LUTERO E OS JUDEUS DE ELBEN M. LENZ CÉSAR DA ED. ULTIMATO


Categoria: Martinho Lutero
Imagem: Judeus e Martinho Lutero - Protestantismo.com.br
Publicado: 03 de Novembro de 2020, Terça Feira, 19h54 - 1 comentário

Repórter – Li em algum lugar que há quase duzentos anos, em meados do século 14, um judeu foi colocado em tormento na cidade francesa de Chilon para admitir que seus irmãos de raça haviam provocado a famigerada peste negra, envenenando os poços.

Lutero – Isso de fato aconteceu em setembro de 1348. O pobre homem, em sua agonia, acabou concordando com o torturador para ficar livre do sofrimento. Baseada nessa falsa confissão, não somente na França, mas também em todo o norte da Europa, os judeus sofreram uma forte perseguição: eram proibidos de possuir terras, de trabalhar como artesãos e de praticar vários outros ofícios. Muitos foram assassinados em toda parte, inclusive em Estrasburgo, Stuttgart, Dresden, Frankfurt, aqui na Alemanha. Depois de três anos e 350 massacres, dezenas de milhares de judeus foram mortos e mais de duzentas comunidades, aniquiladas. (1)

Repórter – Com o fim da peste, os judeus voltaram a viver em segurança?

Lutero – Menos de cinquenta anos depois, eles foram outra vez usados como bodes expiatórios para explicar a guerra civil que devastou o reino de Castela, ao sul da Espanha. Surgiram então os movimentos de perseguição aos judeus. A violência foi se intensificando até atingir o clímax em 1391, com o assassinato de centenas, quem sabe milhares, de judeus. (2)

Repórter – O doutor está se referindo a Inquisição?

Lutero – Embora o Tribunal do Santo Ofício tenha sido instituído no ano de 1184 pelo Concílio de Verona e o emprego da tortura tenha sido sancionado 68 anos mais tarde pelo papa Inocêncio VI (em 1252), a Santa Inquisição só se instalou na Espanha em 1480.

Repórter – Com força total?

Lutero – Sim, com força total. Quatro dias depois de eu ter completado 8 anos, a Inquisição mandou cinco judeus e seis marranos para a estaca, em Ávila, cidade onde nasceu a religiosa Teresa de Jesus. A acusação que pesava sobre eles, sabidamente mentirosa, é que tinham profanado a hóstia e crucificado uma criança cristã. O suposto crime obrigou os chamados reis católicos Fernando e Isabel a assinarem, no dia 31 de março de 1492, o Édito de Expulsão dos judeus da Espanha, caso eles não se tornassem cristãos. (3)

Repórter – Havia muitos judeus na Espanha na época?

Lutero – Mais da metade da população judaica da Europa morava na Espanha, uns 330 mil. O segundo maior grupo vivia na Itália e o terceiro, na Alemanha. (4)

Repórter – O que o doutor chama de marranos?

Lutero – Aqueles que são forçados pela perseguição antissemita a encobrir o fato de serem judeus. Os portugueses preferem chamá-los de cristãos-novos. São também chamados de nuevos conversus.

Repórter – O doutor acredita que uma conversão não espontânea é válida?

Lutero – Não acredito e não concordo com o método. Mas Roma acredita e dele se vale. O papa Inocêncio III, que governou a Igreja de fevereiro de 1198 a julho de 1216, afirmava que “todo aquele que for conduzido ao cristianismo pela violência, pelo temor e pela tortura […] recebe a marca do cristianismo e pode ser obrigado a observar a fé cristã“. (5)

Repórter – O método funciona?

Lutero – Funciona aparentemente. O cronista Abraham ben Solomon de Torrutiel afirma que em 24 anos (de 1391 a 1415) 200 mil judeus trocaram a Torá pela cruz. (6)

Repórter – Pra valer?

