PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA DE BUCER, MARTIN. TEOLOGIA PASTORAL


Categoria: Livros
Imagem: Capa do livro (Amazon)
Publicado: 25 de Setembro de 2023, Segunda Feira, 09h49

Por: Alexander Stahlhoefer
Pastor luterano, bacharel em teologia pela Faculdade Luterana de Teologia em São Bento do Sul/SC e doutorando em teologia sistemática pela Universidade Friedrich-Alexander de Erlangen-Nuremberg, Alemanha.

Fora Wittenberg e Genebra há algo a mais que realmente seja de importância nas reformas do século XVI? A literatura escolar – e uso o termo escolar, pois muito do que temos em história da igreja ainda se resume a material escolar introdutório ao tema – não nos permite saber mais do que alguns poucos nomes deste período. Indubitavelmente conhecemos Lutero e Calvino. Lembramos que entre estes ainda há Zuínglio. Cá e lá se mencionam os assim chamados pré-reformadores Wicliffe e Huss. Quem se dedica um pouco a mais no assunto fica sabendo de Melanchton e Bullinger ou Beza. Mas tudo isto gira ainda em torno de dois grandes centros de produção e difusão das reformas: Wittenberg no norte da atual Alemanha – sim, atual Alemanha, pois à época das reformas o pequeno vilarejo se encontrava no eleitorado[1] da Saxônia e embora a cidade fosse a sede do eleitorado, não passava de uma pequena vila – e Genebra, cidade que já gozava de certa liberdade política e que com a reforma torna-se uma cidade estado escolhendo a forma de uma republica. Desta forma também não se pode falar de Genebra como uma cidade suíça, haja vista que ela só passou a fazer parte da Confederação em 1813.

A impressão que se tem é que tudo girava em torno de uma reforma no norte – a luterana – e outra no sul – a calvinista. Isto porém é uma caricatura moderna do período. É inegável a influência de Lutero e da reforma de Wittenberg em todo o movimento. A reforma no sul também deve muito ao impulso de Wittenberg. Uma breve caminhada no pátio da Leucorea – prédio principal da antiga Universidade de Wittenberg – nos fará lembrar que pessoas de todos os cantos da Europa vieram à Wittenberg em busca das novas ideias do ex-monge agostiniano. Mas assim como Lutero fora uma fonte à jorrar águas frescas por toda Europa, da mesma maneira o humanismo representava forte influência por todos os lados. Não só Lutero se valeu dos esforços de Erasmo de Roterdã. Também no sul, Calvino e muitos outros foram versados nas obras do humanismo. Ou seja, se já havia um desejo iminente por reformas, este foi intensificado com o humanismo bíblico de Erasmo. Estas duas forças intelectuais e espirituais forjaram assim o movimento das reformas do século XVI. Porque ele foi multifacetado e qual a importância de Martin Bucer quero discorrer à seguir.

O fato de falarmos em reformas – no plural – não diz respeito ao conjunto de iniciativas reformatórias, mas à diversidade de programas de reforma na Europa do século XVI. Ao deslocar o poder da autoridade do magistério da Igreja e consequentemente do Papa para a autoridade das Escrituras, as igrejas locais viram-se empoderadas para à luz das Escrituras promover mudanças teológicas e eclesiásticas. Não devemos entender o processo das reformas como se Lutero em seu escritório definisse ex-cathedra o programa teológico de todas as igrejas. Muito embora suas ideias fossem bem recebidas por toda parte e isto pode ser demonstrado pelas suas correspondências, as decisões dos rumos das reformas dependiam mais dos cleros locais, seus consistórios, conselhos municipais ou nobres locais. Ou seja, a conjuntura politica do Sacro Império foi decisiva no processo de reformas.

