Eck[3], principal teólogo da Universidade de Ingolstadt e renomado debatedor. Eck fora um dos primeiros a atacar, no início de 1518, as 95 teses de Lutero, numa obra (não impressa) intitulada Obeliscos, na qual já chamava Lutero de hussita fanático e de herege. Lutero respondeu de forma igualmente violenta em seus Asteriscos[4].
André Karlstadt[5], na época deão da Faculdade de Teologia de Wittenberg e colega de Lutero, publicou, sem o conhecimento deste, 406 teses contra os Obeliscos de Eck (maio de 1518), por sentir que um membro de sua faculdade fora atacado. Teve início, assim, uma polêmica entre Karlstadt e Eck em que, a certa altura, Lutero serviu de pacificador, mas sem resultado. Os dois decidiram então resolver suas divergências sobre a graça e o livre arbítrio num debate público.
Em outubro de 1518, em Augsburgo, Lutero conversou com Eck. O diálogo travado na ocasião deve ser considerado amistoso e tratou, basicamente, de questões relacionadas com o debate que seria travado entre Eck e Karlstadt.
Ainda antes que a Universidade de Leipzig, o local escolhido, concordasse em sediar o debate, Eck publicou, a 29 de dezembro de 1518, 12 teses, enviando cópia a Wittenberg. A primeira dessas teses estava dirigida contra a primeira das 95 teses de Lutero. Também as demais nada tinham a ver com as questões que pretendia debater com Karlstadt. Estavam todas relacionadas com afirmações de Lutero, muitas delas distorcidas.
Eck acreditava ter encontrado um ponto especialmente vulnerável nas Explicações do debate sobre o valor das indulgências de Lutero (sua defesa das 95 teses), onde este afirmara que nos dias de Gregório Magno[6] a Igreja Romana ainda não tinha o primado sobre as Igrejas da Grécia[7]. Contra essa sentença, Eck formulou sua 12a tese, visando fazer Lutero condenar-se como herege com suas próprias palavras: “É falso afirmar que antes dos tempos de Silvestre[8] a Igreja Romana ainda não tenha tido o primado sobre as demais Igrejas; afirmamos, pelo contrário, que aquele que possuía a sé e a fé de S. Pedro sempre foi considerado o sucessor de Pedro e o vigário-geral de Cristo.” Na verdade, Lutero não fizera a afirmação a ele atribuída, mas mesmo assim ela correspondia a suas convicções.
Ao receber as teses de Eck, Lutero considerou-se atacado e liberado da promessa de não escrever obras polêmicas, respondendo com 12 teses contra as de Eck. Salientou que nenhuma das 12 teses de Eck tratava de “livre arbítrio e graça”, o tema da controvérsia com Karlstadt. Na 12a tese, indo além da tese de Eck, Lutero fez a mais ousada afirmação contra a autoridade do papa já ouvida naquele século: “Demonstraram que a Igreja Romana é superior a todas as outras a partir dos mais frios decretos dos pontífices romanos surgidos nos últimos 400 anos; contra esses, porém, estão as histórias comprovadas de 1.100 anos, o texto da Escritura Divina e o decreto do Concílio de Nicéia, de todos o mais sagrado.” Lutero não está querendo afirmar que o papado só tenha surgido no século XII. O que ele afirma é que a codificação dos decretos papais, desde Gregório IX (1227-1241), possibilitou aos papas a imposição de suas pretensões, especialmente na Alemanha. Mesmo assim, deve-se concordar que a formulação de sua tese é ambígua.
Os amigos de Lutero assustaram-se com as formulações e temeram por sua vida. Lutero acalmou-os, dizendo que se tivesse que morrer, morreria. A 19 de fevereiro de 1519, Eck escrevia a Lutero, dizendo que esperava poder debater com ele em Leipzig, já que era ele o autor das heresias e não Karlstadt. Pouco depois, Eck publicava suas teses, acrescidas de mais uma, contada como a 7a, de modo que a última, a mais polêmica, citada acima, passou a ser a 13a. Deu-lhes o título “Teses contra Lutero, a respeito das quais se há de debater em Leipzig“.
