Categoria: Martinho Lutero
Imagem: Judeus e Martinho Lutero - Protestantismo.com.br
Publicado: 17 de Fevereiro de 2015, Terça Feira, 22h16
INTRODUÇÃO
Uma boa hermenêutica compreende o esforço por objetividade, mas não a pretensão de neutralidade. O assunto “Lutero e o povo judeu” é um exemplo elucidativo. O estudo há de ser feito no contexto do peso opressivo da história de perseguições ao povo judeu e na consciência plena do sofrimento judaico. Sem perder de vista esse marco referencial, deverseão buscar também a exposição e a avaliação o mais objetivas possíveis da questão.
O povo judeu tem sofrido uma história milenar de preconceitos, discriminações, perseguição e morte violenta. Uma boa parte desse sofrimento foi infligida por cristãos e em nome de valores cristãos, quando não em nome de Deus e do próprio Cristo. Portanto, nossa reflexão, enquanto pessoas cristãs — e particularmente, na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), como luteranos e esmagadoramente de descendência alemã — deve ser uma retrospectiva autocrítica sobre nosso passado e um posicionamento combativo contra o anti-semitismo presente ainda hoje entre nós.
Em outubro de 1992, o XVIII Concílio Geral da IECLB, realizado em Pelotas/RS, ocupou-se da questão do recrudescimento de manifestações racistas em muitas partes do mundo, em especial (embora de modo algum exclusivamente) contra o povo judeu. Na Alemanha reunificada e também em outros países europeus têm aumentado o preconceito e os atentados contra estrangeiros em geral. Também no Brasil têm sido registradas ultimamente ações anti-semitas. O Concílio encarregou por isso a Direção da IECLB de elaborar uma manifestação oficial condenatória a esse recrudescimento de manifestações e ações racistas.
A declaração da IECLB, datada de 9 de dezembro de 1992 e assinada pelo pastor-presidente Gottfried Brakemeier, leva por título Deus não é racista[1]. Contrariamente à concepção corrente de que a sociedade brasileira não seria racista, a declaração lembra o racismo exercido ao longo de nossa história contra os povos indígenas, as populações negras e os judeus, mencionando também “os nordestinos” como alvos de recentes ações racistas. Mesmo se constituímos um país pluriétnico, “não deixam de ser realidade os sinais de racismo camuflado ou aberto, submerso e ainda assim flagrante”.
A seguir, o documento denuncia, em particular, as ideologias, como o apartheid na África do Sul, que dão suporte às práticas racistas, estabelecendo “uma hierarquia das raças” e legitimando o uso da violência contra a “outra” raça. Em contraposição, afirma-se: “A convivência pacífica das raças, etnias e culturas se coloca mais uma vez como urgência a ser atendida.” Tampouco se poderá, do ponto de vista cristão, justificar “racismo de qualquer tipo”, pois a diversidade é a “marca da criação”, sem qualquer distinção de valor ou dignidade. Assim, a “discriminação racial equivale a desprezo ao Deus Criador”.
A declaração também denuncia que na história “o anti-semitismo tem desempenhado papel especialmente hediondo”. Em relação ao “holocausto do povo judeu na Alemanha nazista”, afirma: “Somente cegueira ou deliberada falsificação são capazes de negar a historicidade deste genocídio e suas evidências.” De outra parte, o racismo tem causas múltiplas: psíquicas, sociais, econômicas, educacionais etc. Como quer que seja, porém, a IECLB é convocada, juntamente com as “Igrejas irmãs e todos os segmentos da sociedade brasileira a combater as expressões racistas que há em suas próprias fileiras”, lembrando, não por último, que “cristãos e judeus estão unidos pela fé no mesmo Deus”.
Nestes exercícios — menos do que artigo —, pretendemos a seguir confrontar o leitor com uma seleção de textos de Lutero acerca dos judeus.