Por esta razão precisamos considerar outros atores, como o autor deste livro que agora está em suas mãos. Martin Bucer[2] nasceu em Schlettstadt na Alsácia em 11 de novembro de 1491. Seu nome, assim como do seu xará de Wittenberg, deve-se ao santo do dia, São Martinho. Ao que tudo indica o jovem Butzer (grafia original alemã do seu sobrenome, que foi latinizado como “Bucerus”, de onde vem a substituição do “tz” por um “c”) frequentou a escola latina de sua cidade, onde recebeu influência humanista. Por esta mesma escola passou, um século antes dele, seu conterrâneo, o inquisitor Heinrich Krammer, autor do Malleus malefcarum, também conhecido como o Martelo das Feiticeiras.

Apesar de os pais terem se mudado para Strassburg quando ele ainda era criança, Martin ficou em sua cidade natal com os avós, possivelmente para completar a escola latina e mais tarde em 1506, também por influência do avô, entrar no mosteiro dominicano da cidade. Sua ida ao mosteiro não teve um motivo de fé, mas como ele registrou mais tarde, era uma questão de sobrevivência para o avô. Para o jovem Martin era, por outro lado, a oportunidade de dedicar-se a uma vida de estudos. Entre 1515 e 1516 ele foi ordenado padre em Mainz. Depois disso matriculou-se em Heidelberg em 1517 onde completou o Magister Artium e o Baccalaureus theologiae. Neste período ele se dedicou ao estudo da filosofia de Aristóteles, ao estudo de Erasmo e à língua grega. Em 1518 ele teve contato pessoal com Martinho Lutero, durante a estada deste para o debate de Heidelberg. Desde momento em diante Bucer dedicou-se a estudar os escritos de Lutero. Por esta razão você encontrará, logo no início deste livro, menções de Bucer como pertencente ao grupo dos luteranos. É fato que mais tarde, por volta de 1530, haveria intensa troca de correspondência entre Bucer, Melanchton e Lutero por causa da controvérsia em torno da presença de Cristo na Ceia. Bucer buscava uma fórmula de compromisso entre a posição de Lutero e a de Zuínglio.

É justamente este tipo de atuação de Bucer que o tornou conhecido como o teólogo da conciliação. Além do programa de reforma em Strassburg, onde ele passou a atuar a partir de 1523, ele manteve intensa correspondência e viagens com fins de promovera unidade e a conciliação entre as igrejas da reforma na região sul da atual Alemanha, e também na Suíça. É importante notar que antes de Strassburg ele atuou em varias cidades nas regiões do Palatinado e da Alsácia, incluindo uma posição de capelão do conde palatino, através da qual ele pode viajar por toda região sul até Nuremberg. Além disto esta posição lhe rendeu a possibilidade de negociação com o confessor do imperador Carlos V, o franciscano Jean Glapion, dias antes da dieta de Worms. Bucer informou Lutero pessoalmente do plano do imperador. Lutero porém, compareceu a Worms, como bem sabemos.

Bucer foi um exímio organizador da igreja. Ele não apenas defendeu exegeticamente com maestria as reformas, como também trabalhou teologicamente cada mudança litúrgica e organizacional em Strassburgo. Por esta razão seu conselho era muito requerido por aqueles que estavam buscando implantar um programa de reforma em suas igrejas ou cidades. Calvino encontrou refúgio com Bucer após ter sido expulso de Genebra (1538-1541) e ali recebeu grande influência. Até por esta razão seria historicamente incorreto dizer que Bucer seria um calvinista, muito embora Bucer reconheça a grandiosidade do pensamento de Calvino e também tenha recebido sua influência, especialmente ao conseguir colocar em prática algumas sugestões que Bucer havia feito. Aliás, é importante notar que a organização eclesiástica e sócio-política proposta nas Institutas de Calvino sofreu forte modificação a partir das contribuições de Bucer. Primeiramente porque Calvino adotou a ideia da união com Cristo de Bucer como fundamento da sua eclesiologia. Em sua primeira edição das Institutas, Calvino ainda considera a igreja apenas como igreja invisível. Sua forma e organização externas vão receber atenção com a influência recebida de Bucer[3]. Aliás a proposta contida em Acerca da verdadeira cura d’alma e que mais tarde será ampliada como programa de reforma para a Inglaterra de Cranmer em De Regno Christ [Acerca do reino de Cristo], é pedra fundamental para a eclesiologia reformada.

