NAZISMO E CRISTIANISMO, A RELAÇÃO ENTRE A IGREJA PROTESTANTE ALEMÃ E O MOVIMENTO NACIONAL-SOCIALISTA, ANDRÉ DOS SANTOS FALCÃO NASCIMENTO


Categoria: Livros
Imagem: Capa do livro Nazismo e Cristianismo de André dos Santos Falcão Nascimento
Publicado: 26 de Abril de 2020, Domingo, 00h00

Link para adquirir o livro: Fonte Editorial

ANDRÉ DOS SANTOS FALCÃO NASCIMENTO
Carioca, Pastor da Primeira Igreja Batista
do Grajaú, graduado em teologia e pós-graduado
em teologia bíblico-sistemática no Seminário
Teológico Batista do Sul do Brasil. Suas linhas
de pesquisas atuais são História da Igreja
e Cristianismo Contemporâneo, possuindo
mais escritos em seu blog,
http://prfalcao.blogspot.com

– INTRODUÇÃO
O ano é 1945. O local é Nuremberg, cidade alemã parcialmente devastada pelos bombardeios aliados. Nesse local desolado, com escombros de prédios servindo de corredores para as brincadeiras das crianças e de material de reconstrução para novas casas, 21 líderes do Partido Nazista, detidos pelas forças soviéticas nos primeiros dias de maio, são julgados por crimes contra a humanidade e genocídio.

Durante o período do extenso e detalhado julgamento, uma pausa para um momento solene: a comemoração do natal. Enquanto juízes, soldados e jornalistas comemoram em um hotel próximo, um dos poucos locais não atingidos pelas bombas americanas e inglesas, em meio a danças e pompa, na prisão vê-se uma cena inusitada: reunidos em bancos de madeira e com cancioneiros improvisados, os 21 detentos celebram o nascimento do homem que mudou a história, cantando “Noite Feliz”.

Surge aqui a dúvida: como esse grupo de homens, considerados por muitos os piores criminosos da história da humanidade, responsáveis pelo assassinato de 6 milhões de judeus e mais de 15 milhões de civis e militares, pode celebrar o nascimento do homem que a teologia tradicional associa ao “Príncipe da Paz” de Isaías 9.6[1]? Como aceitar que pessoas que comandaram os campos de extermínio e que foram responsáveis pela doutrinação de milhões de jovens nas artes ocultas do neopaganismo alemão possam se autocompreender como “cristãos”?

Entender o relacionamento entre o movimento nazista e o povo alemão do começo do século XX é uma tarefa árdua, cheia de reviravoltas. Um observador menos atento pode imaginar que o povo alemão foi ameaçado e obrigado a seguir a doutrina nazista e idolatrar seu grande líder, o austríaco Adolf Hitler. Entretanto, os trabalhos históricos mais atuais nos mostram que boa parte do povo alemão não só aceitou, mas abraçou com todas as forças a ideologia nacional-socialista, em grande parte de suas nuances e consequências.

O problema para os cristãos de hoje é quando percebem que a população alemã era formada, em sua esmagadora maioria, de cristãos. Alguns autores afirmam que mais da metade do povo alemão era protestante, enquanto 40% era católico. Como aceitar que uma população majoritariamente cristã, que foi o berço da Reforma Protestante, que deu lugar às pregações de Lutero, possa ter cruzado os braços e virado as costas para seus vizinhos, amigos e mesmo parentes de ascendência judaica?

A intenção deste trabalho é entender o movimento religioso alemão antes e durante o período de ascensão do movimento nazista na Alemanha, buscando ponderações no campo social, histórico e teológico para compreender as razões que levaram o povo alemão a aceitar[2] a liderança do Partido Nacional-Socalista alemão.

Inicialmente, este trabalho busca antecedentes, ou causas, que prepararam o terreno para a ascensão do movimento nazista na Alemanha, mostrando que a teologia antissemita cristã, a idéia da supremacia da raça ariana, a filosofia de Nietzche sobre o super-homem e sobre a consciência “além do bem e do mal”, assim como as correntes teológicas liberais[3] do século XIX, contribuíram decisivamente para a formação de um sentimento de antipatia e desconfiança generalizadas da população em relação ao povo judeu.

A seguir, esta obra estuda os efeitos da ascensão do nazismo na vida religiosa alemã, motrando a criação do movimento dos “Cristãos-Alemães”, grupo de protestantes que buscava “desjudaizar” o cristianismo e seu próprio “fundador”. Além disso, é analisada a questão da “religião do Sangue” de Hitler, ideologia[4] que preconizava uma busca pela raça ariana perfeita, com a proibição da mistura das “raças”[5] judia e alemã, e a reação da Igreja[6] às Leis de Nuremberg, que detalhavam e classifcavam os judeus conforme diversas características.

A busca deste trabalho é fazer uma relação entre os pressupostos da ideologia e filosofia que fundamentaram o governo nazista e, com este conhecimento, entender como os teólogos da Alemanha Nazista trabalharam o estudo bíblico, formatando a criação da Igreja Cristã-Alemã e mesclando a ideologia antissemita e racialista do nazismo com a pregação da Bíblia.

Trabalhar este tema também se torna importante para entender como a cultura e contexto que cercam o teólogo podem influenciar seu pensamento ou interpretação do texto bíblico. Compreender o que cercava o teólogo alemão do começo do século XX é essencial para compreender o próprio teólogo. Compreendendo o teólogo, conseguimos compreender sua teologia e, então, decidir se tal teologia é boa para ser retida ou se alguns de seus pontos devem ser descartados, como produtos do meio.

Por fim, compreender o teólogo também se torna vital para entender o povo a quem este teólogo prega e influencia. Dessa forma, somente compreendendo o teólogo e a igreja alemã, podemos entender como o nazismo conseguiu dominar as mentes da grande maioria do povo, permitindo que este olhasse, passivamente, a cruel destruição de uma etnia inteira sem pestanejar ou esboçar qualquer reação.

Por conta da extensão do tema, preferiu-se delimitar este estudo a uma análise da teologia protestante e da evolução da Igreja Protestante Alemã, de confissão luterana. Também restringiram-se os estudos sobre os efeitos do nazismo no cristianismo ao chamado “movimento cristão-alemão”, o qual é generalizado neste trabalho, apesar de se saber que ele foi, na verdade, formado por um grupo de frentes diversas, de ideologia semelhante, mas lideranças diferentes. Por fim, focamos nossos estudos da Igreja Luterana Alemã e da teologia protestante ao período dos sécs. XIX e XX, fazendo um corte em 1945, ano da queda do regime nazista.

A metodologia adotada para esta pesquisa foi a busca de fontes bibliográficas em livros e artigos científicos, nacionais e internacionais, que já tivessem estudado algum aspecto do tema. O assunto é muito recente no meio acadêmico, proporcionando uma gama de áreas de pesquisa que, combinadas, ajudam a construir o quadro da Igreja Protestante Alemã no começo do séc. XX. Esta novidade de área de estudo também traz duas limitações: Escassez de obras em português sobre o tema e diversidade de enfoques, dificultando a delimitação do conteúdo a ser apresentado.

O objetivo geral deste trabalho é mostrar que a populaçào cristã da Alemanha, ao longo de sua história, foi influenciada por diversos pensamentos e teorias que a levaram a não só tolerar, mas aceitar, abraçar e propagar a ideologia nazista durante os anos 30. Especificamente, este trabalho quer mostrar que houve um movimento de mescla entre os ideais nazistas e a pregação cristã, facilitado por estes fatores histórico-sociais, levando a uma formatação da teologia protestante completamente distinta do que se vê nos dias de hoje.

Notas da Introdução:
1 – A respeito dessa associação e à tradicional associação dos nomes de Isaías 9.6 a Jesus Cristo, comenta F. B. Meyer (2022, p. 355): “Que nomes grandiosos são dados ao Senhor! [Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz] Eles não se aplicam a nenhuma outra criancinha! […] No poder de sua graça, entreguemos a direção de tudo ao maravilhoso Filho de Deus“.

2 – Entende este trabalho que a aceitação do povo alemão dos ideais nazistas se deve a uma série de fatores pré-existentes e o desenvolvimento teológico, ambos construídos ao longo do final do século XIX e início do século XX.

3 – Como Teologia Liberal, este trabalho usa como definição a apresentada por Rosino Gibellini, em sua obra “Teologia do Século XX”, já presente nesta pesquisa, oriunda da obra de Johann Solomo Semler, o primeiro a cunhar o termo: “[…] um livre método de investigação histórico-crítica das fontes da fé e da teologia, que não se sentisse vinculado aos dados posteriores da tradição dogmática“.

4 – Este trabalho considera “ideologia” como um “conjunto de ideias próprias de um grupo, de uma época, e que traduzem uma situação histórica”, segundo o Dicionário Aurélio Online.

5 – Este trabalho considera “raça”, quando não diretamente relacionado ao conceito nazista de volk, como um “grupo de indivíduos cujos caracteres biológicos são constantes e passam de uma a outra geração”, segundo o Dicionário Aurélio Online.

6 – Apesar de ser notório, pela pesquisa científica, que as reações das Igrejas Luterana e Católica foram diferentes na sua cúpula, é também notório que membros das duas igrejas tornaram-se adeptos da ideologia nazista e pregaram o extermínio dos judeus. Como o recorte de nosso estudo é a Igreja Protestante, a partir deste ponto, todas as referências genéricas para “Igreja” deverão ser entendidas como sendo referências primordialmente à Igreja Luterana Alemã, com todos os seus braços.

– CAPÍTULO 1: CAUSAS SÓCIO-POLÍTICAS
Compreender a reação da população alemã ao regime nazista e a suas políticas internas é um trabalho que demanda uma análise aprimorada do passado desta nação europeia. Ao se realizar esta tarefa, descobre-se que a essência da ideologia social nazista pode ser encontrada em diversos movimentos, distintos em sua motivação e finalidade, mas reunidos com maestria impressionante pela liderança do Partido Nacional-Socialista Alemão[1] para formulação de suas propostas de trabalho para melhoria das condições de vida da população.

Este trabalho examina, nas próximas páginas, a influência do antissemitismo cristão e científico e do ideal de supremacia da raça ariana sobre a população alemã como um todo.

1.1 O Antissemitismo Cristão e o Antissemitismo Científico
Doris Bergen, em sua obra Twisted Cross: The German Christian Movement in the Third Reich, apresenta uma tese fortemente defendida, nos dias de hoje:

O legado cristão de hostilidade ao Judaísmo e aos judeus, apesar de não ser uma causa suficiente para o genocidio nazista, teve um papel crítico. O antissemitismo cristão não motivou os tomadores de decisão do topo, mas ajudou a tornar seus comandos compreensíveis para oficiais e fileiras que executaram medidas contra judeus, assim como àqueles que passivamente as aceitaram“.[2]

A pergunta que fazemos, então, é: Que legado cristão é esse? De onde vem? Até que ponto este histórico antissemita do cristianismo pôde influenciar toda uma população, toda uma nação?

O histórico de violência cristã em relação a membros da comunidade judaica é extenso, iniciando-se séculos antes dos ataques nazistas a esse grupo. De fato, segundo o Museu Histórico Americano sobre o Holocausto, o sentimento de ódio e desconfiança pelos judeus foi alimentado desde o primeiro milênio da era cristã por uma teologia que pregava que os judeus como um todo eram culpados pela crucificação de Jesus Cristo[3] e que a destruição do templo em 67 e.c. havia sido causada por pecados anteriores e pela contínua teimosia do povo judeu em não reconhecer Jesus como o messias prometido no Antigo Testamento.

A rixa entre judeus e cristãos aumentou anos após a destruição do templo, durante o Concílio de Jamnia, em 80 e.c., quando, segundo Maria Aparecida de Andrade Almeida[4], a liderança farisaica judaica julgou que a queda do Templo aconteceu por conta do não-cumprimento da lei mosaica pelo povo judeu e, em especial, por conta da crença na messianidade de Jesus.

Tal crença foi julgada como heresia, forçando uma rivalidade entre os grupos que terminaria com a expulsão do povo cristão das sinagogas. Sobre a situação, a autora relata o seguinte:

A comunidade joanina viveu forte conflito com o império romano e com as autoridades judaicas. Estes são os representantes supremos da oposição e do ódio contra Jesus. Ao romper com o sistema baseado no cumprimento rigoroso da Lei, ameaça a autoridade dos judeus/fariseus. Então, os cristãos são expulsos da sinagoga e começam a ser perseguidos. A primeira medida que os judeus tomaram em relação aos primeiros seguidores de Jesus parece haver sido a exclusão e a expulsão da sinagoga.[5]

Ao passar dos séculos, a rixa entre judeus e cristãos foi aumentando, fazendo com que a crença dos cristãos na culpa dos judeus pela morte de Cristo aumentasse. Com o tumultuado período dos séculos X e XI, essas doutrinas se solidificaram dentro da cultura cristã, devido, segundo o Museu do Holocausto, a cinco fatos históricos ocorridos neste período:

Ameaça à hierarquia da Igreja com a cisão iminente entre o Catolicismo Romano e a Ortodoxia Grega (1054); ondas sucessivas de conquistas muçulmanas; fervor [escatológico] pelo fim do milênio; sucesso em conveter os grupos étnicos pagãos do norte da Europa; e zelo espiritual-militar das Cruzadas.”[6]

Com as conquistas árabes, e tendo que sobreviver na Europa, um continente totalmente cristão, os judeus tornaram-se o alvo de inúmeros ataques, pessoais e físicos, devido à sua constante negação de que Jesus é o filho de Deus. Em uma época onde a religião tornara-se a principal forma de ligação cultural entre os povos europeus, influenciando suas vidas públicas e privadas, os judeus foram obrigados a isolar-se, sendo sempre tratados por seus vizinhos como forasteiros e, ocasionalmente, sendo vítimas de “massacres”[7], ataques sistemáticos a suas casas e negócios por parte dos demais moradores da região, motivados por mitos, como o de que os judeus usariam o sangue de crianças cristãs em alguns de seus rituais.

Ao longo dos séculos seguintes, ainda segundo o site do Museu do Holocausto[8], especialmente com o ressurgimento do comércio na Europa, a partir do séc. XIII, muitos judeus foram convidados a morar em regiões do oeste europeu. Ali, sistematizaram o sistema bancário, emprestando dinheiro a juros para moradores da região (tal prática era proibida pela Igreja aos cristãos). Também trabalharam com manufaturas dentro das cidades, devido à proibição de possuírem terra para si. Entretanto, com o tempo, mesmo sua participação nas guildas de manufaturas começou a ser proibida, sob alegações que variavam desde a falta de vontade pelo trabalho duro à preferência por negócios financeiros e compra e venda de produtos que eles não fabricaram (comércio).

Uma das principais acusações contra os judeus para nossos estudos, porém, é a de que muitos resolviam se converter ao cristianismo para poder ter acesso às atividades consideradas “nobres” na época: aristocracia dona-de-terra e serviços militar e público. O sucesso que muitos desses ex-judeus alcançavam levou vários cristãos a acusá-los de oportunismo. A inveja do povo cristão com a ascensão do ex-judeu acabou gerando um crescente sentimento negativo contra esse grupo social ao longo dos séculos.


Representação de destruição de gueto judeu na Polônia em 1613

O clímax dessa situação foi alcançado nos séc. XIX, durante o I Reich, quando a combinação de três fatores, segundo Cornelia Essner[9], aumentou a disputa por postos de trabalho entre cristãos e judeus das classes baixas da Alemanha, causando a inveja de alguns cristãos e o medo do fracasso em outros: a liberdade civil-religiosa que deu poderes aos judeus de batalharem por sua vida em pé de igualdade com os cristãos, uma recessão econômica subsequente e um influxo de judeus proletários russos em 1890, fugitivos de uma série de massacres no império czarista.

Além dessas questões, segundo Essner[10], um dos problemas vistos pela sociedade alemã foi a liberação do casamento civil, que permitiu o casamento “misto”, ou seja, de pessoas de diferentes religiões. Inicialmente, segundo Essner, apenas casamentos entre católicos e protestantes eram comuns, porém, o fenômeno do casamento judaico-cristão atingiria sua plenitude durante a República de Weimar, com um antropólogo sionista citado pela autora comentando que “tudo o que o batismo deixa, parte por casamento”.

Além disso, segundo o Museu do Holocausto, a combinação da sensação de que os judeus estariam roubando postos de trabalho anteriormente reservados a cristãos ao sentimento de que os judeus estariam dominando postos de trabalho considerados “futuristas” (serviços bancários, comércio, indústria, medicina, direito, jornalismo, arte, música, literatura e teatro), levaram à elevação das hostilidades[11].

A visão, descrita acima, de que os judeus tinham preferência pelos negócios com capital, também se mostraria importante para a disseminação do antissemitismo na Alemanha pré-nazista. Alguns estudiosos socialistas do começo do séc. XX declaravam que a forma de combater a ascensão e domínio do capitalismo era enfrentando os judeus, tendo em vista terem estes trazido um capital “súbito” que concorria com os investimentos de capitalistas não-judeus[12]. Além disso, a crise econômica que se instaurou na Alemanha após a 1a Guerra Mundial levou muitos alemães a culparem os judeus, segundo Angela Almeida “vistos como representantes do capital financeiro”, levando ao ódio que motivaria a corrente política conhecida como nacionalismo[13].

As questões levantadas acima levaram a academia a começar a estudar o povo judeu e a buscar formas de rebaixá-lo. Segundo Essner, “o antissemitismo moderno surgiu na Alemanha pouco depois da criação do Estado nacional em 1871[14], ou seja, desde o governo de Otto Bismarck já se falava em uma batalha contra os judeus. Os estudiosos da época, ansiosos por aplicar a teoria evolucionista de Darwin em seus estudos, lançaram vários trabalhos acadêmicos onde colocavam a população branca no topo da cadeia evolutiva, enquanto relegava os negros e os judeus a patamares sub-humanos.

Essner também comenta que “a tese darwinista da ‘sobrevivência dos mais aptos’ conquistara os espíritos no novo Reich[15], onde a vitória do povo alemão na fundação do Estado-nação sobre o “inimigo hereditário” francês ofereceu a confirmação política desta teoria biológica. Não só isso, a autora também afirma que o êxito das idéias de Nietzsche (que serão comentadas no próximo tópico) devem muito à influência do darwinismo.