Cremos que seu teor seja por demais suficiente para suscitar a reflexão, as dúvidas e, mesmo, a indignação. Ficará flagrante também que Lutero nem sempre expôs as mesmas opiniões acerca dos judeus. Uma tarefa da hermenêutica, sem dúvida, é tentar captar as razões e as conseqüências da dramática mudança do discurso de Lutero. É especialmente perturbador que o pensamento de Lutero tenha se desenvolvido de uma posição simpática aos judeus para uma posição francamente agressiva para com eles. Por isso mesmo, será preciso igualmente perguntar pelas repercussões do pensamento de Lutero também em nosso tempo, em especial no nazismo. Por fim, será preciso refletir sobre qual seria a base teológica que pudesse eficazmente se contrapor à tentação sempre presente da ideologia e das práticas racistas. Essas questões serão abordadas nas reflexões finais.
SELEÇÕES
Entre as manifestações de Lutero acerca dos judeus destacam-se duas, em particular: Que Jesus nasceu como judeu, de 1523, e Acerca dos judeus e de suas mentiras, de 1543. Apresentamos a tradução de algumas passagens desses escritos, antecedidas por uma estrofe de um hino de Páscoa.
A. Textos que Denotam Simpatia para com os Judeus
Nosso grande pecado e pesada iniqüidade pregaram à cruz Jesus, o verdadeiro filho de Deus. Por isso, não devemos como inimigos recriminar a ti, pobre Judas, nem a ‘multidão de judeus; a culpa é inteiramente nossa.[2]
A partir da Escritura quero contar a razão que me move a crer que Cristo é um judeu, nascido de uma virgem, a fim de poder porventura também atrair alguns judeus à fé cristã. Pois esses nossos estúpidos, os papas, os bispos, os sofistas e os monges — essas rudes cabeças de asnos — até agora trataram os judeus de tal maneira que quem quisesse ser um bom cristão, deveria a rigor tomar-se um judeu. E se eu tivesse sido um judeu e tivesse visto tais patetas e idiotas reger e ensinar a fé cristã, eu teria preferido tomar-me um porco do que um cristão.
Pois eles lidaram com os judeus como se fossem cachorros e não seres humanos; nada mais fizeram do que recriminá-los e tomar-lhes a propriedade.
Quando os batizaram, nada lhes demonstraram da doutrina ou da vida cristã, mas apenas os subjugaram à “paparia” e à “mongeria”. Assim, quando eles [os judeus] viram que o judaísmo tem a Escritura tão fortemente a seu favor e que o cristianismo tem sido pura conversa fiada sem apoio qualquer na Escritura, como poderiam eles aquietar seu coração e tomar-se bons e verdadeiros cristãos? Eu próprio ouvi de judeus piedosos batizados que, se não tivessem em nosso tempo ouvido o evangelho, teriam permanecido toda a sua vida judeus sob o manto de cristãos. Pois eles confessam nunca terem ouvido qualquer coisa acerca de Cristo de parte de seus batizadores e mestres.
Tenho esperança de que, se lidarmos amigavelmente com os judeus, ensinando-os limpidamente a partir da Escritura sagrada, muitos se tornarão cristãos verdadeiros, retomando à fé de seus pais, profetas e patriarcas. Dela eles são afugentados, ainda mais quando se rejeita seu judaísmo sem deixar valer nada, lidando exclusivamente com arrogância e desprezo para com eles. Se os apóstolos, que também foram judeus, tivessem lidado assim conosco, gentios, como nós gentios com os judeus, jamais teria surgido qualquer cristão entre os gentios. Pois, se eles lidaram conosco gentios de modo tão fraternal, também nós, de nossa parte, devemos lidar fraternalmente com os judeus, a fim de eventualmente convertermos alguns. Pois nós mesmos ainda não percorremos um longo caminho, muito menos chegamos ao alvo.
E mesmo que nos gloriemos por nosso estado, contudo somos gentios, ainda assim. Os judeus, porém, são do sangue de Cristo; nós somos cunhados e estrangeiros, eles são amigos de sangue, primos e irmãos de nosso Senhor.