Lutero – Claro que não, exceto em alguns poucos casos. Muitos desses “conversos” vivem uma vida dupla: fora de casa, observam o mínimo necessário da nova religião e, em casa, o máximo possível da vida antiga. Publicamente são cristãos e, clandestinamente, continuam judeus. Vivem uma grande tensão. Casam-se como que duas vezes: uma na Igreja, sob o rito cristão; outra, em casa, sob o rito judaico. Levam seus recém-nascidos para serem batizados pelo padre e, ao chegarem em casa, lavam a água benta da cabecinha das crianças e circuncidam os meninos.

Repórter – O doutor acaba de dizer que alguns realmente se convertiam ao cristianismo.

Lutero – É verdade. Eu diria que há três tipos de judeus batizados: os convictos, os conformados e os arrependidos. Os convictos levam seu batismo a sério. Sob o ponto de vista judaico, esses são os verdadeiros meshumadim, isto é, apóstatas. Os conformados não ligam para coisa alguma: eram judeus indiferentes e agora são cristãos indiferentes. Não têm a maior intenção de fazer teshuvah, isto é, de algum dia retornar ao judaísmo. E os arrependidos são aqueles que não se conformam por terem trocado a morte pelo batismo. (8)

Repórter – Além da perseguição, das ameaças, da tortura e da fogueira, há outros métodos para transformar um judeu em marrano?

Lutero – Em alguns casos, os cristãos tentam seduzir os judeus e outros incrédulos mediante a oferta de vantagens materiais e privilégios legais. Em muitos outros casos, por reconhecer que o uso da força é totalmente contrário ao espírito do evangelho, a Igreja tem usado o método certo, que é a persuasão. Coube ao espanhol Ramón de Peñaforte, da Ordem dos Pregadores, morto há muitos anos (em 1275), a glória de ter fundado as primeiras escolas especializadas para treinar pregadores versados em hebraico para evangelizar os judeus. Em pouco tempo, as Universidades de Bolonha, Paris, Oxford, Salamanca e Sevilha instituíram cátedras de hebraico e árabe especiais para a formação de debatedores, preparados linguística e teologicamente para a tarefa de explicar aos judeus e turcos que é irracional e um pecado resistir ao cristianismo. (9)

Repórter – Há debates públicos?

Lutero – A primeira grande disputa foi realizada em Paris, em 1240. O debate mais famoso foi travado em Barcelona, terra natal de Peñaforte, em 1263. Do lado cristão estava Pablo Christiani, um ex-judeu, agora frade dominicano, e do lado judeu, o rabi Moses ben Nahmânides. A guerra verbal durou quatro dias e foi travada na presença do rei, de sua corte e de altos dignitários da Igreja. Nessa longínqua semana, os cristãos tiveram de ouvir uma palavra muito dura do já septuagenário Nahmânides: “Os cristãos derramam mais sangue que todas as outras nações“. (10)

Repórter – Além desse Pablo Christiani, o doutor pode citar outros nomes de judeus que passaram para o lado do cristianismo?

Lutero – Agora, só me lembro de Nicholas Donim, que participou da disputa de Paris, Gerônimo de Santa Fé (ex-Joshua Lorki), Pablo de Santa Maria (ex-Solomon ha-Levi) e Abner de Burgos. Este último era um grande talmudista e erudito em hebraico. Ao contrário do apóstolo Paulo, a maioria dos judeus convertidos torna-se inclemente com seus antigos irmãos de fé.

Repórter – Há pouco, o doutor fez menção do Édito de Expulsão dos judeus da Espanha. Ele se cumpriu?

Lutero – Até 31 de julho de 1492, quatro meses depois do édito e menos de três meses antes da descoberta da América, 50 mil judeus saíram da Espanha com destino à Itália, ao norte da África e à Turquia. (11) O mais notável deles foi o filósofo e exegeta bíblico Isaac Abravanel, de 55 anos, que havia sido tesoureiro de Afonso V, de Portugal, e pessoa de confiança de Fernando e Isabel. Em Veneza, onde se fixou, Abravanel escreveu um grande número de obras exegéticas e filosóficas. Foi um dos primeiros a estudar a Bíblia sistematicamente (1503).