Com a aproximação do final do séc. XIX, Essner afirma que “um número crescente de marginais empenha-se, a partir dos anos 1880, em preencher este défice (sic) por escritos de ‘filosofia racial’ ou de ‘antropologia histórica‘”[16]. A União Pangermanista afirmava que havia uma “diferença racial” entre colonizadores e colonizados, dividindo o mundo em brancos, negros e amarelos. Curiosamente, este grupo enquadrou os judeus entre o grupo dos brancos, porém afirmavam que os berços das duas civilizações (ariana e judaica) eram diferentes, sendo a ariana genuinamente europeia e, portanto, devendo suplantar a judaica como criadora da civilização europeia.

Com as novas pesquisas e teorias ário-germânicas, os antissemitas, segundo Essner[17], concentraram todas as suas esperanças neste ramo científico. Textos como o “Catecismo Anti-Semita”, uma coletânia de textos contra os judeus de 1887 que seria gradativamente reeditado e sistematizado, alcançaria seu ápice durante o Terceiro Reich. Neste texto, surge a seguinte afirmação: “A força do judeu reside na natureza da sua raça e não lhe poderemos fazer frente vitoriosamente enquanto não estivermos em condições de lhe opormos, de novo, o homem de raça ariana“. Posteriormente, uma nova disciplina foi criada, a “antropologia física alemã”[18], que buscava analisar características físicas e antropológicas sobre a população judaica, tentando identificar se os judeus possuíam sangue puro ou mestiço e qual seria a efetividade da mistura deste sangue judeu com o sangue ariano ou cristão.

A partir do final do séc. XIX, uma nova abordagem a respeito do judaismo começou, quando “uma nova geração de darwinistas sociais que se designavam como eugenistas ou higienistas raciais, relega para segundo plano a raciologia antropológica e se esforça por encontrar a ‘raça’ não no sangue ou na anatomia, mas nos genes[19]. Estes estudos trouxeram à tona termos que citaram os judeus como sendo “degenerados” geneticamente e influenciaram a política racial do NSDAP, concretizado futuramente nas Leis de Nuremberg. É nessa época, segundo Enrique Luz[20], que surge a noção do judeu como “parasita social” pelas mãos do filósofo e economista alemão Eugen Düring, apresentada por Hitler, segundo Essner[21], em sua obra, Mein Kampf.


Representação de progrom russo do começo do séc. XIX

A Primeira Guerra Mundial teria, ainda segundo Essner[22], aumentado o sentimento antijudaico. No front, os soldados judeus eram acusados de covardia. De fato, segundo Bergen[23], o mito da “facada nas costas”[24] teria uma dimensão de gênero, pois os homens estariam no front, enquanto aqueles que ficaram e assinaram a capitulação da Alemanha seriam mulheres e “não-homens” (associados imediatamente a judeus). Somando-se a isto os estudos etnológicos da época e à insatisfação crescente da população com a presença e a chegada de cada vez mais judeus, retirando seus empregos e mulheres, os alemãos viram-se em uma condição ideal para o surgimento de ideais e discussões a respeito da necessidade de purificação e exaltação da raça ariana e de seu glorioso passado, com o retorno do culto aos antigos deuses germânicos como um dos carros-chefe.

Foi nessa época que jornalistas adeptos da filosofia völkisch[25] começaram a usar os textos judaico-cristãos para pensar a oposição a estes grupos. Entre eles, Dietrich Eckart, futuro membro do NSDAP e mentor de Hitler, que, segundo Essner, trabalhou o estereótipo do “judeu malfeitor” a partir do Antigo Testamento e do Talmude. Rudolf Kittel[26] tentou combater esta noção, porém acabou alimentando o ideal antissemita ao afirmar que os hebreus do AT e os judeus modernos não partilhavam a mesma fé, noção da qual Houstou Stewart Chamberlain se utilizou para fundamentar sua fúria contra a população judaica de sua época.

Esse novo enfoque no campo religioso se deveu a uma falha dos antissemitas, por não conseguirem mais apoiar, segundo Essner[27], sua fúria em uma inferioridade nos campos biológico ou antropológico. A experiência da Primeira Guerra Mundial e a propagação de novas crenças e do ateísmo também facilitou as críticas ao povo judeu a partir do viés religioso. No infame filme “O Judeu Eterno”, apresentado em Berlim em 1940 e patrocinado por Joseph Goebbels, ministro de propaganda de Hitler, é dito que o judaísmo “já não é uma religião, já não é um culto, (mas uma) conspiração contra os Arianos“.

A conclusão que se chega, ao se estudar essas questões, é que já havia um histórico racionalista antissemita que procurava impedir a miscigenação entre as raças ariana e judaica, de forma a não degenerar a primeira. O movimento völkisch, por muito tempo, segundo Essner, pregara que “os casais racialmente misturados” prejudicavam o povo alemão. Düring teria escrito, em 1881, que

“o afluxo de sangue de Judeu só pode (…) originar uma deterioração. Esta corrupção toma a pior das formas quando mulheres pertencentes aos povos superiores são obrigadas, pela fatalidade, a oferecer à tribo dos Judeus e ao carácter (sic) dos Judeus lugares de reprodução.[28]

Nesse sentido, a compreensão de que o povo alemão era uma raça superior acabou fazendo com que surgisse a política de purificação da raça ariana, com a proibição dos casamentos mistos e, futuramente, a cassação destas uniões. Para tal, segundo Essner[29], foram considerados judeus aqueles que professavam a religão judaica, conforme Dühring haveria proposto em 1881.

Os impactos deste pensamento, segundo Essner[30], seriam sentidos anos mais tarde. Em 1931, pessoas começaram a ser aconselhadas a não dar nomes da Bíblia Hebraica a seus filhos. Em 1933, um cronista cristão-alemão afirmou que a LIga da Igreja Alemã (entidade antissemita criada nos anos 20), apesar de ter se afastado demais da Bíblia, era um “grupo de vanguarda, de guerreiros, por um modo de vida cristão baseado na consciência cristã de raça”. Anos depois, um exame de confirmação cristão-alemão ilustrou a nova visão da igreja: os candidatos eram obrigados a afirmar que o novo tempo do Espírito Santo era o Völk[31], e que a santificação se dava na sua vida comunitária, eliminando os não-arianos de seu interior. Também houveram conseqüências teológicas: os textos do Novo Testamento favoráveis ao judaísmo eram considerados, segundo Bergen[32], falsificações infiltradas por cristãos judeus para introduzir a visão de dominação judaica para dentro da nascente religião.

A conclusão que se chega, com esta análise, é que a soma da propaganda pró-arianismo com as “descobertas” científicas serviram apenas para alimentar a mente do cidadão alemão sobre a inferioridade do povo judeu, e que a questão religiosa tornou-se crítica para a aceitação das idéias antissemitas de superioridade do povo alemão e inferioridade do povo judaico por parte da população.

1.2 Poder Ariano: A Supremacia do Alemão Sobre o Judeu
Erwin Lutzer afirma que “o Terceiro Reich não pode ser entendido sem que também examinemos a doutrina racial: a crença de que somente por meio da linhagem pur aa humanidade pode alcançar sua lgítima divindade[33]. O desejo de Hitler seria fundar um novo Estado alemão, alicerçado numa raça puramente ariana. Este ideal foi baseado não só nas pesquisas científicas, como também em ideais e conceitos produzido spor leigos e místicos no século anterior.

Segundo Lutzer, Hitler costumava dizer que quem quisesse compreender o nacional socialismo alemão, deveria conhecer Richard Wagner, famoso compositor de óperas que construía compreensíveis e cativantes histórias de amor, conquista e superação com deuses pagãos e demônios. Antissemita radical, Wagner afirmava que Jesus Cristo nascera com sangue ariano, conforme uma revelação que tivera, e que não se tratava do Cristo judeu do Novo Testamento, mas “de um Cristo que derramara sangue ariano e que lideraria a Alemanha de volta à grandeza que era sua por direito“.

Lutzer também afirma[34] que Hitler adotou, em conjunto com a visão acima, a teoria da “sobrevivência do mais adaptado” de Charles Darwin, e que “asseverava que o homem tinha o direito de ser ‘tão cruel quanto a natureza'”. Palestras eram dadas nas escolas e para as tropas da SS[35], a fim de comprovar a inferioridade dos judeus. Estudos cranianos eram feitos para tentar comprovar que o povo ariano era melhor adaptado à Europa do que o judeu, tentando justificar as atrocidades que seriam posteriormente cometidas. Nessa visão de mundo, “somente os mais ‘adaptáveis ao ambiente’ tinham o direito de sobreviver”.

Entretanto, o pensador que provavelmente melhor enquadra o pensamento de Hitler foi Houston Stewart Chamberlain, genro de Richard Wagner e escritor do livro The Foundations of the Nineteenth Century. Em seu livro, Chamberlain combinou, segundo Lutzer[36], a teoria de Wagner sobre a raça superior com a teoria da superraça de Nietzsche. Chamberlain acreditava que a “raça superior” poderia ser criada, apesar dela já existir entre o povo da Prússia, e afirmava categoricamente que Jesus era ariano.

A importância do pensamento de Chamberlain para a formaçào do ideal nazista é crucial. Lutzer afirma que, em um encontro com Hitler, Chamberlain teria ficado tão estupefato que teria escrito o seguinte relato em uma carta ao futuro Führer:

A minha fé no arianismo não vacilou em nenhum momento (…) com um único golpe você transformou a situação de minha alma. O fato de a Alemanha em seu momento de maior dificuldade ter dado à luz a um Hitler, prova sua vitalidade. Que Deus o proteja.[37]

A tática descrita acima, de criação de uma tradição para a fundamentação de um reigme, é trabalhada por Eric Hobsbawn. Seu conceito de “tradição inventada” é definido como

um grupo de práticas, normalmente governadas por regras tacitamente ou abertamente aceitas e de natureza simbólica ou ritualística, que buscam imputar certos valores e normas de comportamento por repetição, o que automaticamente infere continuidade com o passado. De fato, quando possível, elas normalmente tentam estabelecer continuidade com um passado histórico adaptável.[38]

O autor, apesar de não trabalhar Chamberlain diretamente, nota[39] que já existia, na época do Segundo Reich, um desejo do governo de criar um grupo de tradições para justificar o processo de unificação alemã. Para isso, o governo de Guilherme II e seu chanceler, Otto Bismarck, planejaram duas frentes de trabalho para alcançar tal objetivo: A continuidade do Segundo Império em relação ao Primeiro[40] e a fusão histórica da Prússia e da Alemanha, visando a unificação dos dois impérios. Para alcançar estes objetivos, a forma mais visível e eficiente foi a construção de prédios e monumentos, gerando novas interpretações da história alemã[41].


Visita de grupo de alemães da SS ao Tibet, em busca de conexões entre os dois povos

Utilizando essa definição de Hobsbawn, Chamberlain pode ser, portanto, creditado por influenciar a formação do que seria conhecido, posteriormente, como a “religião do sangue de Hitler”. Ele ficou popular por divulgar a antiga lenda do continente perdido de Atlântica, de onde a raça ariana seria oriunda. Segundo Chamberlain, a raça superior ariana, fugida do continente perdido, teria se deslocado para as reiões do Tibete e da Índia, onde uma superraça teria produzido poderes mágicos e cujas ordens eram obedecidas até pelos espíritos. Estes poderes poderiam ser sentidos apenas pelos arianos, descendentes da raça superior atlântica, enquanto que as raças inferiores não teriam este privilégio.

Esta teoria de divisão pode ser vista até hoje, por exemplo, no sistema de castas indiano. Lutzer aponta isto, notando que abaixo das quatro castas indianas estariam os indivíduos conhecidos como “intocáveis”, “pessoas subumanas cujo carma decretou que lhes fosse negada a dignidade proporcionada aos seres humanos”[42]. Qualquer semelhança com a forma do nazista enxergar o judeu não é mera coincidência.

Este sistema de casta possui, segundo Lutzer, três fundamentos: O primeiro é que o lugar de alguém na sociedade é determinado pelo nascimento (sangue). O segundo diz que a única esperança de salvação é a reencarnação, isto é, o alcance de uma forma de vida superior após a morte (a transformação nesta vida seria impossível). O terceiro diz que a sorte de alguém nesta vida e na próxima é determinada pela lei impessoal do carma. Estas idéias acabaram plantadas em terreno fértil na mente de Hitler, que aceitou o conceito hindu do destino determinado pelo sangue e passou a acreditar que poderia encurtar o processo de desenvolvimento da raça superior, através do extermínio dos inferiores (judeus) e da eugenia (sistema de procriação dirigida e evolutiva entre pessoas da raça ariana).

Esta visão da realidade traz uma nova compreensão à forma de pensar de Heinrich Himmler e sua criação, a SS. As tropas, conhecidas por sua brutalidade e aparente falta de moral, foram doutrinadas nos ensinos místicos orientais e ensinadas que a raça superior estava em desenvolvimento e as raças inferiores não poderiam ficar em seus caminhos. Lutzer também afirma que “os próprios membros da SS estavam convencidos de que eram o primeiro estágio da mutação dos super-homens[43].

O doutrinamento das tropas SS, porém, ia ainda mais longe. As tropas eram ensinadas a tornarem-se indiferentes ao sofrimento e à culpa, mesmo quando a ordem fosse matar crianças. Também eram ensinadas a abdicar de suas próprias consciências, vivendo as palavras de Hermann Göring: “Eu não tenho consciência! Adolf Hitler é minha consciência!“, ou “Não sou eu quem vivo, mas Führer vive em mim!“. Os judeus eram encarados como subumanos, como não pertencentes à mesma espécie. Dessa forma, eles estariam sendo “libertados” de seu triste carma de terem nascido judeus no momento de seu assassinato, permitindo que eles fossem salvos aravés de uma reencarnação em outro ciclo de existência. Desta forma, o extermínio nos campos de concentração seria visto como um “favor” aos seus ocupantes, um “ato de piedade” dos nazistas com os “pobres e condenados” judeus.

Sabendo-se que toda esta teoria era seguidamente difundida pelos meios de propaganda nazistas à população em geral, fica fácil entender os motivos pelos quais a população pouco reclamou sobre a perseguição e morte do povo judeu. Sobre as tropas da SS, Lutzer afirma:

A lavagem cerebral que as tropas recebiam ajuda a explicar como os soldados da SS podiam realizar atos de absurda crueldade, mas, mesmo assim, ainda voltar para casa no Natal, ir à igreja e considerarem a si mesmos bons cristãos. Eles não eram assassinos, e sim pessoas que estavam construindo a raça de super-homens e ajudando os seres inferiores a seguir em frente em sua jornada evolutiva. Graças ao carma, todos estavam apenas tendo o que mereciam. Para citar Himmler, eles ainda eram pessoas ‘decentes’.”[44]

Apesar de esclarecer que não culpa o hinduísmo pelo que aconteceu na Alemanha nazista, Lutzer vai afirmar que

o que não pode ser negado é o fato de que as crenças hindus formavam o corpo doutrinário dos líderes da SS e ajudaram a justificar a ‘solução final’. A doutrina cruel do sistema de castas, baseada em ideias mitológicas sobre o sangue, tornou-se ainda mais cruel sob a liderança de Hitler.[45]

Para este estudo, precisa-se focar no fato de que foi das antigas lendas sobre uma raça superior que veio o embasamento teórico para a reafirmação da superioridade e divindade da raça ariana e a busca por um aperfeiçoamento desta, em detrimento das raças inferiores, estando, abaixo de todas, a “raça” judaica.

Notas do Capítulo 1:
1 – Conhecido da literatura acadêmica mundial por sua sigla em alemão, NSDAP, a qual será adotada a partir deste ponto do trabalho.

2 – BERGEN, Doris. Twisted Cross: The German Christian Movement in the Third Reich. Chapel Hill: UNC Press, 1996, p. 9.

3 – Provavelmente baseando-se em Mt. 27.25.

4 – ALMEIDA, Maria Aparecida de Andrade. “Os judeus e a expulsão da sinagoga para a comunidade joanina”. Oracula – Revista de Estudos de Apocalíptica, Misticismo e Fenômenos Visionários. São Bernardo do Campo: v. 10, 2010. ISS: 1807-8222, p. 4.

5 – Ibid., p.6.

6 – UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. Disponível em: < http://www.ushmm.wlc/article.php?lang=en&Moduleld=10007 170 >. Acesso em: 20 fev. 2010 às 10:35h.

7 – Pogroms, no termo técnico acadêmico, em inglês.

8 – USHMM. Disponível em: < http://www.ushmm.org/wlc/article.php?lang=en&Mduleld=10007172 >. Acesso em: 20 fev. 2010 às 11:15h.

9 – CONTE, Édouard, ESSNER, Cornelia. Demanda da Raça: Uma Antropologia do Nazismo. Lisboa: Instituto Piage, 1995, p. 188.

10 – Ibid, p. 187, 188.

11 – USHMM, id., disponível em: < http://www.ushmm.org/wlc/article.php?lang=en&Moduleld=10007173 >. Acesso em: 20 fev. 2010 às 12:05h.

12 – ESSNER, op. cit, p. 188.

13 – ALMEIDA, Angela M. República de Weimar e a Ascensão do Nazismo. São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 35.

14 – ESSNER, op. cit., p. 187.

15 – Ibid., p. 190, 191.

16 – Ibid., p. 192.

17 – Ibid., p. 193.

18 – Ibid., p. 194, 195.

19 – Ibid., p. 199.

20 – LUZ, Enrique. O Eterno Judeu. Anti-semitismo e Antibolchevismo nos cartazes de propaganda política nacional-socialista. 1919-1945. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006, p. 50-51.

21 – ESSNER, op. cit, p. 202.

22 – Ibid., p. 202.

23 – BERGEN, op. cit., p. 66.

24 – Ideia que surgiu na população de que a Alemanha havia sido traída pela sua liderança, por esta ter capitulado e desistido da batalha, assumindo a derrota da Primeira Guerra Mundial.

25 – Termo em alemão sem tradução perfeita para o inglês ou português, que reúne povo, nação e raça numa mesma ideia.

26 – ESSNER, op. cit., p. 202.

27 – Ibid., p. 203.

28 – During, apud. ESSNER, op. cit., p. 207.

29 – ESSNER, op. cit., op. 209.

30 – BERGEN, op. cit., p. 27, 28.

31 – Derivado do termo Vülkisch, comentado acima.

32 – Ibid., p. 160.