O texto que você tem agora em mãos pode parecer muito simples, porém sua grandeza teológica e histórica é impar. Bucer emprega uma metodologia muito simples no trabalho, uma vez que seu objetivo é instruir a igreja através das Escrituras, sobre qual seria sua essência e tarefa no mundo. Primeiramente preciso esclarecer a você algo muito particular de Martin Bucer. Para cada secção tratada há em primeiro lugar uma coletânea de textos bíblicos relacionados ao tema. Isto pode nos levar a pensarem uso, por alguns às vezes até, sorrateiro do texto. As primeiras dogmáticas da reforma usavam textos de prova, que em última análise em certas ocasiões nada provavam, pois desrespeitavam o contexto e não passavam de tentativas de fundamentar opiniões próprias com o texto bíblico. Bucer não é um teólogo deste tipo – embora não seja livre de erros que, podem e devem ser questionados. Antes sua exegese é profundamente influenciada pelo humanismo. Há um interesse em buscar o sentido literal o original do texto dentro do seu contexto, através de ferramentas teológicas, gramaticais, estilísticas e históricas. Para Bucer a teologia é essencialmente exegese e esta exegese tem como tonalidade explicitar a doutrina da salvação por meio de Jesus Cristo[4]. Por isto podemos com segurança afirmar que o primeiro teólogo da reforma a intentar uma soteriologia narrativa, que levasse à serio a ordo saluts e ao mesmo tempo fosse exegeticamente embasada, foi Martin Bucer. Suas duas preleções sobre Gálatas, a primeira ainda em Strassburgo e a segunda em 1550 em Cambridge apontam para o fato de que a salvação por meio de Jesus Cristo nos leva à uma comunhão profunda com ele, uma comunhão profunda com os irmãos na fé e a partir desta à ação em amor ao próximo. Não por menos esta forma de pensar histórico-salvífica e narrativa vai concluir em De Regno Christ, uma defesa de como o reinado de Cristo se faz presente na igreja e na sociedade.

É claro que todos estes temas da teologia madura de Bucer apresentada em Cambridge no final de sua vida já estão presentes neste livro. Afinal de contas ele é a primeira teologia pastoral de que se tem noticia[5]. Mas não somente uma teologia pastoral pensando em pastores! Esta é o grande diferencial dos reformadores. Sua teologia é feita pensando na edificação de cada cristão. Bucer não quer apenas instruir pastores e dirigir consistórios. Ele compreende sua tarefa como demonstrar neste livro o que é ser parte da comunhão dos santos, a partir da comunhão que temos com Cristo. E a partir desta comunhão em Cristo, como se desenvolve todo o ministério cristão, desde àqueles que foram chamados para o ensino e direção da congregação, mas também daqueles que foram chamados às tarefas relacionadas ao serviço em amor ao próximo. Todo o ministério se organiza a partir do próprio ministério de Cristo. O ministério não é nosso, nem da Igreja, mas é o ministério de Cristo. Ele é o pastor e é ele quem alimenta e conduz o rebanho. Bucer deixa claro, que toda ação da Igreja é direcionada a partir do reinado de Cristo e conduzida por todos os cristãos, que estão em comunhão espiritual. Além disto precisa ficar clara a teologia do Espírito Santo de Bucer. Cristo reina e dirige a Igreja a partir do céu pelo Espírito Santo. Como se dá esta ação do Espírito é que Bucer define a partir da ação da Igreja. Por meio da Palavra e dos Sacramentos o Espírito dirige a Igreja em seu serviço. E para este fim são utilizados servos, que se encontram em comunhão com seu Senhor. A estes compete o ensino, a disciplina e o serviço em amor ao próximo.