Como resposta, Lutero igualmente acrescentou mais uma tese às suas. Também neste caso, a 12a passou a ser a 13a. Publicou-as, então, em 16 de maio de 1519, sob o título Debate e defesa do fr. Martinho Lutero contra as acusações do dr. João Eck. Naquele momento ainda não tinha recebido permissão do duque Jorge da Saxônia[9] para participar do debate, até então só combinado entre Eck e Karlstadt. Mesmo assim preparou-se durante meses, intensivamente, com o objetivo de defender suas teses, sobretudo a 13a, estudando a história da Igreja e do direito canônico. Resumiu suas pesquisas em torno da questão da autoridade papal no tratado intitulado Comentário de Lutero sobre a 13a tese a respeito do poder do papa[10], que bem poderia ter recebido o título “Origem do primado papal”. O escrito foi impresso para poder ser divulgado caso Lutero não pudesse estar presente em Leipzig. Após o Debate de Leipzig, Lutero providenciou uma segunda edição. Eck publicaria em resposta, no ano de 1520, sua obra Do primado de Pedro[11].
Uma análise do Comentário revela a espantosa capacidade de Lutero de, em poucos meses, fazer uma pesquisa e apresentar seus resultados em forma de livro; para isso, um pesquisador comum precisaria de anos de trabalho. Nesta obra, Lutero analisa o problema como o faria um pesquisador moderno. Revela não só seu inegável conhecimento da Bíblia, mas também domínio dos pais da Igreja e do direito canônico, assuntos estes que não eram de sua área.
Comparada com a literatura medieval que se voltava contra o papado, a argumentação de Lutero no Comentário não apresenta novidade. Mesmo a suposição de que o anticristo domina a Cúria pode ser encontrada entre os cátaros, valdenses e discípulos de Wyclif[12]. Novidade é apenas a comprovação do abuso feito com a Bìblia para provar as pretensões papais e a afirmação de que o primado papal, em termos jurídicos, só teria surgido sob o governo de Constantino IV (669-683). Novidade é, além disso, a afirmação de que a Igreja grega e as demais Igrejas orientais jamais teriam estado sob o domínio do papa. Em sentido positivo, o escrito de Lutero traz uma novidade teológica, que não encontramos nos pensadores medievais. Pela primeira vez, Lutero faz a constatação pública: “Onde a palavra de Deus é pregada e crida, ali está a Igreja; por isso ela é designada de reino da fé, porque seu rei não é visto, mas é objeto da fé. Eles, no entanto, fazem dela um reino de coisas visíveis, ao darem-lhe um chefe visível. Não sei se a fé cristã pode suportar que se estabeleça na terra outra cabeça universal da Igreja além de Cristo.” Aqui temos um novo conceito eclesiológico, diferente do dos movimentos medievais. Lutero já não consegue acompanhar a teoria papal e, menos ainda, a eclesiologia papal. Mesmo assim, ainda se esforça, ao longo do texto, para provar que a existência do papado pode ser conciliada com suas colocações. No fundo, porém, está convicto de que o papado é o anticristo.
A 27 de junho, um dia antes da eleição de Carlos V[13], imperador do Sacro Império Romano Germânico, começou o Debate de Leipzig entre Eck e Karlstadt. De 4 a 14 de julho debateram Eck e Lutero. O tema crucial do debate foi a origem do poder do papado. Eck defendeu sua origem divina; Lutero a contestou. Eck retrucou que esta era uma das heresias pelas quais Hus[14] fora condenado à fogueira pelo Concílio de Constança (1414-1418), forçando Lutero a admitir que alguns dos ensinamentos de Hus condenados por esse concílio eram verdadeiramente cristãos e evangélicos e que, ao condená-los, o concílio errara. Com isto, Eck logragra seu intento. Levara Lutero a confessar-se adepto de heresias condenadas por um concílio, o que, fatalmente, implicaria a condenação de Lutero como herege pelo papa. Para consegui-la, Eck foi a Roma, após festejar sua pretensa vitória no Debate de Leipzig.