Por isso, se pudéssemos nos gloriar no sangue e na carne, os judeus estariam mais próximos de Cristo do que nós. […] Peço, portanto, que meus estimados papistas, quando estiverem cansados de me acusar de ser um herege, comecem a me acusar de ser um judeu.[3]
Se quisermos ajudá-los [aos judeus], devemos praticar com eles não a lei do papa, mas do amor cristão, acolhendo-os amigavelmente, deixando que se desenvolvam, assumam uma profissão e trabalhem, a fim de que obtenham razão e espaço entre nós e a nosso redor, ouçam e vejam nossa doutrina e vida cristãs. Embora alguns sejam teimosos, que importa? Pois nem todos nós somos bons cristãos.[4]
B. Texto que Denota Antipatia para com os Judeus
Eu me havia proposto nada mais escrever acerca dos judeus ou contra os judeus. No entanto, já que percebi que essa gente miserável e destituída da salvação não cessa de atrair para si também a nós, isto é, os cristãos, deixei vir à luz este livrinho, a fim de que eu seja encontrado entre aqueles que opuseram resistência a tal empreendimento venenoso dos judeus, tendo advertido os cristãos de se precaverem contra os judeus. Eu não teria pensado que um cristão pudesse se deixar fazer de bobo pelo judeu, entrando em sua miséria e desgraça. Não é meu propósito entrar em altercação com o judeu ou dele aprender, como interpretam e compreendem a Escritura. Já conheço tudo isso de antemão. Muito menos lido com o assunto, na pretensão de converter os judeus; pois isso é impossível.[5]
Eles pretendem ser povo de Deus através de seu fazer, obras e ser exterior, não por pura graça e misericórdia, como, afinal, todos os profetas e os verdadeiros filhos de Israel tiveram que fazer. (P. 448.)
Agora falaremos do artigo principal, em que intercedem diante de Deus pela vinda do Messias. […] Aí pretendem […] ser profetas seguros de que o Messias não tenha vindo, mas ainda esteja por vir […]. Provaremos, portanto, que quanto a esse artigo, que diz respeito ao Messias, nós temos a fé verdadeira e eles erram totalmente. (P. 449.)
[Segue-se abordagem das — pretensas — difamações dos cristãos, de Jesus e de Maria, por parte de judeus. A seguir, Lutero defende a necessidade de unidade religiosa, culminando com a sugestão de expulsão territorial dos judeus.]
Que devemos, pois, fazer, nós cristãos, com esse povo rejeitado e amaldiçoado dos judeus? […] Não podemos apagar o inextinguível fogo da ira divina […] nem converter os judeus. Com oração e temor a Deus devemos exercer uma misericórdia afiada [scharfe Barmherzigkeit], para porventura salvar alguns das chamas e do braseiro. Nós não devemos nos vingar. Eles já estão com a vingança ao pescoço, mil vezes pior do que lhes podemos almejar.Quero, [porém,] dar [às autoridades políticas] meu conselho fiel. (P. 522.)