33 – LUTZER, Erwin. A Cruz de Hitler. São Paulo: Editora Vida, 2001, p. 98.

34 – Ibid., p. 99.

35 – Schutzstaffel, as forças de elite de Adolf Hitler.

36 – Ibid., p. 110.

37 – CHAMBERLAIN, apud. LUTZER, op. cit., p. 112.

38 – HOBSBAWN, Eric, Ranger, Terence. The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 1.

39 – Ibid., p. 274.

40 – Conhecido no meio acadêmico como Sacro Império Romano Germânico.

41 – Ibid., p. 274, 275.

42 – Idem.

43 – Ibid., p. 116.

44 – Ibid., p. 118.

45 – Idem.

 

– CAPÍTULO 2: CAUSAS FILOSÓFICO-TEOLÓGICAS
Além da influência histórica do sentimento cristão contra o povo judeu e da noção da existência de uma raça superior divina, primordial, que poderia ser resgatada através da eugenia dos seres da raça ariana, a mentalidade da população alemã também foi moldada por diversas correntes filosóficas e teológicas que foram muito bem utilizadas pelo NSDAP e pelas igrejas na formulação de sua propaganda e que fomentaram, posteriormente, a população na hora de seu processo de reflexão sobre o que estava acontecendo em sua sociedade.

Apesar de o NSDAP ter-se utilizado de incontáveis pensadores para embasar sua propaganda, é notória a utilização dos escritos de Nietzsche sobre o super-homem e sobre questões morais. Este trabalho também analisa a produção teológica liberal do séc. XIX, vital para a construção do pensamento do movimento cristão-alemão, analisado no capítulo quatro desse trabalho.

2.1 Nietzche e a Teoria do Super-Homen
A repercussão das obras do filósofo Friedreich Nietzche é um fator importante para a compreensão do posicionamento da população alemã no começo do séc. XX. Esse renomado e polêmico autor, famoso por sua ideia da “morte de Deus”, divulgada em seu livro Assim falou Zaratustra, publicou várias obras durante a segunda metade do séc. XIX, entre elas O Anticristo Além do Bem e do Mal.


Friedrich Nietzsche, um dos filósofos adotados pelos nazistas para defender suas ideias

Um dos grandes debates no campo da filosofia, nos dias de hoje, é a relação de Nietzsche com o nazismo. Sobre isso, Abir Taha comenta:

(…) os problemas de interpretação dos escritos do filósofo provocou profunda controvérsia na conexão Nietzsche-nazistas, e até hoje o debate ainda não chegou ao fim, pois os pesquisadores de Nietzsche se dividem em três categorias principais: primeiro, aqueles que vêem Nietzsche como nazista; segundo, aqueles que o vêem parcialmente como nazista; e terceiro, aqueles que vêem Nietzsche como antinazista. Cada categoria de estudiosos apresenta uma interpretação diferente do filósofo e, então, estabelece ou nega uma ligação com o nazismo.[1]

Este parâmetro de análise da literatura de Nietzsche é anacrônico, devido ao fato de Nietzsche ter falecido em 1900, ou seja, 23 anos antes da fundação do NSDAP e 33 anos antes de sua ascenção ao poder. Entretanto, o que Taha propõe é que o pensamento de Nietzsche teria tido um efeito no modo de pensar nazista, pois

(…) os nazistas eram discípulos fiéis de Nietzsche, praticando e defendendo quase tudo que ele dizia, e conceitos tipicamente nietzschenianos como “Super-homem”, “raça superior”, “desejo de poder”, “imoralismo”, “transfiguração de valores”, “além do Bem e do Mal”, “moral superior versus inferior”, “guerra”, “dominação”, “exploração” e “criação” (…) tornaram-se comuns na literatura nazista.[2]

Taha, em sua obra Nietzsche, o Profeta do Nazismo, trabalha a relação entre os dois pensamentos, analisando: a exaltação do paganismo ariano; o Desejo de Poder, a busca por uma moral imanente, para além dos conceitos abstratos do Bem e do Mal; e a desvalorização do judeu como um ser subumano, totalmente decadente, antítese perfeita do Super-Homem. Esse estudo mostra claramente a utilização dos conceitos do filósofo pelo partido de Adolf Hitler.

Uma análise detalhada da associação entre Nietzsche e o nazismo demandaria um trabalho em separado, porém Taha apresenta várias citações do filósofo em sua obra para justificar as afirmações de que Nietzsche influenciou Hitler com algumas de suas afirmações.

Sobre o paganismo ariano e a necessidade de seguir uma moral além do bem e do mal, Taha seleciona o seguinte texto de Nietzsche, retirado de sua obra Desejo de Poder.

Nós, os poucos ou muitos que ousamos novamente viver em um mundo desmoralizado, nós, pagãos por nossa fé, também somos os primeiros a compreender o que é a fé pagã: – ter de imaginar criaturas maiores que o homem, além do Bem e do Mal; ter de considerar todos os seres maiores também como imorais. Nós cremos no Olimpo – e não no ‘Crucificado’.[3]

Ainda sobre a necessidade de seguimento de uma moral além do bem e do mal, além do texto acima, o autor compreende a visão nietzcheniana sobre a orientação do homem sob o desejo de poder como vital para a postura totalitária do NSDAP. Cita Taha outro trecho de Nietzsche, de Desejo de Poder:

E você sabe o que é o ‘mundo’ para mim? Devo lhe mostrar em meu espelho? Este mundo: um monstro de energia, sem começo e sem fim… como a força por toda parte… um mar de forças fluindo e correndo juntas, eternamente mudando, eternamente fluindo de volta, com tremendos anos de recorrência, com uma maré baixa e uma correnteza de suas formas… abençoando a si mesmo como o que deve voltar eternamente, como um se tornar que não conhece sociedade, nem repulsa, nem desgaste: isto, meu mundo dionisíaco de eterna autocriação, a eterna autodestruição, este mundo de mistério da dupla felicidade voluptuosa, meu ‘além do Bem e do Mal’… Este mundo é o Desejo de Poder – e nada além disso! E vocês mesmos também são esse Desejo de Poder – e nada além disso.[4]

Ainda sobre o assunto, Taha comenta:

Vistos como a verdadeira encarnação do ‘mal’ pelos liberais atuais, os nazistas, verdadeiros nietzschenianos, representavam valores opostos à atual noção democrática prevalente de ‘bem’, ou seja, a ‘Moral dos Escravos’ de Nietzsche, pois defendiam o ‘imoralismo’ como uma reavaliação de todos os valores ocidentais, considerando que quaisquer meios – sejam bons ou maus – eram justificáveis, desde que levassem à criação do Super-Homem.[5]

Sobre a visão aristocrática de Nietzsche, e sua origem no conceito de um arianismo universal, o autor cita um texto da Genealogia da Moral do filósofo:

Uma horda de aves de rapina loiras, uma raça de conquistadores e mestres, com a qual essa organização de guerra e todo o seu poder organizador atinge, com seu terrível bico, a população, em números possivelmente muito superiores, mas ainda sem forma e nômade. Esta é a origem do ‘estado’.[6]

Já sobre a visão antissemita de Nietzsche, basta ver estas citações de Taha, retiradas de O Anticristo e Assim Falou Zaratustra:

Os judeus são a nação mais crédula na história do mundo; seu efeito colateral iludiu a humanidade a ponto de hoje o cristão ser capaz de [se] sentir antijudeu sem perceber que ele é a derradeira conseqüência dos judeus.[7]

Nosso é o reino da escória… Escória, entretanto, significa mixórdia. Mixórdia do povo: tudo está misturado com tudo mais, santos, canalhas, cavalheiros, judeus e todos os animais da arca de Noé (…) Decadência! Decadência! Nunca o mundo afundou tanto! Roma é agora uma meretriz e um prostíbulo, também; o César de Roma, um animal; e o próprio Deus, um judeu.[8]

Ao estudar a obra de Taha, torna-se aparente a correlação entre as idéias de Nietzsche e a mentalidade nazista, bastante posterior à sua morte. De fato, alguns autores relatam a impressão que Nietzsche transmitia ao líder nazista supremo, como Lutzer:

Hitler, com freqüência, visitava o museu de Nietzsche em Weimar e posava para fotos em que fitava deleitado o busto daquele grande homem. Nietzsche, conforme a crença de muitos historiadores, teria abominado os excessos de Hitler, em especial seu anti-semitismo. Seja como for, Hitler o adotou como irmão espiritual e interpretou suas obras de acordo com seus propósitos. Quer isso seja justo quer não seja, a obra de Nietzsche foi usada, nas palavras de um historiador, para ‘liberar os demônios do inferno’.[9]

Entretanto, a apropriação de Nietzsche pelos nazistas é colocada em dúvida por alguns estudiosos. Scarlett Marton afirma que uma das obras mais citadas por Taha para justificar a relação nazista-Nietzcheniana, a obra “Vontade de Poder” (ou “Vontade de Potência”, segundo algumas traduções), não condizia com o pensamento do filósofo, com uma familiar tendo sido a principal responsável pela apropriação das ideias do filósofo pelo movimento nazista:

Para legitimar sua empresa, a irmã do filósofo [Elizabeth Förster-Nietzsche, compiladora da obra, a partir de escritos póstumos] não hesitou em falsificar cartas por ele dirigidas, na sua maoria, à amiga Malwida von Meysenbug; obteve os originais, compôs o texto a partir deles e depois os destruiu. Apresentando-se como destinatária das missivas, pretendia impor imagem de credibilidade junto aos editores e amigos do filósofo; queria levar a crer que conhecia as intenções dele melhor que ninguém. (…) Mais tarde, permitiu e incentivou a utilização da filosofia nietzcheniana pelo Terceiro Reich.[10]

Apesar deste questionamento, a própria autora reconhece que as obras de Nietzsche tiveram um grande alcance devido à atuação de sua irmã:

Espírito empreendedor, Elizabeth empenhou-se na difusão do nome de Nietzsche pela imprensa; entre 1893 e 1900, fez dele o ídolo das revistas. De posse da custódia de seus escritos, elaborou uma nova edição de seus livros, supervisionou as publicações, insistiu no lançamento de edições baratas.[11]

As obras de Nietzsche exerceram um impacto tremendo na população alemã. A Primeira Guerra Mundial, segundo Stephen Aschheim[12], foi o estopim de popularidade do autor, com uma explosão de venda de seus livros e o surgimento da lenda, por parte dos países Ententes[13], de que as ideias do autor teriam sido o motivo da guerra ter se tornado tão violenta e longa. Como menciona Löwitz, citado por Marton[14], o texto Assim Falava Zaratustra tornou-se uma “verdadeira bíblia”, pois acompanhava os voluntários da Primeira Guerra Mundial durante as batalhas. Segundo Aschheim,

cerca de 150.000 cópias de um especialmente durável Zarathustra foi distribuído às tropas. Até mesmo comentaristas cristãos ficaram chocados que Zarathustra tinha tomado seu lugar ao lado da Bíblia no campo de batalha.[15]

É possível, estudando a forma como a obra de Nietzsche teve tamanho alcance na frente de batalha, entender a reação da população contra os judeus e o surgimento do mito da “facada nas costas” quando o governo alemão (formado por descendentes de judeus) aceitou a proposta de armistício e os terríveis termos do Tratado de Versailles, após o término da Primeira Guerra Mundial. Tal postura dócil, “covarde”, havia sido duramente criticada pelo filósofo. Vê-la se materializando causou uma enorme comoção entre os militares que lutaram na Guerra, incluindo um certo Cabo do Exército, de prenome Adolf, ferido em batalha e que estava se recuperando no hospital no dia do término da Guerra.

2.2 A Teologia Liberal do Séc. XX
Em conjunto com os fatores descritos anteriormente, pode-se afirmar que a Teologia Liberal do séc. XIX foi decisiva para a formação do pensamento cristão durante o Terceiro Reich de forma indireta, pois os seus pressupostos e postulados foram utilizados por membros da Igreja, alguns até mesmo membros do alto escalão do NSDAP, desejosos por adequar a visão cristã à ideologia nazista para influenciar milhões de pessoas, desde meros frequentadores de cultos até a mais alta liderança da Igreja.


Adolf von Harnack

Bergen, em seu livro Twisted Cross: The German Christian Movement in the Third Reich, faz uma extensa apresentação do movimento cristão-alemão, que arrebatou boa parte das igrejas alemãs, protestantes e católicas, durante o período da dominação nazista. Nessa apresentação, a autora destaca que uma das características desse movimento era a pregação de uma igreja antidoutrinária. A motivação por trás disso era simples: Preservar o cristianismo, destruindo todos os resquícios judaicos dela. Essa contradição, segundo a autora, tornou-se algo difícil de vencer, pois, segundo ela, “ao tentar arrancar a sua tradição religiosa das raízes judaicas, os cristãos-alemães iniciaram irrestritamente uma tarefa que não poderiam conquistar sem explodir com o próprio Cristianismo.[16]

Segundo a autora, a intenção do movimento de criar uma igreja ariana se transformou em uma busca por uma completa “desjudaização” do cristianismo. Esta busca seria favorecida por três fatores: “a ambivalência do relacionamento do Cristianismo com o Judaísmo, ignorância teológica generalizada entre os membros de igreja, e devoção a um regime arraigado em um violento antissemitismo.[17]

Para conquistar seus objetivos, o movimento cristão-alemão buscou transformar a Bíblia, alterando-a conforme a sua ideologia e apoiando-se nas teorias da Teologia Liberal do séc. XIX para contestar e rejeitar a canonicidade do Antigo Testamento, buscando, assim, eliminar a fonte judaica da Bíblia. Por tais trabalhos terem sido disseminados pela Alemanha no século anterior, e pela referida ignorância teológica entre seus membros, pode-se justificar a baixa resistência às idéias cristãs-alemãs por parte da liderança dos membros das igrejas alemãs.

Para trabalhar a Teologia Liberal, é preciso inicialmente delimitar o termo. Roberlei Panasiewicz define o movimento como uma busca por tornar o cristianismo em algo moderno, usufruindo “de todo racionalismo possível para interpretá-lo de forma que passe a dizer algo significativo e verdadeiro a este novo homem e a esta nova mulher moderna, autônomos e críticos.[18]

Já João Oliveira Ramos Neto[19] o coloca como sendo uma consqüência da utilização, por parte dos teólogos, do Método Histórico-Crítico, mencionando Augustus Nicodemus Lopes, que esclarece sobre os pressupostos deste liberalismo teológico:

A Bíblia não é o registro infalível e inspirado da revelação divina, mas o testamento escrito da religião que os judeus e os cristãos praticavam. […] A doutrina ou declarações proposicionais […] não são essenciais ou básicas para o Cristianismo, visto que o que molda e forma a religião é a experiência […] O cristianismo só é diferente das demais religiões quantitativamente e não qualitativamente. Ou seja, todas as religões são boas e levam a Deus; o Cristianismo é apenas a melhor delas. […] o homem, o íntimo, é bom […] Jesus Cristo é Salvador somente no sentido de que tinha consciência perfeita e plena de Deus. Era um homem normal, não nasceu de uma virgem, não realizou milagres, não ressuscitou dos mortos. O caráter de Deus é de puro amor, sem padrões morais. Todos os homens são seus filhos e o pecado não separa ninguém do amor de Deus. A paternidade de Deus e a filiação divina são universais.[20]

O Método Histórico-Crítico utiliza, até hoje, diversas ferramentas teóricas para a realização de suas pesquisas. Essas ferramentas foram fundamentais para a produção teológica dos cristãos-alemães, tendo em vista sua mentalidade antidogmatista. A principal para este estudo é a crítica das fontes.

A Crítica das Fontes, segundo Lopes, “tem por objetivo identificar e isolar as supostas fontes escritas que foram usadas pelos arquivistas, colecionadores ou editores para compor o texto bíblico como o temos hoje, e estudar a ‘teologia’ dessas fontes.[21] Já Frank S. Frick[22] define a primeira ferramenta da chamada Alta Crítica como sendo a tentativa de descobrir as fontes escritas por trás do texto na forma como eles existem hoje e sugerir como estas fontes se tornaram parte de unidades maiores.

Esta ferramenta, ainda segundo Frick, dominou a crítica bíblica historicista do séc. XIX e início do séc. XX, estabelecendo o parâmetro para boa parte das discussões subsequentes do desenvolvimento literário da Bíblia hebraica. Ainda hoje, ela é um dos primeiros passos na produção exegética histórico-crítica. Segundo Uwe Wegner, a necessidade da crítica textual para a análise exegética do texto bíblico (ele comenta especificamente sobre o Novo Testamento, porém sua análise serve também para o Antigo) advém do fato de que

O Novo Testamento foi escrito em grego e em manuscritos cujos originais desapareceram. Esses manuscritos foram sucessivamente copiados no decorrer dos séculos, de modo que conhecemos milhares dessas cópias na atualidade. Comparando essas cópias entre si, constata-se que o texto reproduzido nem sempre é igual. São exatamente as diferenças existentes entre essas várias cópias que perfazem o objeto de estudo da CT.[23]

A teoria mais popular, segundo Lopes, é a “Hipótese Documentária”, de Graff-Wellhausen, que trabalha com a possibilidade da existência de quatro documentos formadores do Pentateuco: A fonte Javista (J), a fonte Eloísta (E), a fonte Deuteronomista (D) e a fonte Sacerdotal (P, de Priest[24]), nenhum dos quais seriam de autoria de Moisés, tradicionalmente associado à redação do Pentateuco.

Já no Novo Testamento, a crítica das fontes trabalhou a formação dos evangelhos sinóticos, devido às suas diferenças de descrição dos eventos da vida de Jesus, e teorizando a existência de fontes formadoras dos evangelhos de Mateus e Lucas, a partir de Marcos, de um evangelho dos ditos de Jesus (chamado de Fonte “Q”) e de informações próprias conseguidas pelos autores dos evangelhos, também questionados pelos críticos.

Essas e outras ferramentas do Método Histórico-Crítico foram fundamentais na construção de um novo tipo de conhecimento bíblico, baseado na razão e na aplicação científica sobre os textos sagrados do cristianismo. Dentre os diversos teólogos que surgiram no auge da aplicação deste método, três se destacam com penamentos de importância para o nosso estudo: Albert Ritschl, Adolf von Harnack e Ernst Troeltsch.