Lutero voltou a Wittenberg desiludido com a grosseria de Eck, com o transcorrer do debate e com a ausência de resultado positivo, segundo seu juízo, embora o debate lhe houvesse trazido várias adesões. Como de costume, pôs-se a trabalhar e escreveu os Comentários de Lutero sobre suas teses debatidas em Leipzig[15]. Essa obra contém sua defesa das 13 teses debatidas em Leipzig. Foi publicada em fins de agosto de 1519.
O Debate de Leipzig foi um dos momentos decisivos na carreira de Lutero. Se de Augsburgo, de sua audiência com o cardeal Caetano[16] (12 a 14 de outubro de 1518), Lutero retornara convencido de que os papas podiam errar e já tinham errado, do Debate de Leipzig (e de sua preparação para ele) Lutero trouxe a convicção de que a autoridade do papa é de origem humana e não divina, de que a Igreja de Roma não é superior às demais, de que não só os papas, mas também os concílios podem errar e erraram, e de que a única autoridade infalível em matéria de religião é a Bíblia.
Além disso, tanto Lutero quanto seus amigos, assim como seus adversários, perceberam pela primeira vez com inteira clareza que distância separava a teologia da cruz de Lutero da teologia proposta por romanistas como Eck, Caetano e pelos demais defensores do papado. Na trajetória de Lutero, o Debate de Leipzig foi o ponto a partir do qual não era mais possível retornar. Conciliação ou retratação já haviam se tornado impossíveis. A excomunhão, juntamente com a sua consequência lógica, a fogueira, pareciam agora apenas uma questão de tempo.
Mário L. Rehfeldt
Martin N. Dreher
Frei Martinho Lutero saúda o distinto leitor!
Meu querido Eck está furioso, prezado leitor. Consagrou à Sé Apostólica outra folha de debate, cheia de sua fúria e de acusações contra mim, acrescentando às suas teses anteriores mais uma, fortemente irritada. Isto representa uma bela ocasião para responder de uma vez por todas aos seus ultrajes, se eu não tivesse receio de que isso poderia atrapalhar o futuro debate. Mas tudo tem seu tempo. Por ora basta.
Aduzindo sentenças de vários santos pais, Eck acusou-me de inimigo da Igreja. Compreende isso da seguinte maneira, prezado leitor: com “Igreja” ele designa suas próprias opiniões e as de seus heróis que se empenharam pela causa das indulgências. Isso porque ele é um consagrador da Sé Apostólica e fala à maneira de seus supostos heróis, que usam as palavras da Escritura e dos pais assim como Anaxágoras[17] lidava com os elementos. Depois de as dedicarem à Sé Apostólica, as palavras logo se transubstanciam a seu bel-prazer (a bem dizer: prodigiosamente), transformando-se de qualquer coisa em qualquer coisa. Prestam-se também para significar aquilo que sonham em delírio ou que fantasiam na impotência de sua inveja feminil. Finalmente, seus conhecimentos os abandonam de forma tão infeliz, que jamais compreendem direito nem mesmo aquilo que de bom aprenderam e, como diz o apóstolo, “não entendem nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem afirmações” [1 Tm 1.7], isto é, não sabem combinar predicado com sujeito nem sujeito com predicado numa sentença categórica. Esperamos que, no debate vindouro, ele nos apresente ainda outros testemunhos com a mesma habilidade, para que também as crianças possam se divertir. Eu havia esperado que Eck reconhecesse a limitação de sua cabeça através da carta de Erasmo[18], o mestre das ciências, e, depois, através da insuperável apologia do dr. Karlstadt[19]. Porém a paciência de Eck supera tudo; mesmo que desagrade a todos os demais, basta-lhe agradar ao menos a si mesmo e a seus heróis.
Mas que ele me difama como herege e boêmio[20], afirmando que estou reavivando cinzas velhas, etc. – isto ele faz por sua modéstia ou por seu ofício de consagração, pela qual tudo que consagra está consagrado, não usando outro óleo senão o veneno de sua língua.