Repórter – Os judeus foram expulsos só da Espanha?

Lutero – Foram expulsos da Inglaterra em 1290, da França em 1394, da Espanha em 1492, de Portugal em 1497, e de várias cidades da Alemanha no penúltimo ano do século passado (1499). Observe que as expulsões aconteceram de século em século, na última década de cada um deles.

Repórter – É verdade que crianças foram sequestradas e batizadas à força em Portugal?

Lutero – Posso fornecer até a data certa do crime. No primeiro dia da festa judaica da Páscoa, em 19 de março de 1497, sob o protesto de alguns clérigos mais conscienciosos e do bispo Dom Fernando Coutinho, uma grande quantidade de crianças foi arrebanhada, batizada e segregada. Os pais só conseguiram reaver seus filhos convertendo-se também. Depois das crianças, homens foram arrastados pelas barbas e mulheres, pelos cabelos, às fontes batismais. Mães desesperadas se suicidavam e os pais agarravam os filhos pequenos e pulavam para dentro de poços. (12)

Repórter – Parece que o pior pedaço da história da perseguição aos judeus aconteceu não no final do século passado, mas no final do século 14.

Lutero – Sim. Foi em junho de 1391. Começou em Sevilha. Uma multidão, incitada pelo arquidiácono Ferrant Martinez, pôs fogo nos portões que davam entrada ao bairro e o invadiu. Muitos homens foram mortos, mulheres e crianças arrebanhadas e, como José do Egito, vendidas aos mouros. Os que não conseguiram fugir, foram batizados à força e os mais resistentes, morreram mártires. As lindas sinagogas de Sevilha foram transformadas em igrejas e os bens da comunidade judaica, confiscados (os perseguidores que chegaram primeiro ocuparam as casas, lojas e oficinas). Depois, o movimento se alastrou para Córdoba, Burgos, Toledo e muitas outras cidades. Os rolos da Torá foram profanados. As primeiras vítimas da plebe foram os rabinos. Um deles Rabi Judá, matou a mulher e os filhos para, em seguida, suicidar-se, com o propósito de não serem conspurcados pela turba. Seus corpos foram mutilados e jogados no rio. A bem da verdade, devo acrescentar que Martinez fez tudo isso em desobediência ao arcebispo de Sevilha, Dom Pedro Gómez Barroso. (13)

Repórter – É verdade que os judeus da Espanha usavam um distintivo judaico?

Lutero – Cedendo a exigências das cortes de Castela e Sevilha, um tal de Trastamara, filho bastardo do falecido Afonso XI, voltou a impor o porte do distintivo judeu, cujo uso era ignorado até então. (14)

Repórter – De quem foi a idéia original?

Lutero – Foi decisão do Quarto Concílio de Latrão, que reuniu em 1215 mais de 1.200 prelados e muitos representantes de príncipes seculares. Um de seus setenta decretos ordenava que judeus e muçulmanos usassem trajes distintivos. (15)

Repórter – Esse ódio para com os judeus sempre existiu na história da Igreja?

Lutero – Até o século 11, os judeus gozavam de uma situação relativamente boa, ainda que com razoável frequência a vida nos países não-cristãos fosse melhor. (16)

Repórter – Ao folhear a edição de 1520 de seu livro Pequeno Sermão sobre a Usura, encontrei o desenho de um judeu que ameaça um cachorro com um pedaço de pau com a seguinte legenda: “Eu me chamo Rabino e quero lucro o tempo todo, honra tua dívida ou, então, paga juro“…

Lutero – Foi apenas uma charge para ilustrar o livro. O artista se valeu da fama que os judeus têm da prática da usura. Todo mundo sabe que nesse sermão não me dirijo aos judeus, mas aos cristãos, que têm a obrigação de se guardarem da usura e de qualquer transação comercial desonesta.