Segundo Panasiewicz, o liberalismo teológico alatrou-se nas igrejas alemãs no final do séc. XIX graças a esses três autores, com pregações que afirmavam, por exemplo, que “um conhecimento mais aprimorado da história levava a um conhecimento mais verdadeiro de quem foi Jesus Cristo[25]. Esses autores repetiam, com isso, discursos como o de Frederich Schleiemacher, que afirmou que

Nenhum indivíduo pode ser arrancado de seu tempo, era e povo. Em nosso caso especial [a análise da vida de Jesus], tudo parece ser aplicável, notadamente, que Cristo deveria ser capaz de ser calculado e que ele está enraizado na vida de seu povo.[26]

O primeiro autor a impactar a Alemanha, no grupo mencionado acima, foi Alfred Ritschl. Kenneth Barnes[27] afirma que Ritschl, entre outros teólogos, respondeu ao desafio da ciência e da crítica histórica mudando os questionamentos bíblicos de fatos para valores. Ou seja, segundo Barnes, Ritschl deixa de questionar como o universo foi criado para o significado da criação para o homem[28].

Essa mudança de pensamento traria diversos desdobramentos. Segundo Barnes, Ritschl preferia pensar em questões éticas práticas do que em metafíscia. Desta forma, ao invés de focar no Deus transcedente, liberais como Ritschl passaram a meditar no Deus que viveu entre nós, Jesus Cristo. A redenção de Jesus Cristo não seria individual, mas comunal, no sentido de que seus ensinamentos éticos, e não seu sacrifício vicário na cruz, passariam a ser o paradigma de foco da salvação. Finalmente, como outros liberais, Ritschl ensinava que os cristãos deveriam trabalhar para estabelecer o Reino de Deus na Terra.

Já Rosino Gibellini trabalha na teologia de Adolf von Harnack, cuja obra A Essência do Cristianismo alcançou a marca de 71 mil exemplares vendidos, em 14 idiomas diferentes. Segundo o autor, Harnack afirmava em sua obra que somente é possível capturar a essência do cristianismo em seu sentido histórico, ou seja, “com os meios da ciência histórica e com a experiência de vida que nos vem da história[29]. Para alcançar essa finalidade, o autor defende que o historiador deveria captar aquilo que é válido e durável, mesmo que envolta em uma casca histórica mutável.

Nesse sentido, o autor via a mensagem de Jesus como evangelho, uma boa notícia que traz alegria e que aponta única e exclusivamente para Deus. Ou seja, como aponta Gibellini “Harnack excluía toda e qualquer cristologia eclesiástica como fruto da contaminação do pensamento grego.[30] Esta visão humanista de Jesus já havia encontrado um defensor em Feuerbach, que inclusive publicou uma obra homônima à de Harnack e que buscava distinguir a “verdadeira essência”, antropológica, da “essência não-verdadeira”, da teologia e da religião cristã.

Apesar de Harnack fazer uma profunda análise da religião e da teologia com embasamento histórico, é o filósofo e teólogo Ernst Troeltsch que causa um impacto ainda maior, ao analisar o próprio cristianismo historicamente em comparação com as outras religiões. É sua obra, A absolutidade do cristianismo e a história das religiões, que inicia a disciplina da História das Religiões, estudando o cristianismo e seus postulados em conjunto com outras religiões mais antigas. Gibellini comenta que, para Troeltsch, “o cristianismo é um fenômeno histórico e, como tal, concreto e caracterizado, e […] jamais pode ser visto como a realização absoluta, incondicionada, exaustiva, imutável do conceito universal de religião.[31]

A ideia de Troeltsch, então, seria averiguar a “normatividade” do cristianismo sem considerar sua “absolutidade”. A saída dele, segundo Gibellini[32], seria considerar o cristianismo a religião de “maior validade”, por ser a “manifestação mais vigorosa e intensa da religiosidade personalista, [pois] conduz à participação na personalidade de Deus, participação que não é anulação, mas plenitude de vida e de valor.

A consequência desse pensamento surge na sua bora A Absolutidade do Cristianismo, onde Troeltsch, segundo Gibellini,

“substitui a apologética sobrenaturalista (da ortodoxia protestante e da teologia católica dos manuais), que postula a origem sobrenatural do cristianismo, e a apologética moderna histórico-evolutiva, que vê o cristianismo como religião absoluta, pelo projeto de uma apologética da comparação histórica, que encara o cristianismo como religião normativa.[33]

Baseando-se nessa ideia, Troeltsch iniciou seus trabalhos de comparação do cristianismo com outras religiões antigas, descobrindo inúmeros paralelos. Tais descoberas fizeram com que muitos questioamentos fossem levantados sobre a autenticidade dos relatos bíblicos, como o nascimento virginal de Jesus e a história do dilúvio, dentre outros. Essas descoberas apenas ajudaram a abalar ainda mais a crença da população europeia na inspiração da Bíblia e a afastar o povo das igrejas.

Notas do Capítulo 2:
1 – TAHA, Abir. Nietzche: O profeta do nazismo: o culto do super-homem revelando a doutrina Nazista. São Paulo: Madras, 2007, p. 17.

2 – Ibid., p. 13.

3 – NIETZSCHE, apud TAHA, po. cit., p. 25.

4 – Ibid., p. 61.

5 – TAHA, op. cit., p. 68.

6 – NIETZSCHE, apud. TAHA, op. cit., p. 122.

7 – Ibid., p. 139.

8 – Ibid., p. 141.

9 – LUTZER, op. cit., p. 33.

10 – MARTON, Scarlett, in. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad.: Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: Annablume, 1997, p. 16.

11 – Ibid., p. 17.

12 – ASCHHEIM, Stephen. The Nietzsche legacy in Germany, 1890-1990. Berkeley e Los Angeles: UC Press, 1992.

 

– CAPÍTULO 3: CRISTIANISMO E NAZISMO
Todas as colocações feitas acima servem como pano de fundo para a análise da situação da Alemanha no ano de 1933, ano da tomada de poder do NSDAP e seu grande líder, Adolf Hitler, na Alemanha. Em meados de 1920, a Alemanha era um país completamente destruído, em todos os sentidos. Derrotado na Primeira Guerra Mundial, a Alemanha, segundo Almeida, foi obrigada a assinar um documento destinado a “humilhar e arrasar a Alemanha”[1], o tratado de Versalhes.

Esse tratado, produzido sem a presença dos países derrotados na Grande Guerra, mostrava o desejo de vingança da França e sua intenção de estrangular a Alemanha economicamente: O país foi obrigado a entregar os poucos territórios coloniais que possuía (Togo, Camarões e o Sudeste africano) e várias partes do seu próprio território, como a Alsácia-Lorena e a região de Dantzig[2], para dar uma saída ao mar para a Polônia.

Além disso, segundo Almeida[3], a Alemanha viu-se obrigada a reduzir seu exército ao número de 100 mil homens, a redução drástica de seu armamento, a quase destruição de sua marinha de guerra, a dissolução do Estado-Maior do exército, dentre outras penas, incluindo penas financeiras, pagas em dinheiro e matérias-primas, como reparação de guerra.

A reação a esse documento foi pesada e formaria toda a mentalidade alemã durante a República de Weimar[4]. Segundo Almeida, a direita alemã se posicionou contra, enquanto o centro e a esquerda se posicionaram a favor, apesar de muitas restrições. No final, o parlamento acatou a assinatura do tratado por 237 votos a favor e 138 votos contra. Essa escolha da esquerda se mostraria fatal, ao longo dos anos: A classe média, atingida em cheio pela crise econômica que se abateu no país, moveu seu pensamento para a direita. O partido social-democrata alemão foi culpado e houve várias tentativas de golpe de estado ao longo dos anos.

O mais importante, porém, é perceber que a população alemã viu-se extremamente frustrada com toda a situação. Formaram-se, segundo Almeida[5], vários grupos paramilitares, chamados de “corpos francos”, formados por grupos de pessoas que não aceitaram a desmobilização militar proposta por Versalhes. Entre os tradicionais partidos de direita alemãos, uma nova ideologia começou a surgir, o nacionalismo. Essa ideologia tinha como base as novas associações paramilitares secretas, que passaram a pregar o ódio aos partidos republicanos, ao centro católico, aos socialistas e aos judeus, sendo estes vistos como representantes do capital financeiro do país.

É nesse cenário que, em Munique, surge, em 1920, o Partido Operário Nacional-Socialista Alemão, também conhecido como Partido Nazista[6], sendo fundado por Adolf Hitler, um cabo que lutou durante a Primeira Guerra Mundial e viu, de um leito de hospital, enquanto se recuperava de um ataque de gás mostarda, a capitulação da Alemanha. Excelente orador, Hitler pregava uma valorização da população alemã, vítima de um processo inflacionário que viu o dólar chegar à ridícula cotação de 350 milhões de marcos em setembro de 1923. Apenas os industriais lucravam com a situação, por seus produtos poderem ser vendidos a preços muito abaixo da concorrência no exterior.

Apesar do Plano Dawes, segundo Almeida[7], ter ajudado a libertar a Alemanha da crise pós-guerra, a quebra da bolsa de Nova Iorque, em 1929, jogou a economia alemã novamente para baixo. Nessa época, o cenário alemão estava claro: o ressentimento do povo alemão com relação ao povo judeu era latente; inúmeros grupos de supremacia ariana pregavam que todas as pessoas de sangue impuro deveriam ser eliminadas da população; as ideias de Nietzsche e os trabalhos dos teólogos liberais estavam na mente de todos; o índice de presença na igreja era mínimo. É nesse momento que o NSDAP centralizou para si o sentimento nacionalista na Alemanha e que Hitler elevou-se ao topo do poder alemão, apoiado na sua proposta de exaltação do povo ariano. Essa proposta possui hoje um nome: a sua Religião do Sangue.

3.1 A Religião do Sangue de Hitler
A Religião do Sangue é o termo dado à política do NSDAP e de seu líder, Adolf Hitler, de extrema exaltação da raça ariana. O nome assim é dado devido à conotação divinizante empregada ao se comentar sobre a necessidade de busca da população alemã pela pureza do sangue ariano, em detrimento de outras raças.

Conte[8] apresenta uma descrição detalhada da natureza religiosa da política de exaltação da raça ariana, com o “mito fundante” desta sendo o golpe da cervejaria de 1923, quando dezesseis nazistas companheiros de Hitler morreram em confronto com a polícia local, numa fracassada tentativa de golpe de Estado por parte do reçem-fundado NSDAP. O sangue desses dezesseis heróis seria sacralizado por Hitler, e suas imortalidades seriam declaradas em um ritual anual, o “Dia das Testemunhas do Sangue do Movimento”[9], onde Hitler afirmou que o sangue derramado deles seria “água batismal para o Reich”[10]. Ao utilizar essa imagem cristã, Hitler anuncia um renascimento da Alemanha a partir desse sangue derramado e a purificação de seus ideais, agora focados na preservação da raça.


Hitler durante a tentativa de golpe em Munique, em 1923.

Com toda crença religiosa, a nova religião de Hitler tinha seus ritos: As bandeiras nazistas adquiriam poder ao serem tocadas pela “bandeira de sangue”, estandarte banhado no sangue dos dezesseis mártires caídos em 1923[11]. Esse poder era transmitido, por conseguinte, aos seus portadores, consagrando uma aliança pessoal do portador do estandarte ao sangue sagrado. Além disso, diversos rituais foram formulados por Alfred Rosenberg, conhecido pagão e um dos principais membros do NSDAP, que tinha o interesse de apagar a influência cristã do interior do partido. Reescrevendo rituais cristãos comuns, Rosenberg esperava erradicar o cristianismo da cultura alemã. Nesse sentido, o batismo tornou-se “festa do nascimento”; o casamento, “festa das núpcias”; o funeral, “festa dos mortos”[12].

Foi Alfred Rosenberg quem melhor formulou a essência dessa nova religião. Segundo Steigmann-Gall, disse Rosenberg:

Hoje, uma nova fé está despertando: o mito do sangue, a fé que a essência divina da humanidade deve ser defendida através do sangue; a fé incorporada pela mais completa compreensão de que o sangue Nórdico representa o mistério que suplantou e sobrepôs-se aos velhos sacramentos.[13]

Essa nova religião segundo Steigmann-Gall[14], se orientava pela ideia da honra racial e nacional, suplantada, no passado, pelo conceito do amor cristão, que teria permitido que o sangue ariano, nórdico, fosse contaminado pelo sangue “inferior” de negros e judeus. Essa política seria sistematizada por Rosenberg em sua obra O mito do século XX, que teve extrema rejeição da igreja, devido mais à denúncia feita por Rosenberg contra as igrejas cristãs de contaminação do ideal germânico do que pelo ideal racial pregado por ele.


Imagem do ritual de transferência de poder da Bandeira de Sangue par aum pavilhão com a suástica alemã.

Nesse novo culto do sangue, toda a concepção de Deus e do Messias também seria transformada. Deus, para o novo culto, em um sentido, não era um Deus pessoal, que vivia no céu. Era, sim, um Deus imanente na natureza, no povo e no seu sangue purificado. Segundo Conte, o próprio Hitler afirma:

Quanto às confissões (…) é tudo a mesma coisa. (…) (O Alemão) ou é cristão, ou pagão. Para o nosso povo, (…) o [fato] decisivo é [saber] se terão a fé cristã judia, com a sua moral mole de compaixão, ou então uma fé forte, heróica, em Deus na Natureza, em Deus no seu próprio povo, em Deus no seu próprio destino, no seu próprio sangue.[15]

Essa imanência de Deus, por vezes, era reduzida apenas ao país alemão, com o foco da adoração do povo, em vários rituais, à grandeza da Alemanha, como Conte cita uma liturgia de um ritual, o ritual do solstício de verão:

Ao lado destas chamas que proclamam a vitória do Sol e a vitória da nossa força vital, pensemos no fato de praticarmos um costume que nos vem de tradições antigas. (…) Somos o povo que, do nosso sangue e da nossa gleba, durante noite e angústia, renasce para uma vida nova. (…) O fogo deve dar-nos uma força nova e uma vontade fresca. Ao seu clarão, queremos, de novo, professar (o nosso apego) à nossa grande terra alemã. Tal como estamos ligados aos antepassados por esta prática e honramos a sua existência por este costume, estamos unidos por um mesmo amor, nós, os trabalhadores e os camponeses da Alemanha, pela Mãe universal Terra, pela força da Natureza e do Sol (…) Camaradas! Todos nós sentimos agir a vida do nosso sangue que emana da nossa terra; queremos, nesta hora, pronunciar em conjunto estas palavras: Queremos-te, Terra alemã![16]

A forma impessoal de se enxergar Deus também aparece na concepção do chefe do sindicato único, a Frente Alemã do Trabalho, Robert Ley, em pronunciamento de 1937, apresentado por Conte. Nesse depoimento, Ley apresenta o nome de Deus no indeterminado, não parecendo ter nem filho nem Espírito, mediadores entre os reinos. Não só isto, sua definição apresenta bem quem é o novo messias dessa religião:

Adolf Hitler! Estamos ligados só a ti! Nesta hora, queremos renovar nosso juramento: acreditamos, nesta terra, apenas em Adolf Hitler. Acreditamos que o nacional-socialismo é a única fé portadora para o nosso povo. Acreditamos que existe um Senhor Deus que nos criou, que nos guia, que nos orienta e que nos abençoa manifestamente. E acreditamos que esse Senhor Deus nos enviou Adolf Hitler para que a Alemanha se torne um fundamento para toda a eternidade.[17]

Nessa nova religião, onde o sangue ariano deveria ser preservado a todo custo, não havia espaço para aqueles que não o tinham. Conforme Joseph Goebbels disse uma vez, citado por Conte: “Quem ama seu povo deve odiar o destruidor de seu povo, odiá-lo do fundo de sua alma[18]. Dessa forma, fica bastante restrito o acesso do povo a esse novo culto: apenas os de sangue puro poderiam ser considerados parte da imortalidade e da grandeza da raça ariana.

Como em toda religião, essa nova crença também possuía o seu profeta, o seu messias, aquele que libertaria a Alemanha das ameaças dos inimigos da raça ariana e elevaria novamente o povo germânico ao topo da cadeia evolutiva humana. Como afirma Lutzer:

Hitler se ofereceu como o messias com a divina missão de salvar a Alemanha. Em certa ocasião, ele mostrou o chicote que habitualmente trazia consigo para demonstrar que, ‘ao expulsar os judeus’, ele se recordava ‘de Jesus no templo’. Afirmava que, ‘assim como Jesus, eu tenho responsabilidade para com o meu povo’. Ele até mesmo se gabava de que assim como o nascimento de Cristo mudara o calendário, sua vitória contra os judeus também seria o início de uma nova era. ‘O que Cristo começou’, dizia, ‘eu completarei’. Em seu discurso, alguns dias após ter assumido a chancelaria, fez uma paródia do pai-nosso, prometendo que, sob seu comando, um novo reino surgiria na terra e que a este seria dado ‘todo poder e toda a glória. Amém.’ Acrescentou que se não cumprisse sua missão, ‘então, vocês devem me crucificar’.[19]

Essa identificação de Hitler com a figura de Jesus Cristo corria solto pelos corredores do NSDAP. Muitos, segundo Susannah Heschel[20], o consideravam a segunda vinda de Cristo. Essa associação de Hitler com Jesus Cristo, como veremos adiante, fomentaria a criação de uma nova denominação religiosa na Alemanha.

Em todo caso, fica claro, nesse ponto, como as teorias antissemitas e de superioridade da raça ariana, descritas no começo deste trabalho, influenciaram a formação desse novo culto. Toda a exaltação do sangue ariano por parte do NSDAP teria objetivos místicos, de alcançar poderes divinos através da purificação do sangue até se chegar ao sangue da raça superior primordial, conforme ditava a lenda de Houston Stewart Chamberlain. O fenômeno da inculturação judaica, com os casamentos mistos permitidos a partir do final do séc. XIX, tornara-se uma ameaça a esse objetivo, além do fato da comunidade judaica transcender as barreiras nacionais, algo que ia contra os objetivos nazistas de exaltação do próprio povo.

Com base nas teorias raciais do séc. XIX e no objetivo de Hitler de formar uma nova identidade alemã, iniciou-se um processo de ataque a tudo o que parecesse não-ariano, e o alvo preferido de muitos membros do partido, pagãos por natureza, era o cristianismo, com seus elementos e textos sagrados judaicos. É como reação a esses ataques que surge o movimento que polarizaria o discurso teológico cristão na Alemanha nazista: o movimento cristão-alemão.