Quero, porém (para não tolerar esse ultraje), que saibas, prezado leitor, que, no que tange à monarquia do pontífice romano, não desprezo o venerável consenso de tantos fiéis na Itália, Alemanha, França, Espanha, Inglaterra e outros países. Somente uma coisa peço ao Senhor: que jamais permita que eu diga ou pense algo que agrade a Eck, tal como ele é agora; nem que, por causa do livre arbítrio, eu eventualmente exponha Cristo, o Filho de Deus, ao ridículo; nem que, por causa da Igreja Romana, eu negue que Cristo vive e reina na Índia e no Oriente; ou que – para propor também eu um enigma a esse festivo fazedor de enigmas – eu não volte a abrir, junto com Eck, a cloaca constantipolitana[21] nem celebre novos martírios da Igreja por causa dos antigos homicídios da África. Para que não sejas prejudicado pelo escândalos de seu enigma envenenado, quero que saibas, estimado leitor, que alguns incluem entre os artigos de João Hus também aquele em que ele afirmou que a excelência papal do pontífice romano se deve ao imperador, o que também Platina[22] escreve claramente. Eu, porém, expus que essa monarquia se prova por decretos pontificais, não imperiais. Assim, a própria Igreja Lateranense canta, a respeito do alcance de sua autoridade, que, tanto por decreto do papa quanto do imperador, ela é a mãe das Igrejas, etc. Esses versos são bem conhecidos[23]. E agora? Necessariamente para Eck também essa Igreja seria hussita e estaria reavivando cinzas. Então, já que ela canta por ordem do papa, com a concordância dos cardeais, de toda Roma e da Igreja universal, não admira que Eck, enfastiado das cinzas velhas e em virtude de seu ofício de consagração, deseje dedicar à Cátedra Apostólica um novo holocausto, reduzindo a novas cinzas o papa, os cardeais e a própria Igreja Lateranense. Graças a Deus, resta ao menos um Eck de mentalidade católica, aquele singularíssimo perseguidor da singularidade, visto que todos os outros estão arruinados pelo veneno da Boêmia. Mas por que haveria de causar surpresa que os sofistas dessa espécie não conhecem os fatos históricos, uma vez que não entendem nem mesmo suas próprias sentenças categóricas? Eu naturalmente nunca tratei esse tema, nem pensei em debater sobre ele. Porém Eck já há muito tempo está ulcerado pelo mais profundo ódio contra mim. Ele sabe que essas sentenças são odiosas. Desesperando da possibilidade de vitória em outras coisas, ao menos neste ponto esperava provocar indignação contra mim, uma vez que aprendeu (como se diz) a bater no leãozinho ante os olhos do leão, fazendo de um debate em torno da verdade uma tragédia de ódio.
Mas eles que acusem o quanto quiserem, consagrem suas adulações à Sé Apostólica, consagrem ao banquinho e ao tamborete; eles que consagrem também à caixa apostólica (visto que esta é o que mais tem a ver com a questão das indulgências e da monarquia); eles que fiquem manquejando ao redor do altar do seu Baal, clamem mais alto (porque ele é um deus, talvez esteja conversando, ou a caminho, ou numa estalagem, ou certamente está dormindo) para que ele acorde[24]. Para mim é suficiente que contra Cristo a Sé Apostólica nada quer nem consegue. Nessa questão também não terei medo nem do papa nem do nome do papa, menos ainda dessas peninhas e bonecas[25]. Somente a uma coisa aspiro: que o roubo do meu nome cristão não venha em prejuízo da puríssima doutrina de Cristo. Pois aqui não quero que alguém espere paciência de mim, não quero que Eck procure modéstia, seja sob o hábito preto, seja sob o branco[26]. Maldita seja a glória daquela ímpia clemência com a qual Acabe deixou escapar Ben-Hadade, inimigo de Israel[27]. Pois aqui quero ser fortíssimo não apenas no morder (o que dói a Eck), mas também insuperável em devorar, para que possa devorar de uma só bocada (para falar com Isaias[28]) os Silvestres[29] e Civestres, os Caetanos e Ecks e o resto dos falsos irmãos que combatem a graça cristã. Eles que aterrorizem alguém outro com suas adulações e consagrações; Martinho despreza os sacerdotes e consagradores da Sé Apostólica. Quanto ao resto, veremos no debate e após ele. Porém também o dr. André Karlstadt, já há muito tempo vencedor sobre o erro de Eck, virá não como um soldado desertor[30], mas receberá confiantemente esse leão morto[31] e por ele derrubado. Entrementes permitimos que a miserável consciência se alegre com a esperança simulada do triunfo e com a vâ jactância das ameaças. Por isso também eu acrescento às minhas teses uma décima terceira, oposta à cólera de Eck. Deus fará com que saia algo de bom do debate que Eck mancha com tanto mal, ódio e infâmia.
