Categoria: Martinho Lutero
Imagem: Capa do Livro Lutero e a Igreja do Pecado - Resistência Apologética
Publicado: 03 de Dezembro de 2016, Sábado, 01h27
Lutero e a Igreja do pecado chegou a sua sétima edição, revista e atualizada. Ou seja, o autor da obra alimenta a fogueira católica repetindo versões espantalhos de Lutero. Contudo, um católico recorrer a Fernando Jorge para caluniar Lutero é como ver um cão morder o próprio rabo, ou um sujeito atirar no próprio pé. O escritor polemista, jornalista e historiador católico em sua Biografia sobre Lutero com 228 páginas, na verdade não traz nada de novo. São as mesmas velhas acusações baseadas em fontes secundárias e péssimas analises contextuais e históricas.
Fernando Jorge, embora tente ser honesto em sua pesquisa, comete o mesmo erro que Hartmamn Grisar, ou seja, tenta examinar Lutero sob um aspecto psicológico, o pondo como um louco, um insano degenerado mas no entanto bem intencionado monge agostiniano que inflamou os ânimos contra a Igreja imoral de seu tempo. Fernando Jorge sequer é original quando faz as mesmas insinuações que Patrick O’Hara em “Os Fatos sobre Lutero” e outros autores católicos como Dave Armstrong, Padre Leonel Franca, Johannes Janssen, Johannes Eck e Heinrich Denifle, ambos já conhecidos como entupidores e poluidores da informação com desinformação e parcialidade desonesta onde supostamente analisam as obras de Lutero alegando imparcialidade, mas, apenas sobrepõem suas interpretações naquilo que retalhadamente escolhem para montar mais alguma outra versão espantalho acerca de Lutero.
Todavia, no caso de Fernando Jorge, ele não “ataca” apenas Lutero. Ele válida os ataques de Lutero ao mostrar que o monge, em sua concepção, transtornado com tanta imoralidade e apostasia da Igreja, se vê atormentado pelo diabo que inclusive era personificado no próprio Papa. O autor pinta Lutero como um supersticioso apavorado de boas intenções, e faz isto se baseando em “documentos precisos” acerca de Lutero. Todavia quais são estes documentos?
Ora, as famosas “Conversas à Mesa” ou Table Talk, no caso, às Tischreden. Debruçando-se neste tipo de fonte, Fernando Jorge analisa supostamente “citações” de Lutero para fundamentar sua tese de que “Lutero conversava com o diabo, tinha contato com diabo, via o diabo em tudo e por isso iniciou a Reforma“.
Vejamos o que o próprio Livro diz em sua contra-capa:
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Em suma, o Livro do Fernando Jorge apresenta uma TESE, ou melhor, UM ESPANTALHO sobre o surgimento do protestantismo. Na descrição editorial do conteúdo do Livro lemos:
“Obcecado pelo Diabo, Lutero o associou à Igreja Católica do seu tempo, da qual esse alemão era membro, monge agostiniano, passando a ver nela a Igreja de Satanás. Eis a tese central deste livro perturbador e polêmico. Tese apoiada em argumentos cerrados e riquíssima documentação, reunida pelo autor. Ainda que seja uma biografia do fundador do Protestantismo, detalhada e baseada em vasta bibliografia, a obra é muito mais que isto. Desvendando aos olhos do leitor uma série de novos aspectos que ajudam a entender as razões profundas da valente rebeldia de Lutero, mesmo afrontando as iras da Inquisição. Facetas de sua formação religiosa e de sua personalidade complexa são examinadas à luz da psicologia, de um prisma moderno e científico, esclarecendo atitudes às vezes incompreensíveis e contraditórias na aparência.
Lutero, desde a infância, tinha verdadeira obsessão pelo demônio, contra o qual estava engalfinhado em permanente luta, a que lhe aparecia em toda a parte, sob os mais incríveis disfarces. Com o passar do tempo e após sua trágica visita a Roma, ele associou a figura de seu inimigo maior à própria Igreja. Nesse fato baseia o autor a tese central e polêmica do seu livro, sustentada com cerrada argumentação e imenso rol de argumentos.