3.2 O Movimento Cristão-Alemão (Deutsche Christen)
O movimento cristão-alemão foi formado por um grupo de líderes, teólogos e leigos, na sua maioria protestante, que se reuniram com o intuito de reformar a igreja alemã e moldá-la aos novos tempos. Tentando lutar contra o secularismo e buscando enquadrar a teologia cristã na nova onda nacional-socialista que empolgava a população, esse grupo de cristãos buscou contextualizar a Bíblia à situação de sua era.

A origem do movimento, surpreendentemente, é anterior ao nazismo. O termo, segundo Conte, surge em 1913[21], cunhado por Adolf Bartels, que sugere que o cristianismo em geral, tanto protestante quanto católico, precisa ser purificado do judaísmo intrínseco nele. Nesse sentido, afirma que as tradições alemã e cristã não são incompatíveis e que os germanos são “portadores eleitos de Cristo na história do mundo”[22], devendo, assim, retirar o cristianismo “das mãos de Judas e de Roma”[23].

Apesar de o movimento ter surgido em 1913, é somente nos anos 20 que ele começa a se articular no movimento que encontramos no período nazista e que é a base deste estudo. Segundo Bergen[24], três impulsos principais convergiram para produzir o movimento cristão-alemão dos anos 30.

Primeiro, desde o final dos anos 20, dois jovens pastores da região da Turíngia, Siegfried Leffler e Julius Leutheuser, pregavam uma renovação religiosa em conjunto com a linha nacionalista völkisch. Ambos eram membros do partido nazista e se autodenominavam – e a seus seguidores – de cristãos-alemães. O discurso pregado por Leffler pode ser exemplificado por esta transcrição de um de seus textos, reproduzido por Conte:

Na pessoa do Führer, vemos o enviado de Deus. (…) É para isso que nós, que queríamos ser pastores, (…) nos decidimos por ele. (…) Através dele e por ele, quisemos ver o Salvador na História dos alemães. (…) Em Hitler (…), o povo alemão conheceu o despertar. Todos os seus discursos, todas as suas acções têm por fundamento o primeiro mandamento do nosso povo: ‘Eu sou o Senhor, o teu Deus, que vos salvou da ruína e te chama para uma grande fraternidade, para a comunidade viva do amor’.”[25]


Imagem de Hitler em pose messiânica, segurando a Bandeira de Sangue e recebendo o poder da águia, vindo do alto, em alusão à pomba que desceu sobre Jesus em seu batismo

No verão de 1932, um segundo grupo, formado por políticos, pastores e leigos, se reuniu em Berlim para discutir como “capturar as energias” das igrejas protestantes alemãs para a causa nacional-socialista. Wilhelm Kube, gauleiter de Brandenburgo e chefe do grupo nacional-socialista, iniciou o esforço. O círculo de Kube, segundo Bergen, começou a se chamar de “nacional-socialistas protestantes”, mas Hitler vetou esta denominação, sugerindo a utilização do nome “cristãos-alemãos”[26], algo que os seguidores de Leffler e Leutheuser afirmaram ter sido aconselhados (também pelo führer) três anos antes. Apesar da rivalidade aparente, segundo Bergen, os dois grupos começaram a colaborar.

Além desses dois grupos, segundo Bergen, um terceiro impulso alimentou o movimento cristão-alemão: Nos anos 20, inúmeras associações protestantes surgiram, dedicadas a reavivar a vida na igreja através da ênfase crescente na cultura e etnicidade alemãs. Esses grupos, em geral, colaboraram com o grupo já estabelecido de cristãos-alemães, tendo alguns se unido a este, e outros se mantendo separados, porém perdendo membros para o grupo maior. O importante notar é que, como nenhum desses grupos se separou da igreja estabelecida, o intercâmbio entre os grupos se facilitou.

Muito se discute, nos trabalhos de hoje, o alcance da influência do movimento cristão-alemão no movimento nazista. Porém, a sua grande amplitude no meio protestante é inegável, como pode-se ver pelos números levantados por Steigmann-Gall[27]. Ele faz uma associação entre o crescente nacionalismo alemão e a tendência de filiação da população às igrejas. Nos anos 20, houve uma média de 50.000 filiações e 200.000 desfiliações por ano. Porém, em 1933, a tendência inverteu radicalmente, com cerca de 325.000 filiações e 50.000 desfiliações. Isso se deveria, segundo o autor, a uma visão dos milhões de protestantes alemães, de que a tomada de poder do NSDAP seria um retorno ao cristianismo, na forma de um partido de centro que uniria todos protestantes em um enorme “partido do povo”.

Além disso, o alcance do movimento cristão-alemão em si pode ser historicamente quantificado. Heschel[28] afirma que o movimento cristão-alemão alegou ter uma membresia de 600 mil pastores, bispos, professores de teologia e religião e leigos, chegando a dominar entre 1/3 e 1/4 das igrejas protestantes alemãs. Apesar desse número parecer pequeno, frente à população protestante alemã da época, de cerca de 40 milhões de pessoas[29], Bergen nota que, em uma eleição em Julho de 1933 para postos eleitorais da igreja protestante alemã (de representantes de paróquia a conselheiros), os representantes do movimento cristão-alemão levaram 2/3 dos postos em disputa[30], provando que, apesar do número de pessoas afiliadas oficialmente ao movimento cristão-alemão ser relativamente pequeno, sua infuência sobre os membros das igrejas era enorme.

Para provar tal tese, basta perceber que esta eleição, cujo maior cabo eleitoral foi Adolf Hitler[31], teve a maior presença da história da Alemanha, comprovando que a votação foi, de fato, a representação do desejo do povo. Após a eleição, segundo Bergen, todos menos três postos de bispos da igreja eram representados por membros do movimento cristão-alemão. Posteriormente, o grupo viria a controlar uma rede de grupos femininos e dominou a maioria das faculdades de teologia do Reich[32].

A pergunta que fica, então, é: Como esse grupo conseguiu ascender tão rapidamente aos maiores escalões da igreja, e como eles influenciaram a população cristã da Alemanha a aceitar e amar a forma de governo nazista? Para alcançar seus objetivos de se vincular à imagem do NSDAP e provar que o nazismo e o cristianismo eram perfeitamente compatíveis, o movimento cristão-alemão se baseava em alguns pressupostos e conceitos teológicos. Os principais eram: A absorção do conceito nazista de Cristianismo Positivo, a descendência ariana de Jesus Cristo, a desjudaização do Cristianismo, a Teologia das Duas Esferas e a necessidade de uma oposição ao dogma e à doutrina.

3.2.1 A Teologia das Duas Esferas
Para melhor se enquadrar na ideologia nazista, o grupo dos cristãos-alemães enfatizou uma doutrina teológica de separação total entre o reino de Deus, celestial, e o reino dos homens, terreno. Nessa separação, propagada desde a obra Cidade de Deus, de Santo Agostiho, e modificada pelos teólogos dos séculos XIX e XX, o homem poderia ter uma vida boa e justificada mantendo-se ligado com Deus através da religião e obedecendo, nesta Terra, às ordens das autoridades, por piores que parecessem. Essa teologia, chamada pelos teólogos de “teologia das duas esferas”, uma leve alteração da “teologia dos dois reinos” clássica da Reforma Protestante, foi uma das responsáveis pelo endurecimento dos corações dos cristãos do império nazista para o sofrimento pelo qual o povo judeu passou.

David VanDrunen[33] define a “teologia dos dois reinos” como sendo a visão de que Deus inscreveu sua lei moral no coração de todos os seres humanos, de tal forma que, através do testemunho da consciência, todos os seres humanos têm conhecimento de suas obrigações morais básicas, e em particular, tem um modelo universal acessível para o desenvolvimento da lei civil. Para os reformadores, segundo VanDrunem, Deus foi visto como governando todas as instituições humanas e suas atividades, mas de duas formas diferentes, com Deus governando a Igreja (o reino espiritual) como redentor em Cristo Jesus, e o Estado e todas as outras instituições civis (o reino civil) como criador e sustentador[34]. Ou seja, separando os fins, funções e modos de operação de Deus na humanidade.

Segundo VanDrunen[35], essa teologia não foi formulada pelos reformadores, porém foi desenvolvida a partir de pensamentos teológicos de mais de 1.500 anos. Sempre apresentando o universo em uma visão dualista, VanDrunen afirma que a teoria das duas cidades de Agostinho, a teologia das duas espadas e a teologia de Guilherme de Occam teriam influenciado a visão reformada dos dois reinos.

Agostinho, segundo VanDrunen, separou o universo cristão em sua grande obra, Cidade de Deus. Nessa obra, Agostinho identificou duas cidades, a ‘Cidade de Deus’ e a ‘Cidade do Homem’. A ‘Cidade de Deus’ seria a Nova Jerusalém escatológica, compreendendo todos os verdadeiros adoradores de Deus através da história, mas que poderia ser alcançada na Terra através da peregrinação, da viagem do homem pelo mundo como estrangeiro, à espera da cidade eterna. Já a ‘Cidade do Homem’ consistia a todos os homens maus que haviam rejeitado o Deus verdadeiro. Na Terra, Agostinho vagamente identifica a Igreja como sendo a representação da Cidade de Deus, enquanto identifica os governos civis como a representação da Cidade do Homem. Porém, essa identificação é vaga e se interliga na Terra, com infiéis fazendo parte da Igreja e crentes participando da vida civil. Porém, segundo o autor, Agostinho revela, influenciado por seus tempos, que existe uma constante tensão entre os dois reinos, por viverem dois estilos de vida diferentes, um “pela carne” e o outro “pelo espírito”[36].

A teologia das duas espadas, por sua vez, surge por volta de 490 por meio do papa Gelásio I, tendo ecos na teologia do papa Bonifácio VIII, por volta de 1300, quando já havia uma batalha ideológica entre a Igreja e os novos Reinos Nacionais. Gelásio, em uma carta ao imperador Atanásio em 494, apresentou sua doutrina afirmando que deveria haver uma clara distinção institucional entre poderes eclesiásticos e civis. O mundo, segundo Gelásio I, é comandado pelos dois poderes, “a autoridade sagrada dos padres e o poder real”[37], sendo os dois provenientes de Deus e com propósitos distintos: A Igreja deveria cuidar das coisas divinas, mistérios sacramentais e a obtenção da vida eterna, equanto o Estado se preocuparia com a ordem pública, assuntos mudanos e temporais. A diferença dessa teologia para a de Agostinho era simples: a anterior lidava com coisas mais escatológicas, enquanto a atual lidava mais com questões institucionais.

A doutrina perpetrada por Bonifácio VIII, nove séculos depois, era bastante semelhante à de Gelásio, porém o contexto social era diferente. Nessa época, segundo VanDrunen[38], não só a espada eclesiástica estava regulada por uma lei canônica, como a igreja havia tomado conta da jurisdição de atividades como casamento, herança e ética comercial. Essa nova versão da doutrina, segundo o autor formulada na bula Unam Sanctam, de 1302, foi forjada devido a vários conflitos com o rei Filipe IV da França, em especial por conta do direito que o rei achava que tinha de taxar e de botar membros do clero em julgamento.

Segundo o autor, após sua afirmação da unidade da “santa, católica e apostólica Igreja”, fora da qual não há salvação, Bonifácio identifica duas espadas, a espiritual e a temporal, proclamando que ambas pertencem à Igreja e estão sob seu poder. Porém, a espada temporal seria delegada aos reis terrenos, pela vontade dos padres. Dessa forma, a espada temporal deveria estar sempre relegada ao poder espiritual.

Os textos usados para essa interpretação são Lucas 22.38, onde os discípulos dizem estar carregando duas espadas, antes da prisão de Jesus, e Mateus 26.52, onde Jesus manda Pedro guardar sua espada, no momento de sua prisão. A interpretação de Bonifácio é alegórica, em ambos os casos: No primeiro texto, o fato de não haver mais de duas espadas indica que só existem dois tipos de poderes no mundo. Já no segundo, o fato de Pedro estar com uma espada e tentar, por meio dela, evitar a prisão de Cristo, indica que a Igreja (construída sobre a pedra que era Pedro) detém o poder temporal.

Além desses textos, Bonifácio usa o texto metafísico do Pseudo-Dionísio, que diz que “poderes terrenos, quando falham, devem ser julgados pelo espiritual, poderes espirituais menores devem ser julgados pelos maiores, e poderes supremos só podem ser julgados por Deus”, cumprindo-se, assim, a lei universal divina de que só se chega do inferior ao superior através de intermediários[39].

Por fim, segundo o autor[40], Guilherme de Occam contesta totalmente a visão de Bonifácio VIII em sua obra Um Breve Discurso sobre Governo Tirânico. Ele afirma que o papa não deveria usar seu poder para se envolver em questões seculares, argumentando que, se Cristo tinha completo poder temporal, o papa não é Cristo, mesmo em sua natureza humana. A seguir, ele contraria a própria noção de que Cristo teria completo poder temporal, pois ele o teria rejeitado, não só o poder tirânico, mas também o poder legítimo. Occam também discorreria sobre a liberdade de um rei ou imperador de ser confirmado sem a intromissão do papa, e independente de sua crença ou não em Jesus. Ele defende isso citando a existência do Império Romano, existente antes do nascimento de Cristo, e citando um texto da Bíblia que será vital para nossa futura compreensão da teologia das duas esferas: Romanos 13.1, que diz “Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas”[41].

Porém, o mais importante, após essa evolução, é compreender a visão de Lutero sobre o reino temporal e o espiritual, tendo em vista a igreja protestante dominante na Alemanha do começo do séc. XX ser de confissão luterana. Lutero, segundo VanDrunen[42], trabalhou o assunto em sua obra “Autoridade Temporal”, de outubro de 1522.

Nesse tratado teológico, Lutero começa falando que a autoridade temporal, com sua lei e espada, existem pela ordem de Deus. Ele cita Gênesis 4.14,15 e Gênesis 9.6 e afirma que esta ordem natural da autoridade temporal existe desde o começo dos tempos, sendo confirmado pela lei de Moisés, João Batista e Jesus. A seguir, ele divide os homens como pertencentes a dois reinos: o dos céus, formado pelos crentes, e o humano. O primeiro não precisaria de autoridade, mas o segundo, sim. O propósito do primeiro seria para que o Espírito Santo produza cristãos retos sob o governo de Jesus, enquanto que o segundo seria restringir os ímpios e não-cristãos pela espada temporal. Um governo não pode reinar com leis evangélicas porque a maioria das pessoas não são cristãs e, portanto, não as aceitariam. O poder espiritual, por conseguinte, também não deve tomar a espada, pois Jesus não a usou. O poder da espada fica com o governo[43].

Apesar de o poder espiritual não poder usar a espada, isso não significa, para Lutero, que o cristão está isento de seguir as autoridades humanas. Lutero explica que, embora não ter uso para a lei ou a espada em si (suas leis devem ser regidas pelo Sermão do Monte), o cristão deve se submeter a elas, na figura do poder temporal, e até mesmo fazer o possível para ajudar as autoridades civis a derrotar os ímpios e fazer o bem. Dessa forma, Lutero até mesmo encoraja cristãos a tomar cargos no poder temporal, chegando a citar o posto de “carrasco” como possível de ser empenhado por um cristão, desde que não o faça por vingança, mas para a segurança e paz de seus vizinhos.

Na segunda parte de seu tratado, Lutero estabelece o limite para o trabalho do poder temporal, para não invadir o terreno do poder espiritual: A autoridade temporal pode estabelecer leis que não vão além da vida, propriedade e assuntos externos na Terra, pois Deus não permitiria que ninguém além da Igreja governasse as questões da alma. Dessa forma, Lutero proibiu que magistrados civis exercessem coerção em questões religiosas (apesar de, mais tarde, Lutero ter aceito a execução de alguns anabatistas e entregue todo o governo externo da Igreja para o Estado, por crer que isso seria uma questão temporal, e não espiritual).

A chave da análise da visão de Lutero está no fato de que cristãos e não-cristãos devem, igualmente, obedecer ao Estado. Essa visão o diferencia de Agostinho, de quem a visão de Lutero parece ter derivado na sua essência, e o coloca mais próximo de Gelásio e Occam. É essa visão que nortearia a teologia das duas esferas, praticada e pregada no começo do séc. XX. Segundo Steigmann-Gall, Otto Dibelius, um dos mais conservadores membros da Igreja Confessante, afirmou em um serviço em 1933 a favor do Reich, que

Nós aprendemos com Maritnho Lutero que a igreja não pode se colocar no caminho do poder estatal quando este faz o que foi chamado a fazer. Nem mesmo quando [o Estado] se torna duro e agressivo… Quando o Estado executa seu ofício contra aqueles que querem destruir as fundações da ordem estatal, sobretudo contra todos que querem destruir a honra com palavras cruéis e de vitupério que zombam da fé e vilificam a morte pela pátria-pai, então [o Estado] está governando em nome de Deus![44]

Fica claro, ao verificar estas palavras, que todos os teólogos favoráveis ao regime do Terceiro Reich justificavam teologicamente a sua conivência e até apoio às políticas do partido com base na teologia de Lutero. Lutzer[45] afirma que desde o Segundo Reich havia uma paralisia da igreja, “ao ensinar que deve haver a separação entre a moralidade pública e a privada“. Bismarck teria tido uma experiência de conversão ao cristianismo, porém, percebeu que, como estadista, teria que violar os princípios morais que regulavam seu comportamento pessoal como cristão. Ou seja, conforme Lutzer nota,

[Bismarck] considerava que na função de servo do Estado, o homem não poderia se ater à mesma moralidar que deveria professar como indivíduo. O Estado […] não deveria ser julgado pelas leis comuns, porque suas responsabilidades iam além dos valores humanos comuns.[46]

Essa dicotomia, segundo Lutzer, seria apresentada como remontada a Lutero, por ele insistir com os camponeses para que obedecessem a seus líderes, a despeito do quão tirânicos eles pudessem ser. Esse ensinamento era imputado na mente dos cristãos durante o período do Segundo Reich e, posteriormente, no período nazista, sempre citando o texto de Romanos 13.1,2 como prova. É esse padrão moral, de dois pesos e duas medidas, que Lutzer afirma ter ficado conhecido como “as duas esferas”.