Passa bem, caro leitor.
Contra erros novos e velhos Martinho Lutero defenderá as seguintes teses na Universidade de Leipzig:
1. Toda pessoa peca diariamente, mas também faz penitência diariamente, como ensina Cristo: “Fazei penitência“[32] [Mt. 4.17], com exceção de um certo novo justo que não necessita de penitência; pois o agricultor celeste limpa diariamente também as videiras frutíferas.
2. Negar que a pessoa peca também ao fazer o bem, que o pecado venial é venial não por sua natureza, mas somente pela misericórdia de Deus, ou que também após o Batismo remanesce pecado na criança, significa calcar com os pés a Paulo e a Cristo de uma só vez.
3. Quem afirma que a boa obra ou a penitência começam com a aversão aos pecados, antes do amor à justiça, e que nisso não se peca, a essa pessoa contamos entre os hereges pelagianos[33], mas também provamos que ela comete uma tolice contra seu santo Aristóteles[34].
4. Deus transforma o castigo eterno em pena temporal, isto é, a de carregar a cruz. Os cânones ou os sacerdotes não têm qualquer poder de impor ou de tirar essa cruz, mesmo que, seduzidos por aduladores perniciosos, possam ter essa presunção.
5. Todo sacerdote deve absolver o penitente de castigo e culpa, ou então peca; da mesma forma peca o prelado superior se, sem causa razoabilíssima, reserva coisas ocultas, por mais que isso contrarie a prática da Igreja, isto é, dos aduladores.
6. Pode ser que as almas satisfaçam pelos pecados no purgatório; mas que Deus exige do moribundo mais do que morrer de boa vontade, é afirmado com a mais infundada temeridade, porque não pode ser provado de modo algum.
7. Revela que não sabe nem o que é fé, nem o que é contrição, nem o que é livre arbítrio quem balbucia que o livre arbítrio é senhor de seus atos, sejam bons, sejam maus, ou quem sonha que alguém é justificado não somente pela fé na Palavra, ou que a fé não é suprimida por um crime, qualquer que seja.
8. Certamente contraria a verdade e a razão [afirmar] que as pessoas que morrem a contragosto têm falta de amor e que, por isso, sofrem o horror do purgatório – mas só se verdade e razão forem a mesma coisa que a opinião dos pseudoteólogos.
9. Sabemos que os pseudoteólogos afirmam que as almas no purgatório estão certas de sua salvação e que a graça não é aumentada nelas, mas nos admiramos desses homens eruditíssimos por não poderem apresentar, sequer a um tolo, uma razão verossímil para esta sua fé.
10. É certo que o mérito de Cristo é o tesouro da Igreja e que os méritos dos santos nos ajudam; mas que ele seja um tesouro de indulgências, isso ninguém faz crer, a não ser um adulador sem-vergonha, os que se afastam da verdade e algumas práticas e usos inventados da Igreja.
11. É perder a razão afirmar que as indulgências são um bem para o cristão; na verdade, elas são um defeito da boa obra. O cristão deve rejeitar as indulgências por causa do abuso, pois o Senhor diz: “Por amor de mim apago as tuas iniqüidades” [Is 43.25], não por amor do dinheiro.