‘É no ódio ao demônio que vamos encontrar o motivo capaz de explicar a revolta de Martinho Lutero contra a Igreja Católica. Sim, e o Protestantismo deve o seu nascimento mais a este ódio do que as outras razões’ – resume ele. Além dessa tese instigante, o livro é um retrato autêntico daqueles dias tensos em que imperava o fanatismo, envolto no panorama confuso dos interesses políticos em meio aos quais Lutero se movia para implantar sua reforma.” [Fonte: Saraiva]
Portanto, Fernando Jorge vai passar o livro inteiro reproduzindo apenas aquilo que já sabemos sobre o tempo de Lutero em outras biografias protestantes já publicadas, só que com um toque romanista em distorcer os fatos para corromper o contexto ignorando a intenção real de Lutero e faz isto pincelando citações isoladas, para então atribuir caráter dogmático e potencial à supostas frases de Lutero recolhidas por terceiros e então concluir… Eis o fundador e a origem do Protestantismo: O Diabo.
Claro que para não dar na cara seu favoritismo romanista em difamar Lutero, ele aborda questões como os horrores da inquisição católica e a caça as bruxas além de também mencionar o desvio moral do clero romano. Todavia para ele, tudo isto é admissível, levando em conta que se trata da “Santa Igreja Católica Papal”, versus Martinho Lutero, o atormentado pelo diabo que na sua insanidade diabólica decide atacar a Igreja e implantar a Reforma com interesses políticos.
Análise do livro
Em primeiro lugar, para insinuar que Lutero teria algum problema emocional ao ponto de ver o diabo em tudo, na página 9 Fernando Jorge alega que Lutero apanhava muito de seus pais, que com muita brutalidade o espancava constantemente. Só que isto não é novidade que seus pais eram brutos, na própria Enciclopédia Católica entrada sobre Lutero podemos ler isto e o Fernando Jorge nos dá apenas um contexto “sua mãe era muito supersticiosa e possuía um acentuado gosto por história de demônios“.
O que o Fernando Jorge ignora é que na verdade TODOS OS CATÓLICOS da Idade Média no tempo de Lutero eram iguais ou até mais supersticiosos e brutos na educação familiar do que os pais de Lutero.
Em segundo Lugar, o Fernando Jorge parece uma espécie de Padre Quevedo anacronista. Ele inicia o livro demonstrando certo ceticismo com relação a crença em obras malignas como a feitiçaria ao relatar que a mãe de Lutero sofria ameaças de uma bruxa, ou que sua vizinha teria sido assassinada por obra de bruxaria. Pra ele, Lutero relatar isto quando adulto, demonstra certa obsessão pelo diabo devido escutar em sua meninice tantas histórias “supersticiosas” sobre a ação do “rabudo”. O autor menciona ao longo do livro diversos eventos para insinuar que Lutero era realmente cismado, obcecado, focado no diabo e que foi isso que o despertou a ver na Igreja o próprio Satã.
Todavia Fernando Jorge ignora que Lutero não estaria expondo sua obsessão pelo diabo e sim o contexto do catolicismo de sua época que demonizava tudo a tal ponto de praticamente tudo ser ação do diabo e que Deus estaria o tempo inteiro apenas espreitando como um juiz prestes a destruir a todos. Para serem livres das ciladas do diabo e da ira do juízo, uma infinidade de práticas religiosas altamente supersticiosas foram desenvolvidas para aliviar a vida do povo ignorante enquanto que o clero romano apenas se beneficiava ao mesmo tempo que pouco se interessava pelos dissabores de seus fiéis.