Além da teologia, Lutzer afirma terem havido contribuições filosóficas para a ideia das duas esferas, citando os pensamentos de Hegel e Nietzsche. Segundo Shirer[47], Hegel teria afirmado que o Estado é o universo moral, possuindo o principal direito em contraste com o direito individual, cujo dever supremo é ser membro do Estado e jamais deixar sua moraldiade individual se interpor aos objetivos do Estado. Quando a Nietzsche, Lutzer cita uma passagem sua de O Anticristo, onde Nietzsche considera o cristianismo a maior das maldições e perversões, a “verdadeira mancha moral da humanidade”, por pregar uma vida de misericórdia e perdão, o que, segundo Nietzsche, teria tornado a nação fraca[48].

A pergunta que fica, com relação a essa teologia, é se o partido nazista compartilhava da mesma opinião dos teólogos. Em uma convenção do NSDAP na Turíngia, em 1935, Wilhelm Frick sintetizou a política nacional-socialista em relação às igrejas:

O partido apoia o cristianismo positivo. O Estado Nacional Socialista está absolutamente pronto para trabalhar com as igrejas cristãs, mas a solidariedade das igrejas ao Völk deve ser uma questão de príncípio. Isso significa que as igrejas devem se sentir ligadas ao Völk e nunca devem entrar em oposição com a liderança Nacional Socialista do Estado.[49]

Pode-se perceber, com esse discurso, que o próprio NSDAP se alimentava da teologia das duas esferas, consciente ou inconscientemente, para engessar a ação das igrejas em forma de protestos contra as políticas do Estado alemão. Vale notar também como, segundo Steigmann-Gall, esses ataques eram especialmente voltados ao partido de Centro, formado por católicos, mas que eles acabaram servindo e sendo utilizados pelos cristãos-alemães para enfatizar a importância da observância desta visão teológica por parte dos seus afiliados.

Ou seja, como Lutzer nota, para o movimento nazista e para o movimento cristão-alemão, “a obediência à esfera política era um dever tão digno e honroso quanto a obediência a Deus. E a maior expressão da obediência a Deus era a obediência ao Estado[50]. Os valores pessoais de honestidade, temperança e compaixão não eram transferidos para os valores públicos. O bem do Estado estava acima do bem do indivíduo, e o dever deste para com Deus era espiritual, enquanto seu dever para com o Estado era político. Essa visão, segundo o autor, era ensinada às crianças alemãs, sob a luz da obediência explícita e pronta aos pais, professores e comandantes militares.

O poder desta teologia sobre a mente da população pode ser comprovado pela Declaração de Barmen, formulada por Karl Barth. Esse texto, criado pelo núcleo da nova Igreja Confessante, foi redigido como uma resposta às propostas do movimento cristão-alemão para as igrejas, durante o comício do Palácio de Esportes de Berlim em novembro de 1933. Nessa declaração, segundo Lutzer[51], a Igreja é conclamada a escolher entre um Cristo que é o senhor de uma esfera espiritual diminuta e o Cristo que é o Senhor de tudo. Diz a declaração:

Nós rejeitamos a falsa doutrina de que existem áreas em nossas vidas em que nós não pertencêssemos a Jesus Cristo, mas a outros senhores – áreas [esferas] nas quais nós não precisaríamos de justificação e santificação através dele.[52]

Dessa forma, a Igreja Confessante buscou exortar as congregações a negarem esse ensino teológico e agirem contra as imposições do partido nazista. Entretanto, como vimos, o estado nazista apoiava uma forma de cristianismo, chamado de “cristianismo positivo”, diferente do pregado pelos Confessantes. A formação desse cristianismo é a chave para a compreensão das diversas propostas do movimento cristão-alemão.

3.2.2 Cristianismo Positivo
O movimento cristão-alemão teve, como uma de suas bandeiras, o fato de que se enquadrava perfeitamente no conceito de “cristianismo positivo”[53], afirmado pelo NSDAP como sendo o modelo ideal de cristianismo a ser seguido pelo Estado. Esse conceito é oriundo do Ponto 24 do programa do NSDAP escrito em 1920 e que foi balizador das políticas do partido ao longo de sua história. Steigmann-Gall apresenta esse ponto da política nacional-socialista:

Nós exigimos liberdade para todas as confissões religiosas no Estado, desde que elas não prejudiquem sua existência ou entrem em conflito com os costumes e sentimentos morais da raça Germânica. O partido como tal representa o ponto de vista de um Cristianismo positivo, sem se apegar a uma confissão particular. Ele luta contra o espírito do materialismo Judeu em nós e fora de nós, e está convencido de que uma recuperação duradoura de nosso Völk somente pode ocorrer de dentro, na base do princípio: necessidade pública vem antes do egoísmo privado.[54]

O cristianismo positivo, conforme o Ponto 24, também parecia almejar uma união entre as igrejas, ao redor de uma “igreja do reich”. Para isso, precisaria também ser um movimento de quebra com a doutrina, para que, desta forma, se pudesse alcançar o objetivo de acabar com a divisão entre as confissões. Segundo Steigmann-Gall,

o cristianismo positivo não foi uma tentativa de fazer um sistema religioso completo com dogma ou ritual próprio: Ele nunca foi formalizado em uma fé para a qual alguém deveria se converter. Pelo contrário, era apenas uma cosmovisão social e política feita para enfatizar as qualidades do cristianismo que poderiam acabar com o sectarismo.[55]

Como era a intenção do movimento cristão-alemão a criação de uma igreja do Reich, fica claro que o movimento precisava atacar todas as doutrinas estabelecidas que pudessem separar os grupos para, assim, encontrar uma posição que agradasse a ambos os lados.

Steigmann-Gall argumenta que esse tratado, apresentado desta forma, mostrava uma preocupação do NSDAP em não amedrontar o povo cristão, mostrando-se “essencialmente favorável ao cristianismo”. Para alcançar isto, deixou propositalmente a expressão “cristianismo positivo” em aberto, para que pudesse ter uma quantidade grande de significados e não se restringisse a um ou outro grupo[56].

Entretanto, é importante notar, como Steigmann-Gall relata, que essa declaração possuía três pressupostos de crença que o NSDAP aprovava e considerava a essência desse “cristianismo positivo”: A luta contra o povo judeu; um modelo de gestão socialista, onde o Estado prevalecia sobre o indivíduo; e uma busca por uma religiosidade sincrética, que acabasse com as divisões confessionais.

Nesse sentido, sabendo que a intenção do movimento cristão-alemão era fazer o cristianismo tornar-se mais alinhado com os ideais nazistas, pode-se entender todo o desdobramento das características que formaram o movimento cristão-alemão: A busca por um cristianismo desjudaizado e a arianização de Jesus; a separação entre o reino dos céus e o reino da Terra; e a desconstrução dos dogmas da igreja, com o objetivo corolário da criação de uma “Igreja do Reich”.

3.2.3 A Teologia do Jesus Ariano
A crença do movimento cristão-alemão em um Jesus que não tivesse sido judeu teve suas raízes gerações antes do NSDAP tomar conta do poder na Alemanha. O movimento nazista, para propagar sua visão antissemita, apropriou-se das ideias de intelectuais anteriores a ele e também produziu um corpo ideológico superior, que o ajudou a formular as teorias raciais que norteariam sua busca pela dominação ideológica da população alemã[57].


Bispo do Reich Ludvig Muller, líder dos cristãos alemães apontado por Hitler para liderar a igreja da Alemanha

Como visto anteriormente neste trabalho, Houston Stewart Chamberlain havia se empenhado em divulgar, em sua obra Os Fundamentos do Século XIX, publicada em 1899, que Jesus Cristo não poderia ser judeu, mas sim ariano. Anos depois, em 1921, conforme aponta Édouard Conte[58], Artur Dinter publicou um romance, chamado O Pecado Contra o Sangue, que se tornou o livro de cabeceira do movimento völkisch (segundo Steigmann-Gall[59], esse livro vendeu 235 mil cópias entre seu lançamento, em 1918 e 1927, sendo o romance mais popular escrito por um nazista na história). Nesse livro, o protagonista, alemão loiro, fala em um discurso para sua amada, filha de seu rico patrão judeu, sobre a vida e a mensagem de Jesus.

O protagonista, Hermann Kampfer (literalmente “O guerreiro combatente”, segundo Conte), afirma que Jesus não poderia ser judeu, por dividir o seu pensamento do pensamento e da sensibilidade judaicos. Segundo o protagonista, por pregar a interioridade, desinteresse e sinceridade, a ideia de um Jesus judeu era incoerente, já que os judeus pregavam exteriorização, egoísmo e fraude. Esse conflito de ideias só poderia ser explicado pela diferença racial entre Jesus e os judeus. A justificativa, segundo o protagonista, de tal diferença residiria no fato de Jesus, por ser originário da Galileia, terra dos Amoritas, ser na verdade de origem indogermana, ou seja, ariana. Apesar de Dinter ter sido expulso do NSDAP em 1928[60], suas ideias cativaram diversos grupos de cristãos na Alemanha, que procurariam professar a mesma fé.

Entretanto, Susannah Heschel, professora de estudos judaicos da faculdade de Dartmouth, nos EUA, que faz uma análise mais completa da origem desta teologia. Para a autora, segundo Steigmann-Gall[61], o conceito de um Jesus ariano teria surgido nos escritos de Renan e na disciplina científica desenvolvida por ele, a filologia. Nas discussões desta matéria, teriam surgido os conceitos de Semita e Ariano, inicialmente para descobrir o local das linguas indo-europeias no momento originário do cristianismo, buscando estudar suas características essenciais em conjunto com as características do idioma semita judeu, e posteriormente sendo utilizados para assinalar características essenciais para as pessoas que as falavam. Segundo Steigmann-Gall, o próprio conceito de Chamberlain da arianidade de Jesus teria surgido com esta disciplina, da qual Renan era um dos expoentes, e segundo a própria Heschel, para Renan, durante sua carreira, “idioma, raça, cultura e religião se tornaram intercambiáveis”[62].

Segundo Heschel[63], também foi a partir de Renan que a ideia de um Jesus não-judeu começa a aparecer. Em seu trabalho A Vida de Jesus, publicado em 1863 e com 60 mil cópias vendidas em poucos meses, Renan, baseando-se no evangelho de João, apresentou Jesus como “um galileu que passou por uma transformação, de judeu para cristão“, e descreveu o cristianismo como tendo “emergido purificado de todo judaísmo“. Para Renan, Jesus não era Deus, não tendo realizado nenhum milagre, mas foi cheio do amor do Espírito de Deus e teve uma consciência religiosa única. Nesse sentido, Jesus teria se transformado “em um ser qualitativamente maior, tanto física quanto espiritualmente, desta forma vencendo suas origens semíticas e lançando seus seguidores, arianos espirituais, ao mundo[64].

Nos anos posteriores, muitas teorias surgiram a respeito da origem histórica de Jesus, numa clara intenção de desvincular a sua imagem da de um homem judeu. Segundo Heschel[65], vários assiriólogos atestaram que a população da Galileia teria origem gentílica nos séculos imediatamente anteriores aos de Jesus, apesar de se basearem muito mais em mito do que provas[66]. Houston Stewart Chamberlain teria se utilizado dessas pesquisas, dizendo que a prova da arianidade de Jesus vinha do fato de

a população da galileia nunca ter se recuperado da invasão assíria do séc. VIII a.e.C., e que, mesmo no séc. I e.C., os judeus galileus eram ignorantes do hebraico, relaxados nas práticas religiosas judaicas e viviam entre a população multirracial não-judaica.[67]

Após esses estudos iniciais, Heschel[68] afirma que as discussões sobre o Jesus galileu entraram na academia por volta dos anos 20 e 30, sendo especialmente adotados por teólogos que rejeitavam a natureza sobrenatural dos milagres e o dogma cristão estabelecido, em favor de uma abordagem histórica às escrituras, vendo-as como um produto da cultura e das crenças religiosas de sua era. Nota-se aqui, portanto, a influência do liberalismo teológico na mentalidade desses estudiosos.

O foco desses estudos, então, estaria na humanização da figura de Jesus Cristo. William Wrede, por exemplo, declarou que as afirmações messiânicas sobre Jesus eram construções teológicas dos autores dos evangelhos, não sendo evidências confiáveis das próprias crenças de Jesus. Vários estudiosos, como Paul Fiebig e Wilhelm Bousset, também apontam para o fato de que Jesus não seria exatamente o messias prometido aos judeus, pois estes esperavam um rei, e não um “filho do homem”[69].

Outro ponto desses estudos estaria na oposição da fé de Jesus e a fé dos judeus. Segundo vários estudiosos, “a originalidade da fé de Jesus” só poderia ser restaurada removendo-a do contexto do judaísmo que deturpou a sua mensagem, e apresentando a Cristo como “uma figura heroica com uma fé audaz em Deus que o levou a se posicionar descompromissadamente contra a falsa piedade do seu tempo[70].

A oposição entre a Judeia e a Galileia como centros culturais e religiosos opostos também foi um ponto desses estudos. Segundo Heschel[71], essa linha de pensamento, inicialmente popularizada por Chamberlain, recebeu um prestígio enorme através do trabalho do distinto pesquisador em cristianismo antigo, Walter Bauer, professor de Novo Testamento da Universidade de Göttingen. Em um artigo de 1927, denominado Jesus da Galileia, Bauer teria identificado o povo galileu como sendo definitivamente não-judeu e fora da influência política de Jerusalém. Nesse sentido, se explicaria a recepção positiva de Jesus na Galileia, em contraste com sua recepção altamente negativa no Templo de Jerusalém[72].

Após analisar essas questões, fica a pergunta: quais eram as influências na configuração desse novo Jesus, distinto do movimento judaico? Além da influência assíria, alguns estudiosos começaram a teorizar, ao comparar os textos sagrados de outras religiões com o cristianismo, o que haveriam correlações entre ambas que provariam que o relato bíblico de um Jesus judeu não poderia ser verdadeiro. Heschel cita vários estudiosos que tentaram fazer paralelos entre a vida de Jesus e a vida de Buda, como Arthur Schopenhauer, que afirmava uma correlação entre os dois personagens porque ambos “pregavam ascetismo”[73]. Outros estudiosos, segundo ela, teriam começado a analisar o Zoroastrismo para encontrar pontos de encontro com os ensinamentos de Jesus que demonstrassem a sua raça.

Entretanto, segundo Heschel, o povo do leste era muito remoto e efeminado, segundo alguns alemães nacionalistas, para ser aceito como total orientador da origem de Jesus Cristo. Nesse sentido, a partir dos anos 1890, Jesus começou a ser descrito como uma combinação da “imanência do Ariano do Leste com a forma e pureza racial do alemão, como exemplificado nos mitos teutônicos[74]. Esta teoria mostrou-se extremamente perigosa, segundo Heschel, pois, com base na teoria de um pastor da época – de que Jesus marcou a transição de um Deus transcendente para um Deus imanente dentro de nós, sendo esta presença prova da identidade germânica de Jesus – o foco da preocupação cirstológica passou da encarnação de Deus para a divinização do homem, abrindo caminho para a identificação de Hitler e do povo alemão como divinos ou até mesmo como a personificação de Cristo[75].

A pergunta que resta, então, é sobre a teoria dos autores para o fato do cristianismo ter se re-judaizado nos anos seguintes à morte de Jesus. A teoria, desde a época de Renan defendida por Paul Legarde, seria a de que os ensinamentos de Jesus Cristo teriam sido pervertidos ao longo dos anos. A autoria dessa perversão é que seria o ponto de discórdia dos estudiosos: Legarde, segundo Heschel[76], joga a culpa em Paulo, judeu declarado no próprio texto bíblico, que teria reconfigurado a imagem de Cristo de um herói antissemita para um niilista, que negava a identidade racial do homem ao clamar que “não há judeu nem grego”[77]. Já Walter Grundmann joga a culpa não em Paulo, mas nos autores judeus dos evangelhos[78].

Essa noção, porém, é combatida por Chamberlain, ao afirmar que Paulo foi influenciado em sua teologia pelas religiões helenistas de mistério, orientadas pelas religiões orientais, particularmente o budismo e o persianismo. Nesse sentido, Chamberlain defende a arianidade também do restante dos escritos paulinos.

Após fazer essa análise, precisa-se levantar um novo questionamento: Qual teria sido, então, a motivação de um grupo de cristãos para aceitar essa teologia e divulgá-la ao povo alemão como sendo a verdadeira? Seria apenas uma conseqüência direta do Ponto 24 do estatuto do NSDAP, ou haveria outras motivações escondidas?

Existem muitas respostas hipotéticas para essa pergunta. Heschel afirma que haveria um “sentimento de vergonha pelas oirgens do Cristianismo e sua dependência do Judaísmo, encorajando teólogos a inventar narrativas originárias alternativas dentro do Budismo, Zoroastrismo ou em um vago ‘Arianismo’[79]. Ou seja, a aceitação e divulgação dessa teologia seria uma reação emocional de um grupo de cristãos que tentava enquadrar o cristianismo dentro do plano nazista.

Já Lutzer afirma que a motivação dos líderes da igreja era apoiar deliberadamente os líderes alemães, alinhando a igreja com o nacional-socialismo, pois “eles pensavam que a Alemanha forte significaria uma igreja forte”[80]. Ou seja, para Lutzer, a motivação desses teólogos teria conotações mais práticas, mediante a associação do poder nacional com a fé da população.

Bergen[81], por sua vez, afirma que os ideais cristãos-alemães surgiram em paralelo ao movimento nacional-socialista e beberam da mesma fonte: A cultura do período pós-Primeira Guerra Mundial, ou seja, não houve uma relação de causa e conseqüência direta entre a ascensão do nazismo e a disseminação destas políticas[82], mas sim que foram dois fenômenos naturais, oriundos do mesmo grupo de fatos sociais e históricos que afetaram a Alemanha durante o começo do séc. XX.

De qualquer forma, seja qual for o motivo, o fato é que o movimento cristão-alemão adotou como uma de suas premissas a noção de que Jesus Cristo não poderia ser judeu, adotando-o como um campeão ariano que lutou contra aquele grupo. Como a intenção do movimento era desvincular o cristianismo do judaísmo, é fácil perceber que o movimento não se deteria apenas na desjudaização de Jesus, mas sim que ele partiria para uma estratégia maior: Desjudaizar a religião cristã como um todo.