Por conseguinte, não pode nem deve ser para nós cristãos uma brincadeira, mas matéria de grande seriedade buscarmos conselho contra essa realidade, a fim de salvarmos nossas almas dos judeus, isto é, do diabo e da morte eterna. E [o conselho] é este, como dito acima: Primeiro: Que se incendeiem suas sinagogas, e, quem puder, jogue enxofre e piche. E quem pudesse também lançar fogo infernal, seria igualmente bom. A fim de que Deus possa ver nossa seriedade e todo o mundo tal exemplo, de modo que se até agora temos tolerado em ignorância tais casas (em que os judeus têm blasfemado tão vergonhosamente contra Deus, nosso querido criador e pai, com seu Filho), agora lhes temos dado sua recompensa. Segundo: Que se lhes tomem todos os seus livros — livros de oração, escritos talmúdicos, também toda a Bíblia —, sem deixar uma folha sequer, e que sejam preservados para aqueles que se converterem. […] Terceiro: Que lhes seja proibido, sob pena de perderem o corpo e a vida, de louvar a Deus, dar-lhe graças, orar, ensinar publicamente entre nós e em nosso país. Podem fazê-lo em seu próprio território ou onde o puderem, sem que nós cristãos precisemos ouvi-lo ou disso tomar conhecimento. […] Quarto: Que lhes seja proibido pronunciar o nome de Deus em nossos ouvidos, pois nós não podemos ouvi-lo ou tolerá-lo de boa consciência. […] E quem ouvi-lo de parte de algum judeu, denuncie-o à autoridade ou lhe atire excremento de porco quando o vir, afugentando-o. Ninguém seja misericordioso ou bondoso nesse particular, pois estão em jogo a honra de Deus e a salvação de todos nós (inclusive dos judeus). […] Quinto: Que se suspenda aos judeus totalmente a proteção e o acesso às estradas. […] Sexto: Que se lhes proíba toda usura, tomando-lhes todo dinheiro e jóias, colocando-o de lado sob guarda. […] Sétimo: Que se coloque na mão dos judeus e judias jovens e fortes mangual, machado, enxada, pá, roca e fuso, de modo que obtenham seu pão no suor do rosto, como é imposto aos filhos de Adão, em Gênesis 3 (19). (P. 523-6.)
[Se tudo isso se mostrar ineficaz, há ainda uma sugestão adicional:] Já que devemos permanecer puros da blasfêmia dos judeus, não participando dela, devemos estar separados, devendo eles ser banidos de nosso território. Que cogitem, então, de [chegar à] sua pátria. (P. 538.)
QUESTÕES E REFLEXÕES
A ideologia nacional-socialista na Alemanha de pós-1933, quando Adolf Hitler ascendeu ao poder, evocou Martim Lutero como precursor e advogado de suas próprias ideologias e políticas anti-semitas, as quais, como é sabido, culminaram com a tentativa de eliminação total do povo judeu.
É verdade que uma boa hermenêutica também requer não cairmos no erro de simplesmente atribuir a uma figura do passado — em nosso caso, a Lutero — as atrocidades cometidas por gerações futuras. A história efetuai [Wirkungsgeschichte] de uma personagem histórica sempre inclui uma multiplicidade de fatores que não são redutíveis a uma só causa. Inclusive deve-se ter abertura para a possibilidade de que o processo histórico apresente desdobramentos contrários às intenções de uma personagem na origem
dos acontecimentos. Quer dizer: nem tudo que se seguiu ao movimento da Reforma corresponde necessariamente às intenções do reformador.
Contudo, tampouco podemos cair no outro erro de desculpar uma figura do passado em seus posicionamentos equivocados ou mesmo vergonhosos, tão-somente porque ela nos é importante por outras razões. Obviamente, esse comportamento também não é compatível com uma boa hermenêutica. Mas é precisamente isso que acontece amiúde com Lutero. Já que para muitas pessoas ele é importante pela redescoberta da liberdade evangélica, da justificação por graça mediante a fé, pela ênfase na interpretação escriturística etc., há nessas mesmas pessoas a propensão a encará-lo com benevolência quando assumiu posições lamentáveis e eventualmente de trágicas conseqüências, como ocorreu em relação a camponeses, anabatistas e judeus, para mencionar alguns exemplos concretos. Lutero pertence — disso não podemos fugir — à pré-história das atrocidades cometidas contra o povo judeu neste século.
A primeira pergunta que devemos encarar é: como podemos entender — obviamente sem justificar — o desenvolvimento do pensamento de Lutero acerca dos judeus? Pois chama a atenção o contraste radical entre as posições de simpatia e as de antipatia para com os judeus. Tentemos formular nossas observações, sinteticamente:
1) Apesar da dureza ilegitimável das observações de Lutero acerca dos judeus, em seu escrito de 1543, houve muito abuso na apropriação de Lutero por parte do nacional-socialismo. Assim, não cabe atribuir a Lutero todas as atrocidades cometidas pelo nacional-socialismo. É verdade que os luteranos alemães aderiram, em sua maioria, a esse abuso. A responsabilidade direta, porém, cabe a estes por seus atos. Seria falta de consciência histórica ou expressão de uma concepção extremadamente idealista da história
querer simplesmente atribuir ao pensamento de Lutero o que foi cometido quatro séculos mais tarde.