Em terceiro lugar, Fernando Jorge no inicio parece não estar muito interessado em por Lutero como um louco, mas no desenrolar do seu livro ao se deparar com supostas frases de Lutero, ele se inflama e passa a diminuir a integridade intelectual do reformador o pondo como um degenerado endemoniado.
O autor afirma que Lutero era músico, formado em Direito, Latim, Filosofia, Astronomia e Teologia e que lia assiduamente as obras filosóficas de Epicuro, Sócrates, Platão, Aristóteles, e Santo Agostinho a quem considerava depois da Bíblia, o melhor doutor que já existiu, mais ainda que o eloquente São João Crisóstomo ou o versado São Jerônimo. Além destes, Lutero devorou os escritos de Gerson, Duns Scotus, Tauler, Pedro D’Ailly, Nicolau de Lira, São Bernardo, e São Tomás de Aquino além de ser fortemente atraído pelos escritos de Gabriel Biel “o último dos escolásticos” e Guilherme Occam “o doctor invincibilis” Lutero era igualmente capaz.
Honestamente é difícil imaginar que alguém como Lutero, com este calibre, conhecedor do que há de melhor na patrística, escolástica, filosofia e teologia, simplesmente não passava de um mero esquizofrênico com medo de fantasmas e que enfrentou a maior força de seu tempo apenas com berros de blasfêmias e alucinações com o diabo.
Na verdade dificilmente acredito que o Fernando Jorge tenha mesmo dado crédito a sua própria tese que soa meio ambígua. Ou ele sugere que Lutero instaurou a reforma por que via o diabo na Igreja, ou ele isso fez por ser influenciado pelo diabo. O livro em si abre essa possibilidade, principalmente por dizer isto:
Bom, de todo modo, o que podemos perceber, é que o autor não passa de mais um católico que passa por cima do bom senso, e procura por puro favoritismo, anexar a sua própria interpretação como uma visão absoluta e definitiva sobre Lutero ainda que tal visão não seja sustentada por sua própria analise supostamente criteriosa.
Mas, o quão criterioso e honesto foi o autor? Bom, nem é preciso perder tempo expondo o livro inteiro. Cabe ressaltar que também é mais um que os apologistas católicos não leram e usam apenas o que lhes convém, na verdade se eles conhecessem alguma obra primaria sobre Lutero que fosse católica ou protestante, deveriam já estar a par de que muita coisa caluniosa que é usada, já foi descartada após exames das próprias obras de Lutero em seu devido contexto histórico e pessoal.
Em quarto lugar e ainda tratando de uma analise da Obra de Lutero em seu devido contexto, o Fernando Jorge comete o mesmo deslize de outros autores ao usarem citações hiperbólicas de Lutero, sem o devido contexto, como esta:
O que ocorre é que Lutero se refere às constantes tentações e lutas que sofria e que lhe atingiam de modo mais íntimo do que a presença de sua esposa na mesma cama. Porém, Jorge Fernando usa a citação com tal sutileza que leva ao leitor desavisado a pensar que, ou Lutero era louco ou que declarava manter relações sexuais com o capeta.
Muitas obras católicas citando Lutero fazem isto, as mais conhecidas são as de Patrick O’Hara em “Os fatos sobre Lutero”, Padre Leonel Franca em “A Igreja, Reforma e Civilização” ou a mais ridícula de todas que é do Padre Júlio Maria em “O Diabo, Lutero e o Protestantismo”. Contudo, todas as suas observações, foram examinadas e refutadas e aqui mesmo (neste link) você ter acesso a um extenso índice de fontes primárias sobre Lutero para conferência e constatar que as alegações católicas contra Lutero não passam de pedradas contra versões de Lutero só existentes em suas mentes favoritistas.
E por último, depois de levantar estes quatro pontos anteriores em análise a obra de Fernando Jorge, é importante ainda mencionar que seu maior erro, assim como de outros católicos foi basear seu “criterioso” exame nas ‘Conversas à mesa’ (Tishreden) que embora tenham começado a ser compiladas ainda durante a vida de Lutero, por terceiros, todavia só adquiriram a forma que temos hoje quase dois séculos após sua morte.