3.2.4 A Desjudaização do Cristianismo
A fúria do movimento cristão-alemão em relação ao povo judaico refletia bem o espírito da época. Trabalhos eram realizados buscando arianizar Jesus Cristo, e, além disto, outros campeões antissemitas eram buscados, como Martinho Lutero, cujo infame trabalho, Contra os Judeus e Suas Mentiras, foi ativamente utilizado pelo movimento para encampar a batalha para separar o cristianismo do judaísmo[83].

Com essa motivação, iniciou-se dentro do movimento cristão-alemão um ímpeto pela desjudaização do cristianismo como um todo, buscando-se a expurgação de tudo o que pudesse ser considerado de influência judaica do seio cristão. Segundo Heschel[84], a justificativa do movimento cristão-alemão era colaborar com o NSDAP na sua luta contra o judaísmo, afirmando que, enquanto o NSDAP travava uma luta física, o movimento cristão-alemão travaria uma luta espiritual.

A essência dessa luta do movimento, segundo a autora, foi baseada num crescimento do sentimento antissemita por parte da população alemã, levando-a a tornar-se mais receptiva às políticas raciais do NSDAP, o que, segundo ela, fez com que muitos cristãos também aceitassem uma teologia cristã racial. Nesse sentido, a nova teologia propagada pelos cristãos-alemães funcionava como uma forma de permissão moral ao racismo dos nazistas.

Para conseguir vencer essa luta, segundo a autora, o movimento cristão-alemão atacou o problema de forma prática, em duas frentes: A revisão de todos os hinários, bíblias, catecismos e outros materiais litúrgicos, e a produção de novas versões incorporando mitos teutônicos que fossem vistos como congruentes com os ensinamentos de Jesus – assim que estes fossem devidamente arianizados.

Segundo Heschel[85], a forma utilizada pelo movimento para realizar esses projetos foi a criação de um Instituto, conhecido como Instituto para o Estudo e Erradicação da Influência Judaica na vida da Igreja Alemã, fundado em 6 de maio de 1939. Seu diretor nominal foi Siegfried Leffler, um dos membros idealizadores do movimento cristão-alemão, como visto acima. Sua base foi na cidade de Eisenach, em prédios de posse da Igreja da Turíngia, mas seu impacto pôde ser visto ao redor do Reich, incluindo uma filial na Romênia e suporte na Escandinávia. O rápido apoio da Turíngia tem explicação: Esta província foi a primeira a experimentar o governo nazista, pois ali o NSDAP conseguiu formalizar um governo de coalizão em 1930[86].

Apesar de o Instituto ter sido fundado em um período em que se compreende que o movimento cristão-alemão não tinha mais influência sobre o governo nazista[87], o movimento cristão-alemão trabalhou duro para retirar do cristianismo toda e qualquer essência judaica, de forma a ajudar a igreja cristã a enfrentar a luta espiritual contra o judaísmo, mencionada acima. A declaração abaixo, escrita por um dos diretores do instituto, Walter Grundmann, professor de Novo Testamento da Universidade de Jena, mostra as intenções e a filosofia do movimento cristão-alemão com a criação do Instituto:

A desjudaização que está sendo executada em todos os segmentos da vida alemã deve ser estendida para a vida religiosa e para a igreja. Por um lado, a influência dos judeus na Alemanha só pode ser inteiramente quebrada se ela for quebrada no campo religioso. Por outro lado, para muitos alemães a questão da relação entre as origens cristãs e o judaísmo está se tornando extremamente urgente sob a influência da demanda pela desjudaização e a propaganda anticristã que está atrelada a ela. Então a questão de uma possível influência judaica na vida religiosa alemã requer uma explicação fundamental, e então também com respeito à influência direta – qualquer um pode apontar os traços de Spinoza deixados no panteísmo germânico. Logo, a tarefa das igrejas é, por um lado, reconhecer qualquer possível influência judaica dentro de sua história, e, de outro lado, por causa de sua responsabilidade à vida alemã, remover qualquer influência judaica. O cumprimento desta tarefa é simultaneamente o ponto de partida de um reconhecimento e promoção de um cristianismo alemão e uma piedade alemã assim como a realização dos evangelhos como a mensagem inspiradora de alegria de Deus.[88]

O trabalho do Instituto, segundo Heschel[89], era dividido em três frentes: Grupos de trabalho de pesquisa, conferências de pesquisadores e clero, e publicações. Os grupos de trabalho eram grupos de pesquisadores de diversas áreas, variando em tamanho e produtividade[90]. Sobre as conferências, Heschel declara que eram misturas de religião e pesquisa, com músicas, canto de hinos e músicas nazistas, além da saudação com o braço estendido.

O maior impacto do instituto, porém, foram os seus projetos de publicações desjudaizadas. Seu foco estava na alteração de três tipos de publicações: A Bíblia, hinários e Catecismos.

Desde o século XIX, existia um enorme debate na Alemanha sobre como retirar o judaísmo do cristianismo, pois o cristianismo utiliza como base o Antigo Testamento, texto considerado sagrado pelo povo judaico. As ideias dos teólogos alemães variavam muito, indo desde a reinterpretação do Antigo Testamento, separando o antigo judaismo do judaísmo da época de Jesus – ideia do teólogo Rudolf Kittel, conforme mencionado acima – até a completa eliminação do AT como texto canônico – ideia defendida por Reinhold Krause, um dos líderes do movimento cristão-alemão[91].

A solução encontrada pelo movimento foi direcionar o foco do povo alemão ao Novo Testamento, que eles afirmavam ser verdadeiramente a fonte do cristianismo. Para tanto, porém, o movimento empreendeu uma releitura do NT, retirando todos os termos que eles achavam que judaizaram o cristianismo. Heschel exemplifica esse tipo de trabalho falando sobre a versão antijudaica do evangelho de João, realizada em 1936 e capitaneada pelo bispo Heinz Weidemann e pelo teólogo Emmanuel Hirsch:

Ele omitia todos os nomes referentes a Moisés e aos profetas hebreus e todos os nomes hebraicos de locais (…), assumia que a Galileia era habitada por gentios, e omitia referências a pecado e graça. João 1.47 – ‘Eis um verdadeiro israelita, em quem não há dolo!’[92]– é alterado para ‘Tu és um verdadeiro homem de Deus em vossa nação’. ‘Hosana’, em João 12.13, é mudado para ‘Salve’ (Heil[93]), e ‘rei de Israel’ para ‘rei’.”[94]

A autora, porém, sugere que esta versão ainda teria sido mais leniente com os judeus do que as posteriores obras do Instituto:

Por exemplo, João 4.22, ‘a salvação vem dos judeus’, é mudada para ‘os judeus pelo menos conhecem o Deus, de quem, apenas, a salvação vem’. A ênfase da responsabilidade dos judeus pela morte de Jesus é mantida, enquanto João 21, descrevendo a aparição pós-ressurreição aos disçipulos, é omitida.[95]

A justificativa do bispo Weidemann para a realização também é revelada por Heschel[96]. Em 1942, o bispo teria afirmado que seus esforços foram para recapturar a intenção original do texto ao purgá-lo da linguagem que era usada no contexto judaico do primeiro século e reapresentá-la em uma linguagem que apelaria aos nacionais-socialistas. Teria dito Weidemann: “O que pode um nacional-socialista, um homem da S.A., uma criança alemã de nossos dias, fazer com um evagenlho onde João 1.17 diz ‘Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.’?

Com a criação do Instituto, surgiu o desejo de produzir uma nova edição do Novo Testamento, chamado de Völkstestament, um evangelho para a raça ariana. Esse projeto foi capitaneado por Walter Grundmann e Herbert Preisker, professor de Novo Testamento na Universidade de Breslau, além de dois pastores da Turíngia e um estudante de graduação da Universidade de Jena, tendo sido publicado em 1940.

O trabalho, segundo Heschel[97], dividia o Novo Testamento, denominado Die Botschaft Gottes, em quatro setores temáticos: O setor 1, denominado “Jesus o Salvador”, é uma vida de Jesus baseada em trechos dos evangelhos sinóticos, reorganizados para apresentar uma história de triunfo. Suas três últimas unidades descreviam “sua luta”, “sua cruz” e “sua vitória”. O setor 2, “Jesus o Filho de Deus”, forma a espinha dorsal teológica do trabalho, apresentando uma versão levemente condensada do evangelho de João, menos sobre as ações de Cristo e mais seus significados teológicos. O setor 3, “Jesus o Senhor”, contém pequenos trechos das várias epístolas, organizados de acordo com ensinamentos religiosos, como esperança, conforto, comunidade de Deus, e assim por diante. Por fim, o setor 4, “O surgimento da comunidade cristã’, apresenta um relato, baseado em Atos e nas epístolas paulinas, da missão de Paulo aos gentios e sua quebra com os judaizantes da Palestina. Paulo, aqui, é descrito como um fariseu a quem Deus revela Jesus, e que é perseguido por judeus que o odiavam e procuravam matá-lo.

As alterações no texto de Die Botschaft Gottes, segundo Heschel[98], são claras. O texto reconta a vida de Jesus como uma ênfase em seu triunfo, ao invés da derrota na cruz. Referências a nomes judaicos e locais, além de citações do AT, só são preservadas quando expressam uma visão negativa de algum aspecto do judaísmo. As genealogias de Mateus e Lucas, o hino de Maria, João Batista, o assassinato das crianças por Herodes e a fuga ao Egito, Zacarias e Ana, a história dos sábios do oriente, e o título de “rei dos judeus”, foram totalmente extirpados do texto.

Toda referência de cumprimento profético dos escritos do AT em Jesus também foram retirados, enquanto o conhecimento de Cristo sobre o judaísmo é preservado. Também foram feitos enxertos no texto bíblico, como uma adição ao relato do debate de Cristo com os escribas no Templo, que diz: “O Völk ouvia a ele alegremente, pois ele acertava os escribas com suas próprias armas“. Outros assuntos são omitidos deliberadamente, como a identidade racial de Jesus, não identificado como judeu ou ariano, apesar de identificar Jesus com Galileia, tanto em origens quanto em atividades, quanto associava a Judeus com ameaça[99].

O alcance do Novo Testamento arianizado do Instituto, em tempos de guerra, é impressionante. Mesmo com um racionamento de papel generalizado no Reich, esse texto foi impresso sem restrições. De fato, o Instituto foi uma das únicas publicadoras a não enfrentar esse racionamento. No final de 1941, cerca de 200 mil cópias haviam sido vendidas ou distribuídas, com pesados subsídios, já que seu valor de venda, de 1,5 marcos, não recuperava os custos de impressão[100]. Seu impacto também foi sentido no front, com cópias sendo encaminhadas a todos os soldados membros do movimento nas trincheiras, jovens candidatos à confirmação e novos casais.

Além do Novo Testamento, o Instituto também se ocupou de reescrever a liturgia e os lecionários da igreja, com novos hinos e orações, devidamente purificados da influência judaica. No âmbito da liturgia, o termo “serviço divino” para os cultos foi alterado pelos cristãos-alemães para “celebração divina”, pois o termo “serviço” seria oriundo do Antigo Testamento e judeu, enquanto “celebração” seria um termo mais alemão[101].

Com relação ao corpo de hinos da igreja, segundo Heschel[102], o Instituto preparou um relatório em julho de 1939 sobre o assunto. Paul Gimpel, professor escolar, pesquisou com vários colegas os 30 hinários utilizados pelas igrejas do Reich, analisando mais de 2.300 hinos. Sua conclusão foi de que a esmagadora maioria – 1.971 – seria judaica em linguagem ou pensamento, além de serem hinos dogmáticos, sentimentais, sem gosto, alto-denigrentes ou poeticamente inaceitáveis. Do restante, 102 foram aceitos sem alterações, como “valiosa propriedade cultural alemã”, e 263 foram identificados como merecedores de maior consideração.


Bandeira do movimento cristão alemão

O novo hinário, chamado Santo Deus, nós adoramos o Teu nome, foi publicado em junho de 1941, com 284 hinos para a liturgia da igreja, mais uma pequena seção, intitulada “Piedosos modos de vida alemães”, contendo orações e canções para uso familiar, e uma coleção de 30 “Hinos de Amizade”. Todos foram purgados de referências ao Antigo Testamento ou Judaísmo. Desses hinos, apenas 150 foram retirados dos 500 hinos inclusos em hinários alemães luteranos, e todos exceto 22 deles foram alterados. Os 134 hinos restantes foram retirados de poesias e canções modernas, incluindo versos völkish referindo-se ao führer e pedindo pela “mão forte de Deus” em “nosso völk e mãe-pátria”[103].

O critério de inclusão dos hinos, segundo Heschel[104], era claramente fácil de perceber: Hinos escritos por não-arianos foram eliminados. Palavras como salmos, Jeová, Iavé e Emanuel foram descartadas, assim como evocações do Antigo Testamento a “saltérios e harpas”. Nem mesmo o clássico hino “Castelo Forte” ficou inteiro no hinário, tendo o termo “Senhor dos altos céus” (Lorde Sabaoth, no original), sido trocado por “Cavaleiro da Armadura Brilhante”.

Na parte das orações e hinos para comunhão familiar e para eventos de ciclos e vida, vários davam suporte direto à linguagem racial. Um hino batismal, por exemplo, teve como título “Criança gentil de sangue alemão”. Cristo, seu sangue e sua ressurreição foram deixados de lado, enquanto a fórmula batismal se transformava em “Nós o batizamos para que você seja consagrado e bravo em vida, fielmente comprometido ao Völk em um novo tempo em verdade”.

O alcance do hinário foi menor do que o Novo Testamento ariano, segundo números levantados por Heschel[105]. A primeira impressão foi de 55.000 hinários, com muitas cópias distribuídas de graça, porém uma nova tiragem de 50.000 tornou-se necessária imediatamente. A igreja da Turíngia comprou 10.000 unidades, enquanto 100.000 unidades foram encaminhadas em 1941 para os soldados no front. A recepção do hinário foi, assim como a do AT ariano, controversa. Muitos reclamaram da redução de hinos, porém poucos falaram sobre a desjudaização do hinário[106].

Por fim, vale também notar que o próprio catecismo foi alterado para se enquadrar na linguagem nazista. Em 1941, após longas reuniões no Instituto, o novo catecismo foi lançado com o nome Alemães com Deus: Um catecismo alemão. Nesse novo catecismo, a palavra “cristão” misteriosamente não aparece no título, o que Heschel[107] afirma pode ser uma orientação do Instituto de inclusão de lendas teutônicas não-cristãs entre os temas religiosos tratados por ele.

O catecismo, que deveria ser acompanhado de um guia para professores, nunca produzido, é dividido em 43 pequenas seções, com títulos como “O Reich dos alemães, nossa divina obrigação” e “O vencedor na cruz”. Jesus foi definido como “salvador dos alemães”, conforme trecho extraído do catecismo por Heschel:

Jesus de Nazaré na Galileia prova em sua mensagem e comportamento um espírito que está em oposição ao judaísmo em todo modo. A luta entre ele e o judeu se tornou tão amarga que levou à sua crucificação mortal. Assim Jesus não pode ter sido um judeu. Até este dia, os judeus perseguem Jesus e todos que o seguem com ódio irreconciliável. Em contrapartida, os arianos em particular encontraram em Jesus Cristo a resposta para as questões mais profundas e últimas. Por isso ele se tornou salvador dos alemães.[108]

O catecismo também omitia, assim como as outras obras do Instituto, posições doutrinárias importantes, a respeito de milagres, nascimento virginal, encarnação, ressurreição, dentre outros, em favor de um Jesus humano que lutou em favor de Deus e morreu não só um mártir, mas também um “vencedor” na cruz, apesar de ser uma vítima dos judeus. O catecismo também apresentava uma seção chamada de “12 mandamentos”, que incluía os mandamentos “Mantenha o sangue puro e o casamento santo” e “Honre o führer e mestre”, mas omitia a menção a morte, roubo e observância do sábado[109].

Apesar de a linguagem desse catecismo ser mais branda do que a de outros publicados na época, não há como quantificar e analisar seu alcance. Heschel menciona apenas que houve discussões nas igrejas alemãs durante a guerra que pediam por uma reforma do catecismo.

É interessante notar, porém, que todas as mudanças pregadas pelo Instituto só foram possíveis graças a um embasamento ideológico do movimento cristão-almeão, que queria desjudaizar o cristianismo. Para isto, precisariam ir contra muitas doutrinas tradicionais e alterá-las por lendas folclóricas.

3.2.5 Oposição à Doutrina
Para conseguir o objetivo final de desjudaizar o cristianismo e apresentá-lo como um movimento genuinamente ariano, o movimento cristão-alemão precisou adotar outras táticas, mais agressivas. Após arianizar a figura de Jesus Cristo e eliminar toda a influência judaica da liturgia e seus materiais, o movimento cristão-alemão partiu para a eliminação de judeus de seus corpos de membros. Para isso, porém, precisou quebrar com diversos dogmas e doutrinas da igreja, o principal sendo a questão do batismo.

Com relação a essa crença, Steigmann-Gall afirma que era uma característica do movimento cristão-alemão desconsiderar o efeito do batismo como sacramento para salvar uma pessoa judia. Segundo o autor, “o cristianismo positivo é geralmente considerado um cristianismo ‘infectado’ porque insistia que a raça germânica tinha precedência ontológica sobre o sacramento do batismo[110]. Ou seja, um judeu batizado era, antes de um cristão transformado e ressuscitado pelas águas batismais, um judeu de sangue, e as águas do batismo não tinham poder de transformar as características raciais do indivíduo.

Bergen concorda com essa noção, notando que os cristãos-alemães acreditavam que “o batismo não podia transformar um judeu em um cristão[111]. Ela afirma, porém, que esta era uma visão centralizada do movimento cristão-alemão, enquanto que indivíduos do movimento, quando questionados, apresentavam certa flexibilidade. Ela também afirma que esta visão pode ter tido aderentes de fora do movimento:

Assim como os cristãos-alemães, quase todos os outros protestantes se referiam a convertidos do judaísmo e seus descedentes como ‘judeus cristãos’ ou ‘judeus batizados’. Ao utilizar estes rótulos, representantes de todos os campos na luta das igrejas indicavam que eles também consideravam ‘judaísmo’ como uma condição biológica imutável que foi talvez modificada, mas não transformada pela conversão ao cristianismo.[112]

Apesar do número de judeus cristãos ser relativamente baixo[113]. o movimento cristão-alemão via a sua presença na membresia da igreja como uma séria ameaça. Tanto que, segundo Heschel[114], em 1933, mesmo antes da proclamação das Leis de Nuremberg, várias igrejas regionais controladas pelos cristãos-alemães começaram a demitir vários empregados de igreja não-arianos, proibir não-arianos de assistir e participar dos serviços da igreja e mesmo serem batizados, e a negar cuidados pastorais a judeus batizados[115].