Também se deve observar que luteranos de outros países puderam chegar a conclusões diametralmente opostas à da maioria dos luteranos alemães, como por exemplo na resistência norueguesa. E mesmo entre os alemães, não poderão ser esquecidas a atuação e a teologia do luterano Dietrich Bonhoeffer, que veio a ser executado pelo nacional-socialismo. Tudo isso revela que as atrocidades cometidas contra o povo judeu pelo nacional-socialismo ainda tiveram outras raízes, aproveitando-se este, porém, para seus propósitos das posições expostas por Lutero em 1543.
Também é verdade — e pode-se observar com nitidez — que o “anti-semitismo”[6] de Lutero não tem embasamento em concepções raciais, mas religiosas. Embora se possa alegar, com razão, que do ponto de vista dos sofredores — no caso as vítimas judaicas, ao longo da história — não faz diferença decisiva se a perseguição que sofrem é causada por motivos raciais ou religiosos, a distinção será importante quando quisermos detectar a maneira mais eficaz de combater o anti-semitismo no seio de comunidades oriundas da Reforma luterana. Para tanto, é indispensável dar atenção à argumentação teológica efetuada por Lutero.
Em escala menor, há que se atentar também para a natureza e o estilo dos escritos. Pode-se observar em ambos os escritos principais referidos acima o interesse de Lutero em defender a fé e a doutrina consoante a assim compreendida redescoberta do evangelho, numa época de grande perversão no tocante à fé e aos costumes, dentro da Igreja. Os ataques ao sistema papal revestem-se de particular dureza e inclemência. Alia-se a isso um estilo particularmente ofensivo e, muitas vezes, francamente desrespeitoso, bastante próprio da época, nas controvérsias, mesmo teológicas.
Na tentativa de explicar o desenvolvimento do pensamento de Lutero acerca dos judeus, deve-se descartar o esquema, freqüentemente adotado, da contraposição do “velho Lutero” ao “jovem Lutero”. Este teria sido revolucionário e, no caso, defensor dos judeus. Já aquele teria se tornado retrógrado e, portanto, também inimigo dos judeus. Como em outros assuntos[7], também neste essa explicação não satisfaz. Mesmo no escrito de 1523 — aliás, traduzido muito logo ao espanhol por judeus residentes na Espanha e contemporâneos de Lutero! —, podemos detectar a raiz de um pensamento religioso que continua presente eficazmente no escrito de 1543, a saber: o povo judeu rejeitou o Messias.
Em 1523 Lutero ainda considera esse fato normal, em face do que considerava ser a perversão do cristianismo sob a égide do papado romano. Com a renovação evangélica, pela Reforma, a atitude dos judeus haveria de mudar, assim pensava o reformador. Com a liberdade evangélica readquirida, haveria de ocorrer naturalmente a conversão dos judeus. Contudo, essa expectativa não se concretizou. Lutero se decepciona e é vitimado pela concepção teológica de que “os judeus rejeitaram o Messias”. Lutero é, inclusive, informado de algumas conversões de cristãos ao judaísmo. Em sua decepção, passa a atribuir a não-conversão dos judeus ao cristianismo à sua “teimosia” e a seu “coração endurecido”. Ademais, o “velho” Lutero já vive numa situação em que o princípio da “territorialidade” da Igreja fica estabelecido[8], como proteção à Reforma e possibilidade de sua consolidação. Daí também sua “sugestão” de que os judeus se estabeleçam em “seu” território — algo, independentemente de outras considerações, inexeqüível no século XVI.