Repórter – Na opinião do doutor, como deveríamos atrair os judeus para Cristo?

Lutero – Embora a grande maioria dos judeus esteja endurecida, sempre existem alguns, por menor que seja o número, que se convertem a Cristo e creem nele. Por conseguinte, não devemos tratar os judeus com tanta aspereza, pois ainda existem futuros cristãos entre eles e alguns se convertem todos os dias. Se vivermos cristamente e conseguirmos converter os israelitas a Cristo com bondade, este será, sem dúvida, o procedimento correto. Quem irá se tornar cristão ao observar que estes tratam as pessoas de forma tão pouca cristã? Assim não funciona. Devemos dizer aos judeus a verdade com brandura. Se não quiserem ouvir, devemos deixá-los ir. Quantos cristãos há que não se importam com Cristo e também não ouvem sua palavra, sendo piores do que os gentios e os judeus! (17)

Repórter – Ouvi dizer que o doutor estaria disposto a submeter à circuncisão caso pudesse, por meio disso, converter um judeu.

Lutero – Eu tinha 40 anos na época quando tornei isso público (30 de agosto de 1523). (18) Paulo afirma que nem o prepúcio nem a circuncisão tem algum valor. O que importa é ser nova criatura em Cristo (1 Co 7.19; Gl 6.15). Isto é, não é pecado ter um prepúcio, como pensam os judeus. Também não é pecado circuncidar-se, como pensam os pagãos. Ambas as coisas são livres e boas, caso alguém as faça sem pensar que com isso seja justo e venha a salvar-se. (19)

Repórter – Fica bastante claro que o doutor é totalmente contrário à evangelização dos judeus por meio da violência.

Lutero – Não se deve chamar tal coisa de evangelização. Mesmo que se queimem todos os judeus e hereges à força, nenhum deles é nem será convencido nem convertido. (20)

Repórter – O prólogo do Evangelho Segundo João afirma que “mesmo em sua própria terra e entre seu próprio povo, os judeus, Jesus não foi aceito” (Jo 1.11). O doutor diria que os judeus são inimigos de Cristo?

Lutero – Nossos teólogos e pontífices de hoje entendem que “os inimigos da cruz de Cristo” não são ninguém mais além de turcos e judeus. (21) Os teólogos de Colônia, num escrito contra João Reuchlin, disseram abertamente que os judeus “são cachorros infiéis e inimigos do nome de Cristo“. Porém, a rigor e de maneira mais própria, são eles mesmos “os inimigos da cruz de Cristo“. Quando Paulo se refere a essas pessoas, ele não se refere a judeus, mas a cristãos que não vivem o paradigma fornecido pelas Escrituras nem alcançam a maturidade necessária (Fp 3.17-19). A carapuça não se dirige aos judeus, mas aos “amigos e companheiros” de Jesus que se portam como seus inimigos (Sl 38.11).

Repórter – Quem é esse João Reuchlin?

Lutero – João Reuchlin é uma porção de coisas: humanista, hebraísta, grecista, latinista e exegeta, além de ser tio-avô de Filipe Melanchthon, meu colega na Universidade de Wittenberg. Publicou o primeiro dicionário latino aos 23 anos e a primeira gramática hebraica aos 51. Escreveu também uma sátira contra os mouros intitulada Epístolae Obscurorum Virorum (Cartas de Homens Obscuros). Reuchlin travou grande polêmica com os dominicanos de Colônia, que eram a favor do confisco de todos os livros judaicos, principalmente do Talmude. Para escapar da condenação prescrita pelo papa Leão X, sujeitou-se à autoridade da Igreja. Morreu dois anos depois, em 1522, aos 67 anos. No mesmo ano, morreu também João Pfefferkon, aos 53. Pfefferkon era um judeu convertido ao cristianismo que, ligado aos dominicanos de Colônia, defendia tese contrária à de Reuchlin.

Repórter – Consta que o judeu Judá Abravanel dava como certa a vinda do Messias para o ano 1503.