O que faz Fernando Jorge é juntar relatos pouco rastreáveis sobre a época de Lutero e sua vida pré-reformada e os juntar com trabalhos polêmicos feito por outros autores católicos e então resumir tudo aos gatafunhos soltos e recortados das Tishreden, que são as fontes das grandes acusações contra Lutero.
Sobre a Obra Table Talk ou Tishreden ( Conversas à Mesa)
Lutero recebia amigos e alunos para conversas em sua casa, onde, à mesa, ficavam debatendo os mais diversos tipos de assuntos. Esses debates eram anotados por alunos, ou colaboradores e foram adicionados, depois de sua morte, ao que Johannes Matesius já havia colecionado quando ele era vivo. O texto das “Conversas” está disponível online numa tradução para o inglês (aqui) e (aqui).
Tais citações colecionadas e mais tarde reunidas, não são um tratado formal de teologia. São compilações de frases que saíram supostamente da boca de Lutero, mas não de sua pena. É no mínimo temerário usar frases soltas de Lutero que foram anotadas por várias pessoas diferentes (muitas vezes às pressas) para fazer acusações sem levar em consideração as obras que o próprio Lutero escreveu e publicou.
A primeira edição alemã do “Conversas à Mesa” só foi publicada em 1566 vinte anos após a morte de Lutero com anotações de segunda mão com supostas histórias vividas com o reformador alemão. Não se trata portanto de uma boa fonte que comprove qualquer blasfêmia da parte de Lutero ou degeneração mental de sua parte. O Fernando Jorge deveria perceber isto ao invés de alegar que seu exame revela um Lutero esquizofrênico e atormentado devido “suas frases” carregadas de obsessão pelo diabo, pelo mal, pelo pecado, ou recheadas de blasfêmias.
Portanto, o trabalho do Fernando Jorge, é um tiro no pé de um católico caso seja usado como fonte contra Lutero ou para descrever o que levou Lutero a romper com a Igreja. Seu trabalho não tem qualquer crédito a não ser para passar o tempo levando o leitor a realizar uma pesquisa mais séria e honesta buscando outros trabalhos e não apenas a opinião de um autor favoritista que usa de ambiguidade, ignorância seletiva e inflamação polemista no desenvolvimento de sua obra que pretende ser uma biografia.
Por fim, deixo ao Fernando Jorge e aos leitores de seu livro, a posição de um católico especialista sobre Lutero:
“… os católicos estão usando argumentos retóricos imprecisamente quando fazem o valor da teologia e da reforma de Lutero depender de sua linguagem em ‘Conversas à Mesa’. A Retórica apela para a mente, mas apela através de emoções. Ela atinge a mente não através de um ato puramente intelectual, examinando o caso a fundo e logicamente, mas aos trancos e barrancos, impulsionado por emoções e vontades, faculdades incapazes de um julgamento sereno do que é verdadeiro.” [Thomas O’Meara, Mary in Protestant and Catholic Theology , (New York: Sheed and Ward, 1966), 5]
Então, quanto a tese em si, de que Lutero iniciou a reforma por causa do diabo, devemos concordar com tal tese mas não com as premissas expostas pelo Fernando Jorge. Contudo, Sim, se não fosse o diabo dominando a igreja romana, Lutero jamais teria pretendido levar adiante seu ataque colossal a Satã e sua fortaleza papal.
Os católicos que usam este livro terão de lidar com a ambiguidade polêmica que esta tese propõe. (risos).
Para uma abordagem de algumas alegações feitas contra Lutero e que já foram refutadas inclusive aqui mesmo no blog Resistência Apologética, vide tabela abaixo elaborada pelo Lucas Banzoli (aqui).
Fonte: Resistência Apologética / Notas: [1] Palavra com significado obsceno