As propostas de como lidar com os judeus, feitas por Lutero em seu escrito de 1543, em particular às autoridades políticas, são verdadeiramente vexaminosas. Revelam um vergonhoso espírito discriminatório. Não pode haver de nossa parte a mínima vacilação em denunciar a todas elas como arbitrárias e antievangélicas. Como herdeiros da Reforma, só podemos pedir, em palavra e conduta solidária, perdão às vítimas. Ainda assim, o nazismo, ao se apropriar das propostas de Lutero como legitimação para sua própria ideologia e prática racista e genocida, não apenas substituiu a premissa religiosa por uma racial, como também ultrapassou em sua prática de longe tudo que Lutero — vergonhosamente, repetimos — ousou propor. Pelo menos duas diferenças me parecem de fundamental importância.
Em primeiro lugar, Lutero, mesmo no escrito de 1543, jamais negou a humanidade dos judeus. Essa é uma primeira premissa de igualdade, cujo alcance não deve ser subestimado. Em segundo lugar, Lutero não advogou em momento algum o extermínio físico dos judeus. Esse fato não é destituído de importância, se consideramos o genocídio perpetrado pelo nacional-socialismo em nosso século.
Contudo, de outro lado, não se pode deixar de reconhecer que as propostas de Lutero, como as de destruir todos os livros religiosos dos judeus e proibir-lhes as orações e o culto, obviamente feriam fundo da alma judaica. Reconhecida a humanidade do povo judaico, pois criatura do mesmo Deus professado pela fé cristã, o respeito à sua “alteridade” (Dussel) requer o total respeito à sua própria expressão religiosa.
Um dos méritos teológicos de Lutero foi, sem dúvida, ter consistentemente alertado a que não déssemos importância indevida a ele próprio, Lutero. É famosa sua autoclassificação como “pobre e fedorento saco de vermes”, cujo nome era totalmente improveitoso para designar os seguidores de Cristo. Ao contrário, Lutero apontou sempre para o próprio Cristo e, como testemunho dele, para a Escritura. Esta era entendida como um instrumento em favor da vida. A partir da própria Escritura e do reconhecimento de que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23), deverá ser abandonada decididamente como princípio teológico regente a noção de que “o povo judeu rejeitou o Messias”. Ao contrário, devemos redescobrir na Bíblia a Israel como “povo eleito de Deus”. Ademais, a Bíblia — naquela parte pelos cristãos designada de “Antigo” Testamento — é comum a judeus e cristãos. Como “ouvintes” da Escritura, da palavra de Deus, poderão — quem sabe, melhor: oxalá — se reencontrar.
NOTAS
1 Deus não é racista. Declaração da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Boletim Informativo do Conselho Diretor da IECLB (131), de 11.12.92, anexo. As citações a seguir são desse documento.
2 EA 56, p. 359. A estrofe está contida num hino de Páscoa, não incluído no hinário oficial da IECLB, os Hinos do povo de Deus. O texto original reza: Unsere grosse Sünde und schwere Missetat Jesum, den wahren Gottessohn ans Kreuz geschlagen hat, Drum wir dich, armer Judas, dazu der Juden Schar nicht feindlich dürfen schelten die Schuld ist unser gar.
3 Que Jesus Cristo nasceu judeu [1523]. WA 11, 314-6.
4 Ibid., p. 336.
5 Acerca dos judeus e de suas mentiras [1543]. WA 53, 417. A seguir, as respectivas páginas do original estão incluídas, entre parênteses, no corpo do texto principal.
6 Embora a expressão “anti-semitismo” só tenha se originado no século passado, as respectivas concepções e práticas obviamente lhe são anteriores.
7 Por exemplo, Lutero foi sempre extremamente crítico para com as práticas comerciais e financeiras do assim chamado “capitalismo incipiente”, mas o foi muito em particular para o fim de sua trajetória. Ou então: as explanações do “velho” Lutero quanto aos mandamentos, ao Credo Apostólico e ao Pai-Nosso são muito mais concretas e “materialistas” do que explanações mais “espiritualizantes” do jovem Lutero.
8 Sabemos que a expectativa de Lutero era de que a organização territorial da Igreja reformada, sob o comando do respectivo príncipe, fosse algo emergencial e passageiro. Tbmouse, no entanto, algo permanente.
Walter Altmann
Escola Superior de Teologia
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