Uma vez que a definição de Igreja, ministério e serviço cristão estão claros, Bucer pode descrever quais as qualificações bíblicas dos servos e como estes devem ser eleitos e consagrados na igreja. Aqui fica claro o cuidado de Bucer com a disciplina eclesiástica. O que ele apontará como requerido pelas Escrituras à todos os cristãos, vale fundamentalmente para os servos eleitos. Em seguida Bucer se preocupa com as tarefas do ministério cristão, como a busca pelos perdidos. Ele enfatiza que devemos ir à todos os lugares do mundo para anunciar o Evangelho. O vocabulário do reformador é sempre muito vívido. A evangelização não tem finalidade numérica. Ele não trata de fórmulas de crescimento da igreja, nem de avanço missionário. Sua missiologia é coerente com sua teologia pastoral. O intento do anúncio do evangelho é trazer os eleitos para o aprisco e deixar que Jesus os pastoreie! Se Cristo pastoreia a Igreja, nada mais correto que evangelizarmos com o propósito de buscar as ovelhas perdidas que precisam ser tratadas e cuidadas pelo bom pastor. Bucer também compreende que o papel da autoridade civil em relação a Igreja é impedir falsas doutrinas e manter a uma vida digna da vocação evangélica. Para ele se o reino de Cristo se faz presente na Igreja, também se faz no mundo. Por esta razão tema do governo cristão se faz presente em sua obra. As instruções aos governantes cristãos, porém, dizem respeito ao como eles devem governar buscando o bem comum da população. E é neste ponto que a Igreja é entendida como promotora do bem comum, por isto, o governante deve lhe apoiar na consecução de sua obra. É muito interessante como Bucer se preocupa com cada detalhe do ministério cristão. Desde como evangelizar, como buscar as pessoas fracas na fé e como tratar aqueles que estão fortes, para que não caiam.

Que a leitura desta obra possa servir à Igreja brasileira como programa de cuidado. Destaco aqui alguns elementos deste programa que deveríamos atentar especial atenção a partir da contribuição de Bucer: (1) compromisso com um exegese bíblica séria, academicamente bem fundamentada e orientada numa perspectiva histórico-salvífica e narrativa; (2) uma teologia pastoral que considere o ministério de Jesus Cristo como fundamento último e não se rebaixe à mera cópia de modelos tecnocráticos; (3) uma doutrina do Espírito Santo que ressalte o fato de que Deus pelo Espírito empodera a Igreja com Palavra e Sacramento para o ministério; (4) o sacerdócio universal como ponto de partida e finalidade do ministério ordenado; (5) missiologia e diaconia que ressaltem a obra de Cristo e não nossos valores mercadológicos e ideológicos; (6) uma relação igreja e estado de mutuo apoio e crítica, com vistas ao bem comum, lembrando que Cristo reina sobre todas as esferas da realidade.

 

NOTAS:
1 Eleitorado era um principado no Sacro Império com direito eleitoral. Isto significava que o príncipe tinha o direito de ser candidato e de votar na eleição para imperador do Sacro Império.

2 Os dados biográficos e as conexões teológicas e eclesiásticas de Bucer que cito neste texto foram extraídos de Robert Stupperich, Art. Bucer, Marn (1491–1551) in Horst Robert Balz, Stuart G. Hall, Richard Hentschke et alli, Theologische Realenzyklopädie, vol. 07. Berlin: Walter de Gruyter, 1981,p.258-270.

3 Willem van’t Spijker, Bucer’s influence on Calvin: church and community in D. F. Wright (ed.), Martin Bucer: Reforming Church and Community. Cambridge University Press, 1994, p. 32-44.

4 Sobre a exegese de Bucer em Efésios veja Amos, Scott N. Bucer, Ephesians and Biblical Humanism. The exegete as theologian. London: Springer, 2015.

5 N. F. Hahn, Art. Bucer, Martin (1491-1551) in Asquith, Glenn H. (ed.). The concise dictionary of pastoral care and counseling. Nashville: Abingdon Press, 2010. Rothen, Paul Bernhard. Das Pfarramt: eingefährdeter Pfeiler der europäischen Kultur. Münster: Lit Verlag, 2009, p. 377.

 

Fonte: Academia.Edu


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