Lutero – Você está trocando os nomes. Quem esperava a vinda do Messias para 1503 morreu cinco anos depois, sem ver realizada a sua previsão de que ele viria ao mundo em 1503. (22) Era o filósofo e exegeta Isaac Abravanel e não o filósofo e físico Judá Abravanel. Ambos eram judeus e tinham o mesmo sobrenome. Judá era 28 anos mais velho que Isaac. Não era só Isaac que alimentava essa multissecular esperança de abraçar o Messias em pessoa. O monge franciscano suíço Sebastião Münster, que acaba de traduzir o Evangelho Segundo Mateus para o hebraico, conta que os judeus fizeram penitência durante todo o ano de 1503 para apressar a vinda do Messias. Na distante Ístria, bem ao sul da Europa, o judeu Ascher Lemlin fez a mesma previsão.

Repórter – O doutor também esperava a vinda do Messias para essa ocasião?

Lutero – Em 1503 eu era um rapaz de 20 anos e fazia meu curso de artes liberais na Universidade de Erfurt. Nem nessa ocasião nem em qualquer outra esperei a vinda do Messias. A vida inteira eu tenho esperado a volta de Jesus em poder e muita glória. A diferença entre judeus e cristãos é que eles esperam a vinda e nós esperamos a volta. Os judeus estão atrasados 1.500 anos no tempo, com referência ao cumprimento da profecia que fala do advento do Príncipe da Paz. Jesus já veio uma vez e, como diz a Epístola aos Hebreus, “aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que o aguardam” (Hb 9.28).

Repórter – O que os judeus esperam do Messias?

Lutero – Entendo que a vinda do Messias, na concepção judaica, se restringe à esperança de que o Deus uno será adorado em toda a terra e, em consequência, todos os homens encontrarão sua fraternidade na paternidade de Deus. Então, a paz, a justiça e a liberdade prevalecerão em todo o mundo. A essa altura, o papel histórico do povo judeu – em especial o seu sofrimento – será justificado e reconhecido. (23)

Repórter – O que o doutor acha da esperança do judeu de voltar à sua terra?

Lutero – No meu modo de entender, essa tão desejada e alardeada volta física e definitiva à Palestina já foi há muito cumprida, de modo que a esperança dos judeus é completa e simplesmente vã e perdida. Isso aconteceu por intermédio do rei Ciro e dos persas, 538 anos antes do nascimento de Jesus (Ed 1.1-4), quando os judeus de novo vieram de todos os países para a terra e para Jerusalém. (24)

Repórter – Os judeus algum dia reconhecerão que o Jesus do Novo Testamento é o Messias prometido no Antigo Testamento?

Lutero – É certo que os judeus ainda dirão acerca de Cristo: “Bendito é o que vem em nome do Senhor!” Deus faça que esse tempo esteja próximo como o esperamos. Eu já ficaria feliz se pudesse conduzir os judeus à sua própria fé verdadeira, àquela que tiveram seus pais, porque a maior parte deles não leva a sério nem mesmo o judaísmo que dizem professar. Creio que a volta de Jesus acarretará a conversão dos judeus. Do mesmo modo como José, vendido ao Egito, acabou por ser reconhecido pelos seus irmãos, os judeus virão a Cristo no fim dos tempos. Mas, ninguém se iluda, qualquer esforço humano nesse sentido será insuficiente, tal o endurecimento de coração que se apoderou deles. Sugiro o diálogo e não o constrangimento, a leitura comum da Bíblia em vez da confrontação violenta. Nossa “evangelização”, se assim posso dizer, tem sido uma vergonha, além de omissa quanto ao anúncio de Jesus. Ouvi de judeus piedosos, feitos cristãos pelo batismo forçado, a queixa de nunca terem ouvido qualquer coisa acerca de Cristo da parte de seus batizadores e mestres. Muitos clérigos cristãos lidam com os judeus como se fossem cachorros e não seres humanos. Se eu tivesse sido judeu e tivesse visto tais patetas e idiotas regerem e ensinarem a fé cristã, teria preferido tornar-me um porco do que um cristão. (25)

Repórter – O que o levou a escrever o tratado Que Jesus Cristo Nasceu Judeu?