12. Que o papa pode remitir todo castigo devido pelos pecados tanto nesta vida quanto na futura e que as indulgências são de proveito para quem não cometeu pecado grave[35], isso sonham sossegadamente os sofistas totalmente indoutos e os aduladores pestilentos, embora não possam demonstrá-lo sequer com um vestígio.
13. Demonstram que a Igreja Romana é superior a todas as outras a partir dos mais frios decretos dos pontífices romanos surgidos nos últimos 400 anos; contra esses, porém, estão as histórias comprovadas de 1.100 anos, o texto da Escritura Divina é o decreto do Concílio de Nicéia, de todos o mais sagrado.
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[1] Disputatio et excusatio f. Martini Luther adversus criminationes d. Johannis Eccü, W A 2,158-61. Tradução de Walter O. Schlupp.
[2] Carlos von Miltitz, 1490-1539. Nobre saxão. Núncio de Leão X. Foi enviado pelo papa para entendimentos com Lutero, sem conseguir superar o conflito.
[3] 1486-1543. Professor na Universidade de Ingolstadt. Adversário aguerrido de Lutero. Atacou Lutero em Obelisci. No debate entre Karlstadt e Eck em Leipzig (1519), Lutero foi o adversário real de Eck, e este obteve a bula Exsurge, Domine contra Lutero (1520). Enchiridion adversus Lutherun foi o documento mais popular por ele escrito.
[4] Asterisci Lutheri adversus Obeliscos Eccü (“Asteriscos de Lutero contra os Obeliscos de Eck”), W A 1,278-314.
[5] André Bodenstein, ca. 1480-1541, natural de Karlstadt/Meno, doutor em Teologia e tomista, foi professor e colega de Lutero na Universidade de Wittenberg. Inicialmente não pôde acompanhar as descobertas reformatórias de Lutero. Depois tornou-se companheiro de lutas do reformador. Em 1519, ambos participaram do Debate de Leipzig. No entanto, em 1521 surgem as primeiras diferenças entre ambos, quando Karlstadt procurou concretizar a Reforma, abolindo a missa e declarando eliminado o celibato sacerdotal. Diferenças na compreensão da Eucaristia e do Batismo aprofundaram essas diferenças ainda mais. Karlstadt renunciou a sua cátedra e tornou-se pastor em Orlamünde. Em setembro de 1524, Lutero conseguiu que ele fosse expulso dessa localidade. Depois de breve estada em Estrasburgo e de muitas andanças, enfrentando dificuldades para manter-se, Karlstadt recebeu acolhida em Basiléia. Ali faleceu no Natal de 1541, vitimado pela peste.
[6] Gregório I. Foi cognominado “o Grande”. Exerceu o papado de 590 a 604. Versado em literatura patrística. Conhecido como orador sacro e autor de hinos religiosos.
[7] Cf. Explicações do debate sobre o valor das indulgências, p. 116.
[8] Bispo de Roma de 314 a 335. Exerceu suas funções na época em que Constantino era imperador. Nesse período realizou-se o Concílio de Nicéia, do qual não participou.
[9] Cf. p. 426, nota 7.
[10] Pp. 267ss.
[11] De primatu Petri.
[12] João Wyclif, ca. 1320-31/12/1384, filósofo e teólogo em Oxford, atacou em uma série de exigências reformistas as bases dogmáticas da Igreja Romana. Exigiu a independência da autoridade secular do poder espiritual, afirmando, além disso, que as propriedades da Igreja deveriam ser propriedades do Estado, sendo a Bíblia o único fundamento da Igreja, a qual, como comunidade dos eleitos, tem apenas a Cristo como seu cabeça. Wyclif também atacou a doutrina da transubstanciação.