Lutero – Escrevi esse livro em 1523 para mostrar, a partir das Escrituras, que Cristo é um judeu, nascido de uma virgem, a fim de poder porventura também atrair alguns judeus à fé cristã. Tentei deixar bem claro que, se pudéssemos nos gloriar no sangue e na carne, os judeus estariam mais próximos de Cristo do que nós. Nós somos cunhados e estrangeiros e eles são amigos de sangue, primos e irmãos de nosso Senhor. (26)

Repórter – Qual foi a repercussão desse livro entre os judeus?

Lutero – Sei que ele é lido por não poucos judeus e marranos. Vários exemplares foram adquiridos na cidade belga de Antuérpia e enviados à Espanha e também à Palestina. Na época, esse pequeno tratado me aproximou muito dos judeus. Eles perceberam que eu era totalmente contrário à Inquisição. Em apenas um ano, fizemos nove edições do Que Jesus Cristo Nasceu Judeu.

Repórter – Se nesse livro o doutor é polido com os judeus, em outro, chega a ser agressivo, a começar pelo título: Acerca dos Judeus e de Suas Mentiras!

Lutero – O segundo foi escrito em 1543, vinte anos depois do primeiro. Eu me havia proposto nada mais escrever acerca dos judeus ou contra os judeus. No entanto, já que percebi que essa gente miserável e destituída da salvação não cessa de atrair para si também a nós, isto é, os cristãos, decidi publicar o tal livrinho a fim de que eu seja encontrado entre aqueles que opuseram resistência a tal empreendimento venenoso dos judeus, tendo advertido os cristãos de se precaverem contra eles. (27)

Repórter – Em vinte anos o doutor mudou muito. Não consigo entender o Lutero de Que Jesus Cristo Nasceu Judeu e o Lutero de Acerca dos Judeus e de Suas Mentiras! O doutor me perdoe, mas não consigo harmonizar o Lutero que defendia os judeus das “rudes cabeças de asnos” (papas, bispos, sofistas e monges) com o Lutero que agora aconselha às autoridades políticas incendiar sinagogas, confiscar dos judeus os seus livros sagrados, não permitir que eles orem e ensinem a Torá publicamente em território alemão, proibir que eles pronunciem o nome de Deus “em nossos ouvidos”, entre outras providências. O que houve com o doutor?

Lutero – Comecei a mudar em 1530. O processo de mudança de trato ou de estratégia com os judeus chegou ao auge em 1543 com a publicação de três tratados: o já citado Acerca dos Judeus e de Suas Mentiras, o Acerca de Shen Hamphoras e da Linhagem de Cristo e o Acerca das Últimas Palavras de Davi. Todavia ninguém pode me acusar de antissemitismo com base racista. O que me leva ao combate é a questão religiosa. Não consigo mais tratar os judeus amigavelmente. Fui tomado de ódio por eles. (28)

Repórter – Ninguém o censura por isso?

Lutero – Os três escritos de 1543, em especial o Acerca de Shen Hanphoras, chocaram até meus amigos mais chegados. Meu mais precioso companheiro de lutas, Filipe Melanchthon, se absteve de recomendar esse livro a quem quer que fosse. André Osiander, que introduziu a Reforma em Nuremberg, me criticou. O reformador suíço João Henrique Bullinger foi muito duro: escreveu que eu parecia mais um pastor de porcos do que um pastor de almas. O magistrado de Estrasburgo proibiu a publicação do primeiro livro da série (Acerca dos Judeus e de Suas Mentiras). Fiquei quase sozinho nessa luta. (29)

Repórter – Posso saber o motivo de tão grande mudança?

Lutero – Meu escrito de 1523 deu lugar a abuso em demasia. Despertou, por exemplo, o proselitismo judaico. Em certas partes da Alemanha e da Polônia, os judeus fizeram de tudo para converter os cristãos às concepções judaicas. Até o rabino Abraham ben Elieser-ha Levi, de Jerusalém, acreditava que eu seria um cripto-israelita disposto a reconduzir muitos à lei mosaica. Só porque havia algumas coisas em comum entre nós e eles, como a supressão do monasticismo, da ascese, do celibato e da veneração de imagens, os judeus me tinham como um aliado. Algumas pessoas alcançadas pela Reforma deixaram-se influenciar por certos pontos de vista judaicos. Por volta de 1530, manifestaram-se primeiros antitrinitários, entre eles o médico Miguel Serveto. Quatro anos depois, alguns exaltados, invocando tanto o Antigo Testamento como visões particulares, reintroduziram certas práticas veterotestamentárias, como a poligamia. Na Silésia, um grupo de anabatistas trocou o domingo pelo sábado. Na Boêmia e na Morávia, alguns irmãos chegaram a praticar a circuncisão. Soma-se a tudo isso, a minha decepção por causa da raridade de conversões de judeus. Estava certo de que, com o aparecimento do evangelho puro, no âmbito da Reforma, nós os ganharíamos para Cristo em grande número, o que não aconteceu! (30)

Notas
1. FARREL, Jeantte. A assustadora história das pestes e epidemias. São Paulo: Ediouro, 2003. p.102-104.

2. BAIGENT, Michael, LEIGH, Richard. A Inquisição. Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 92.

3. PERNIDJI, Joseph Eskenaz. Das fogueiras da Inquisição às terras do Brasil. Rio de Janeiro: Imago, 2002. p. 249-252.

4. BORGER, Hans. Uma história do povo judeu – de Canaã à Espanha. São Paulo: Sêfer, 1999. v. 1. p. 446. Helmar Junghans fala em 600 mil só na Espanha (JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 99).

5. SCHLESINGER, Hugo, Porto, Humberto (ed.). Dicionário enciclopédico das religiões. Petrópolis, 1995. v. 1. p. 1.694.

6. BORGER, Hans. Uma história do povo judeu – de Canaã à Espanha. São Paulo: Sêfer, 1999. v. 1. p. 433.

7. Id. Ibid. p. 435-436.

8. Id. Ibid. p.435.

9. Id. Ibid. p.415.

10. Id. Ibid. p.415-416.

11. Id. Ibid. p.450.

12. BORGER, Hans. Uma história do povo judeu – de Canaã à Espanha. São Paulo: Sêfer, 1999. v. 1. p. 452.

13. Id. Ibid. p.427. Marc Lienhard lembra que o antissemitismo espanhol tem sido frequentemente considerado como “o maior infortúnio dos judeus após a destruição do segundo templo e antes do advento de Hitler” (LIENHARD, Marc. Martin Lutero – tempo, vida e mensagem. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 226). Hans Borger concorda: “Nenhum outro evento da história judaica – entre Bar Kokhba e Auschwitz – foi mais traumático que a expulsão dos judeus da Espanha” (BORGER, Hans. Uma história do povo judeu – de Canaã à Espanha. São Paulo: Sêfer, 1999. v. 1. p. 449).

14. BORGER, Hans. Uma história do povo judeu – de Canaã à Espanha. São Paulo: Sêfer, 1999. v. 1 p.425).

15. Richard P. Mcbrien registra que essa norma é precursora da exigência, na Alemanha nazista do século 20, de que os judeus usassem a Estrela de Davi amarela na parte exterior da roupa (MCBRIEN, Richard P. Os Papas – os pontífices: de São Pedro a João Paulo II. São Paulo: Loyola, 2000. p. 217).