[13] 24/2/1500-21/9/1558, imperador alemão. Filho de Filipe, o Belo (filho de Maximiliano I), e de Joana, a Louca (filha de Fernando e Isabel de Espanha), tornou-se, ainda jovem, herdeiro presuntivo dos territórios de Habsburgo (Áustria, Burgúndia, Boêmia e Hungria), dos reinos espanhóis, com Nápoles, Sicília, e da América espanhola. Em 1516, assumiu o trono espanhol, e, em 1519, os príncipes-eleitores, corrompidos pelo dinheiro dos Fugger, elegeram-no imperador alemão. Carlos V entendeu-se como imperador universal, responsável pela Igreja, a qual deveria defender de todos os inimigos, internos e externos. A partir dessa concepção, viu-se em constantes confrontos com Francisco I, de França, com os papas, com os turcos e com os partidos que buscavam uma reforma da Igreja. No final de sua vida, viu que a idéia do sacro império por ele defendida não tinha mais futuro e retirou-se, em 1557, para o convento de San Yuste, na Estremadura.
[14] João Hus, 1373(?)-1415. Precursor da Reforma. Formou-se pela Universidade de Praga, da qual se tornou também reitor, depois de sagrado sacerdote. Foi discípulo de Wyclif. Atacou a corrupção do clero. Entre outros desmandos da Igreja, denunciou o comércio de indulgências. Hus ensinou que a Escritura é a única norma para a doutrina, que a Igreja é a comunhão de todos os crentes e que Cristo, e não o papa, é a cabeça da Igreja. Reteve a transubstanciação e a invocação dos santos. Foi condenado como herege pelo Concílio de Constança no dia 6 de julho e queimado no mesmo dia.
[15] Pp. 333ss.
[16] Cf. p. 199, nota 3.
[17] Filósofo grego conhecido por apresentar deduções aparentemente lógicas para chegar a conclusões obviamente absurdas.
[18] Erasmo de Roterdã (1466-1536). Humanista holandês com formação teológica. Dispendeu muito tempo em centros de cultura da Europa. O seu estilo em latim lhe deu notoriedade. Editou em 1516 o primeiro Novo Testamento grego impresso. Lutero o usou para a sua tradução. Simpatizou com Lutero nos ataques à corrupção da Igreja, mas discordou da doutrina de Lutero. Erasmo atacou Lutero no tratado De libero arbitrio (“Do arbítrio livre”). Lutero respondeu com De servo arbitrio (“Do arbítrio cativo”; W A 18,600-787). Foi considerado um dos homens mais cultos de sua época.
[19] Defensio Andreae Carlstadii adversus eximii d. Joanni Eckii monomachiam.
[20] Alusão aos adpetos de João Hus, da Boêmia.
[21] Constantipolitana, no original. Trata-se, aparentemente, de uma alusão à cidade de Constança, sede do concílio que condenou João Hus (cf. nota 14 supra).
[22] Um dos autores do Liber pontificalis, coleção de biografias dos papas.
[23] O trecho desses versos mencionados por Lutero reza: Dogmate papali datur et simul Imperiali Quod sim cunctarum Mater, Caput Ecclesiarum. (“Por decreto papal e, ao mesmo tempo, imperial, é-me dado ser a mãe de todas, a cabeça das Igrejas.”) Cf. A 2,159, nota 2, onde os versos estão transcritos na íntegra.
[24] Cf. 1 Rs 18.26s.
[25] Trata-se de um jogo de palavras no original: papa-pappus-puppa.
[26] Os agostinianos (como Lutero) usavam hábito preto, os dominicanos (como Eck), branco.
[27] Cf. 1 Rs 20.
[28] Cf. Is 9.11.
[29] Cf. p. 199, nota 4.
[30] Eck havia chamado Karlstadt, em carta, de “soldado covarde”.
[31] Quando Eck quis inculpar Tetzel, Karlstadt lhe escreveu que desejava lutar com um leão, não com um asno.
[32] Poenitentiam agite, no original. Também seria possível traduzir “arrependei-vos”.
[33] Cf. p. 15, nota 13 e p. 179, nota 357.
[34] Cf. p. 36, nota 7 e p. 167, nota 312.
[35] Non criminosis, no original.
Fonte: Martinho Lutero, Obras Selecionadas, Vol. 1, p. 257-265. Editora da Ulbra Canoas