16. LIENHARD, Marc. Martin Lutero – tempo, vida e mensagem. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 226.

17. LUTERO, Martinho. Martinho Lutero, obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1996. v. 6. p. 75.

18. LIENHARD, Marc. Martin Lutero – tempo, vida e mensagens. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 231.

19. LUTERO, Martinho. Martinho Lutero; obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, 1996. v. 6. p. 91.

20. Id. Ibid. p. 91.

21. Id. Martinho Lutero; obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Canoas: ULBRA, Porto Alegre: Concórdia, 2003. v. 8. p. 284.

22. A resposta de Isaac Abravanel ao Édito de Expulsão pode ser lida em PERNIDJI, Joseph Eskenaz. Das fogueiras da Inquisição às terras do Brasil. Rio de Janeiro: Imago, 2002. p. 253-256.

23. SCHLESINGER, Hugo, PORTO, Humberto (ed.). Dicionário enciclopédico das religiões. Petrópolis, 1995. v. 1. p. 164.

24. LUTERO, Martinho. Martinho Lutero; obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal, Canoas: ULBRA, Porto Alegre: Concórdia, 2003. v. 8. p. 56.

25. ALTMANN, Walter. Lutero e libertação. São Paulo: África, 1994. p. 261-262.

26. Id. Ibid. p. 262.

27. Id. Ibid. p. 263-264.

28. Segundo o historiador luterano Marc Lienhard, “não se pode deixar de acusar Lutero de ter atiçado, pelos seus últimos escritos, o ódio da massa e de uma parte dos pastores contra os judeus, sem falar da utilização – até mesmo fora da igreja – que se faria de alguns de seus textos na Alemanha dos séculos 19 e 20” (LIENHARD, Marc. Martin Lutero – tempo, vida e mensagem. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 237). Um desses textos é o panfleto Martinho Lutero sobre os judeus: fora com eles, publicado em 1938, editado por Martinho Sasse, que se apresentou como bispo “cristão alemão”. Em suas 15 páginas, o folheto reproduz apenas frases dos livros de Lutero que poderiam ajudar as pretensões nazistas (JUNGHANS, Helmar. Temas da teologia de Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2001. p. 115). Em julho de 1983, 540 anos depois da publicação dos três infelizes livros de Lutero, a Federação Luterana Mundial, reunida em Estocolmo, tornou público o seguinte enunciado: “Não podemos […] nem aprovar nem desculpar os grosseiros escritos antijudaicos do reformador […]. Constatamos com profundo pesar que o nome de Lutero teve que se prestar, na época do nacional-socialismo, para a justificação do antissemitismo e que seus escritos ensejam esse abuso”.

29. LIENHARD, Marc. Martin Lutero tempo, vida e mensagem. São Leopoldo: Sinodal, 1998. p. 237.

30. Segundo Jairo Fridlin, um dos tradutores da Bíblia Hebraica em português, a mudança de comportamento de Lutero no tocante aos judeus é similar à de Maomé anteriormente, cerca de 900 anos antes da Reforma Luterana. O livro Uma História do Povo Judeu (BORGER, Hans. Uma história do povo judeu – de Canaã à Espanha. São Paulo: Sêfer, 1999. v. 1. p. 315-320.) narra esse acontecimento.

 

Fonte: Conversando com Lutero, Elben M. Lenz César, Ed. Ultimato.


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1# "Olá! Gostei da leitura apesar da fonte me fazer lembrar da ecumênica Revista Ultimato kkk Qual melhor e mais imparcial livro no Brasil sobre Lutero e Judeus? Haveria algum Site Luterano estrangeiro que tenha artigos sobre esse tema? Um abraço! P.S. Pela experiência em debates que tens tem sido uma tática Católica a desqualificar os reformadores principais(exemplo: Olavo de Carvalho)? Percebi por esse texto que seria o sujo falando do mal lavado pois a Igreja Católica agiu errado para com os judeus. Pelo pouco que li e sei sobre esse assunto(Lutero e os Judeus) não eram os Judeus da época de Lutero tão santinhos assim, a bem da verdade." - Luis, 17 de Dezembro de 2020, Quinta Feira, 05h39

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