Ainda em 1933, na época da reedição da Constituição da Igreja Protestante Alemã, o movimento cristão-alemão tentou introduzir um “parágrafo ariano”, que afirmaria, categoricamente, que a membresia a uma igreja cristã seria permitida apenas para pessoas que conseguissem comprovar sua descendência pura ariana. Esta cláusula não foi aprovada. Porém, em novembro de 1933, durante um comício do Palácio de Esportes de Berlim, o líder de Berlim do movimento cristão-alemão, Reinhold Krause, pediu uma “rápida e desqualificada implementação do parágrafo ariano”[116] nas igrejas.

O resultado foi uma enorme crítica de diversos setores da igreja, mas em intensidades diferentes. Martin Niemöller, um dos líderes da futura Igreja Confessante, viu alguma validade nos argumentos de Krause e declarou que “os donos de cargos de descendência judaica deveriam poupar seus colegas cristãos de tomar decisões difíceis ao não aceitar posições proeminentes na igreja[117]. Já Dietrich Bonhoeffer, outro líder da Igreja Confessante, rejeitava o parágrafo por completo. Essas críticas não impediram outras igrejas regionais de criarem seus próprios Parágrafos Arianos.

Com a discussão sobre o Parágrafo Ariano e o início do processo de desjudaização do corpo da igreja, surgiram problemas, como a presença de não-arianos no clero, esposas não-arianas de membros arianos do clero e a questão dos músicos não-arianos. Apesar de seus números ínfimos (segundo Bergen[118], 29 dos 18.000 pastores do reich inteiro eram não-arianos, enquanto apenas 7 dos 10.000 músicos da igreja da Prússia caíam na mesma categoria), o movimento cristão-alemão forçou a saída desses membros do corpo da igreja, mesmo quando membros arianos já haviam se divorciado de suas esposas não-arianas[119].

Por fim, com relação ao laicato, Bergen declara que “alguns cristãos-alemães encontraram não-arianos em suas congregações. Várias vezes eles agiam para com [os não-arianos] precisamente na forma exclusivista que sua doutrina da raça sugeria[120]. Em muitos dos casos, estas atitudes serviam apenas para influenciar oficiais do estado ou do partido para tomar ações a favor dos interesses dos cristãos-alemães.

Notas do Capítulo 3:
1 – ALMEIDA, A., op. cit., p. 13.

2 – Essa região, um corredor de terra que dividiu a Alemanha em duas partes desconexas, ficou historicamente conhecida por “Corredor Polonês”.

3 – ALMEIDA, A., op. cit., p. 13-14.

4 – Governo democrático sediado na cidade de Weimar, na Turíngia. Comandou a Alemanha de 1918 a 1933.

5 – ALMEIDA, A., op. cit., p. 35.

6 – Ou NSDAP, como temos tratado neste trabalho.

7 – ALMEIDA, A., op. cit., p. 49.

8 – CONTE, op. cit., p. 17.

9 – Ibid., p. 18, 26.

10 – Ibid., p. 19.

11 – Ibid., p. 21.

12 – Ibid., p. 28, 29.

13 – STEIGMANN-GALL, Richard. The Holy Reich: Nazi Concepts of Christianity, 1919-1945. Cambridge e New York: Cambridge University Press, 2005, p. 94.

14 – Idem.

15 – HITLER, apud. CONTE, op. cit., p. 35.

16 – Ibid., p. 27.

17 – LEY, apud. CONTE, op. cit., p. 24.

18 – STEIGMANN-GALL, op. cit., p. 21.

19 – CONTE, op. cit., p. 35.

20 – HESCHEL, Susannah. The Aryan Jesus: Christian Theologians and the Bible in Nazy Germany. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 9.

21 – Conte, op. cit., p. 31, 59.

22 – Ibid., p. 32.

23 – Idem.

24 – BERGEN, op. cit., p. 5.

25 – LEFFLER, apud. CONTE, op. cit., p. 41.

26 – Segundo Steigmann-Gall, na página 72 de sua obra The Holy Reich, a intenção original de Kube era formar um partido de igreja separado do NSDAP. Entretanto, apesar do apoio de Hitler ao plano de Kube de tomar controle dos cargos eclesiásticos da igreja com a condição de o grupo não se tornar um braço do NSDAP, o fundador do partido recebeu uma sugestão de Hitler para trocar seu nome.

27 – STEIGMANN-GALL, op. cit., p. 114.

28 – HESCHEL, op. cit., p. 3.

29 – Idem.

30 – BEGEN, op. cit., p. 5.

31 – Segundo Bergen (p. 7), Hitler encaminhou uma mensagem via rádio para toda a população na véspera da eleição, dizendo que os cristãos-alemães representavam o novo na igreja.

32 – Ibid., p. 7, 8.

33 – VANDRUNEN, David. Natural Law and the Two Kingdons. A Study in the Development of Reformed Social Thought. Grand Rapids, Michigan, EUA, Cambridge, Reino Unido: Eerdmans, 2010, p. 1.

34 – Idem.

35 – Ibid., p. 22, 23.

36 – Ibid., p. 27.

37 – Ibid., p. 33.

38 – Ibid., p. 34, 35.

39 – Ibid., p. 35.

40 – Ibid., p. 37-39.

41 – Idem.

42 – Ibid., p. 56-62.

43 – Idem.

44 – DIBELIUS, apud. STEIGMANN-GALL, op. cit., p. 69.

45 – LUTZER, op. cit., p 27.

46 – Ibid., p. 28, 29.

47 – SHIRER, apud. LUTZER, p. 31.

48 – Idem.

49 – FRICK, Wilhelm, apud. STEIGMANN-GALL, op. cit., p. 121.

50 – LUTZER, op. cit., p. 139.

51 – Ibid., p. 168.

52 – BARMEN DECLARATION. Disponível em < http://www.creeds.net/reformed/barmen.htm >. Acesso em 07 jul. 2010 às 18:22h.

53 – O termo pode ter relação com o conceito filosófico do positivismo, definido no Dicionário Michaelis Online como “sistema criado por Augusto Comte que se baseia nos fatos e na experiência, e que deriva do conjunto das ciências positivas, repelindo a metafísica e o sobrenatural”. Dessa forma, “cristianismo positivo” poderia ser definido como uma visão desprovida de misticismo em relação ao cristianismo.

54 – STEIGMANN-GALL, op. cit., p. 14.

55 – Ibid., p. 84.

56 – Idem.

57 – Antonio Gramski trabalha o conceito de intelectual em sua obra Os intelectuais e a organização da cultura. Nessa, ele divide a atuação daquele grupo social na sociedade de duas formas: A primeira, com a criação de um corpo intelectual por cada grupo social, para dar-lhe homogeneidade e consciência (p. 3). A segunda, com o encontro e aproveitamento de categorias intelectuais pré-existentes, as quais apareceriam como representantes de uma continuidade histórica não desaparecida ou ameaçada nem mesmo pelas mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas (p. 5). O NSDAP, como este trabalho mostra, utilizou-se das duas abordagens para criar seu corpo ideológico.

58 – CONTE, op. cit., p. 33.

59 – STEIGMANN-GALL, op. cit., p. 20.

60 – CONTE (p. 38) credita a expulsão de Dinter do partido nazista ao fato dele crer na teoria da telegonia, uma forma de antissemitismo esotérico que cria que o judeu contaminava a prole de uma moça ariana com o mero contato sexual entre ambos. Para Conte, o partido, querendo partir para uma linha mais científica, não aceitou esta teoria e expulsou Dinter do partido. Já STEIGMANN-GALL (p. 59) credita a expulsão de Dinter do NSDAP à sua filosofia anticonfessional, característica dos cristãos-alemães, pois ele teria lançado inúmeras críticas à Igreja Católica, atraindo a ira de muitos membros do NSDAP, ainda afiliados à igreja romana, e do próprio Hitler, que sabia que precisaria dos votos católicos para controlar politicamente a Alemanha.

61 – STEIGMANN-GALL, op. cit., p. 108.

62 – HESCHEL, op. cit., p. 33, 34.

63 – Ibid., p. 34.

64 – Ibid., p. 35.

65 – Ibid., p. 27.

66 – Estes estudos, segundo Heschel (p. 56-62) teriam se iniciado nos anos 1870 com Emil Schürer, como uma tentativa de se estabelecer a natureza da população galileia após a conquista assíria do séc. VIII a.e.C. Schürer especulou, com vários fatores, que a Galileia era uma região essencialmente gentílica, com os judeus vivendo como minoria. Tal linha de pesquisa também aparece no terceiro Congresso Internacional de História das Religiões, em 1908. A autora, porém, mostra-se contrária a esta visão, afirmando que não há provas documentais primárias de um plano assírio de repovoar a galileia com pessoas assírias, mesmo citando o estudo de Albrecht Alt na pág. 61, onde, através de escavações, o pesquisador de Antigo Testamento da Universidade de Leipzig teria encontrado provas de uma colonização de não-Israelitas na Galileia, após a destruição de Samaria em 722 a.e.C.

67 – Ibid., p. 42.

68 – Ibid., p. 58, 59.

69 – Idem.

70 – Ibid., p. 59.

71 – Ibid., p. 60.

72 – Idem.

73 – Ibid., p. 39.

74 – Ibid., p. 41.

75 – Idem.

76 – HESCHEL, op. cit., p. 42.

77 – Rm. 10.12, Cl 3.11.

78 – HESCHEL, op. cit., p. 58.

79 – HESCHEL, op. cit., p. 27.

80 – LUTZER, op. cit., p. 134.

81 – BERGEN, op. cit., p. 3.

82 – Idem.

83 – BERGEN, op. cit., p. 28.

84 – HESCHEL, op. cit., p. 68.

85 – Ibid., p. 68, 69.

86 – Idem.

87 – Segundo Steigmann-Gall (p. 235), conforme a Segunda Guerra Mundial se aproximou, o movimento neopagão ganhou força no meio nazista, em especial devido à influência de Martin Bormann, o que fez o NSDAP perder o interesse nas instituições da igreja.

88 – GRUNDMANN, apud. HESCHEL, op. cit., p. 80.

89 – HESCHEL, op. cit., p. 99-101.

90 – Havia grupos de pesquisa das origens cristãs sob uma perspectiva racial, pesquisa da composição racial de Israel e sua história antiga, análise de influências arianas na história religiosa de Israel, pesquisa das diferenças entre religiosidade semítica e ariana, análise das reações ao povo judeu ao longo da história, além de outras áreas.

91 – Bergen revela, em seu artigo Storm Troopers of Christ: The German Christian Movement and the Ecclesiastical Final Solution (p. 43, 44), que Krause defendeu sua visão no famoso congresso cristão-alemão no Palácio de Esportes de Berlim, em 13 de outubro de 1933. Na ocasião, o líder berlinense do movimento “atacou as fundações do Cristianismo como tendo marcas inaceitáveis de influência judia“. Ele também “vilificou o Antigo Testamento e o apóstolo Paulo“, além da cruz, comparando-a a um “símbolo de expiação”. Este discurso provocou uma saída em massa do movimento, inciando o processo de criação da Igreja Confessante.

92 – Texto extraído da Bíblia versão Almeida Revista e Atualizada.

93 – “Salve”, em alemão. Também incluído pela larga utilização do termo nas saudações nazistas, Sieg Heil e Heil Hitler.

94 – HESCHEL, op. cit., p. 107.

95 – Idem.

96 – Ibid., p. 107.

97 – Ibid., p. 109.

98 – Ibid., p. 109, 110.

99 – Ibid., p. 110.

100 – Ibid., p. 111.

101 – Ibid., p. 113, 114.

102 – Ibid., p. 117.

103 – Ibid., p. 118.

104 – Ibid., p. 124.

105 – Ibid., p. 125.

106 – Idem.

107 – Ibid., p. 126.

108 – Idem.

109 – Ibid., p. 127.

110 – STEIGMANN-GALL, op. cit., p. 63.

111 – BERGEN, 1996, p. 86.

112 – Ibid., p. 83.

113 – Segundo Bergen (op. cit., p. 83, 84), 300 mil judeus conversos e 750 mil de segunda e terceira gerações formavam o corpo de membros das igrejas cristãs.

114 – HESCHEL, op. cit., p. 55.

115 – Idem.

116 – BERGEN, op. cit., p. 89.

117 – Ibid., p. 90.

118 – Ibid., p. 93, 99.

119 – Ibid., p. 93.

120 – Ibid., p. 96.

 

– CONCLUSÃO
O movimento cristão-alemão teve um impacto enorme nas igrejas alemãs, dominando muitos cargos eclesiásticos e pregando uma doutrina que reafirmava as noções nazistas de que o judeu era um povo inferior, merecedor de ser eliminado da convivência com o restante da população. Com essa mensagem, e embasado pela Teologia das Duas Esferas, onde ordenavam os fiéis a manterem moralidades diferentes entre vida individual e vida coletiva, fizeram com que muitos cristãos ficassem quietos ou aceitassem as terríveis brutalidades realizadas pelo movimento nazista contra o povo considerado “impuro” ou “indigno de viver”.

Sabe-se, hoje, que o movimento cristão-alemão não era unanimidade dentro da Alemanha. A tentativa do movimento de eliminar a liderança da Igreja, em especial do clero, todos aqueles que não fossem arianos de nascimento (ou seja, todos os judeus batizados), causou a criação da Liga Pastoral de Emergência, liderada pelos teólogos Martin Niemöller e Dietrich Bonhoeffer, que formaram uma nova confissão dentro da Igreja Luterana Alemã para rivalizar com os Cristãos Alemães. Esse grupo, chamado de Igreja Confessante, buscou retornar à Palavra de Deus como única revelação possível e ao Senhorio de Jesus Cristo sobre todas as esferas da vida da pessoa, civil e espiritual. Também é notório, academicamente, que grandes teólogos, como Karl Barth e Gerhard von Rad, trabalharam suas teologias para combater a visão liberal da teologia cristã-alemã.

Sabe-se, também, que muitos teólogos do movimento cristão-alemão conseguiram retomar seus postos acadêmicos e eclesiásticos após a Segunda Guerra Mundial. Tendo que enfrentar processos de denazificação por parte dos Países Aliados, esses teólogos afirmaram que sua teologia tinha como função principal combater o neopaganismo anticristão que havia se alastrado pelo NSDAP pouco antes do início da guerra, e que seus trabalhos eram puramente acadêmicos, não tendo influenciado diretamente a população em geral.

Entretanto, ao terminar este estudo, conseguimos perceber que a relação entre o nazismo e o cristianismo é muito mais íntima do que se imaginava até hoje. Poucos conhecem esse passado da Igreja Luterana Alemã, dominada por um grupo que mesclou a teologia cristã aos ideais nazistas e formulou um conjunto de normas e preceitos que permitiu à população em geral aceitar o que estava acontecendo como perfeitamente natural.

Também fica claro, ao terminar este estudo, que os cristãos da Alemanha tiveram muita dificuldade em perceber que a pregação do movimento nazista era moralmente repreensível. Movidos por um histórico de guerras e humilhações, o povo alemão sempre buscou superar suas tristezas em uma exaltação da sua própria identidade, seja cultural, seja racial.

É possível, também, compreender como um povo que se considerava cristão agiu de forma conivente ou mesmo ativa para engendrar a destruição de toda uma etnia. Não é uma tarefa fácil, nem há uma justificativa que possa desculpar o povo da época das atrocidades cometidas. Entretanto, a soma das conjunturas sociais e teológicas certamente levaram a população alemã a agir da forma que agiu em relação ao povo judeu e a outros inimigos da “raça ariana”, como os povos Roma e Sinti (também conhecidos como ciganos), os negros, os russos e pessoas com deficiências genéticas.

Como podemos identificar neste estudo, quatro fatores foram cruciais para a formatação do pensamento cristão-alemão ao longo dos anos trinta: O antissemitismo da população, o ideal de supremacia da raça ariana alemã, a filosofia de Nietzsche e a teologia liberal do séc. XIX.

Em primeiro lugar, o histórico antissemita da população alemã facilitou a aceitação das propostas genocidas nazistas por parte de todos. Esse histórico antissemita pode ser dividido em duas grandes áreas: o antissemitismo religioso, oriundo da acusação de que os judeus teriam sido os causadores da crucificação de Jesus Cristo, e o antissemitismo científico, que tentava comprovar, de diversas formas, que o judeu era uma raça inferior.

Em segundo lugar, este trabalho mostrou que existia, desde meados do séc. XIX, uma visão de que o povo alemão seria herderio de sangue de uma raça superior, denominada “raça ariana”, que seria pura e, segundo místicos, teria poderes especiais que poderiam ser desenvolvidos com a purificação das gerações. Essa crença, incutida na mente da população alemã do início do séc. XX desde a infância, teria alimentado a fúria do povo com todo aquele que tentasse destruir a pureza da raça.

Em terceiro lugar, a filosofia de Frederich Nietzsche influenciou a mente de milhares de pessoas durante o período do final do séc. XIX e início do séc. XX. Com suas mensagens que pregavam uma moralidade acima do bem e do mal e a busca da evolução do ser humano a um estado maior, o super-homem, Nietzsche indiretamente serviu para embasar a teoria nazista de supremacia da raça ariana e de consecução de seus objetivos a qualquer custo, também favorecendo a aceitação da população as ações políticas e sociais nacional-socialistas.

Em quarto lugar, este trabalho mostrou que diversas teorias propagadas pelo movimento cristão-alemão só foram possíveis graças aos postulados produzidos pela teologia liberal do séc. XIX. Com sua mensagem de análise histórica da Bíblia, esta forma de estudo da Bíblia foi utilizada pelos teólogos do séc. XX para tentar alterar a visão de Jesus Cristo apresentada pelos evangelhos, sob a alegação de que esta não corresponderia à realidade, por conta de seus relatos de milagres e ressurreições, algo impossível de ser comprovado empiricamente.

Após verificar as causas da facilidade com que o nazismo e o cristianismo conseguiram se mesclar tão facilmente, este estudo trabalhou os efeitos desta ligação, estudando a ideia do cristianismo positivo pregada pelo NSDAP, a teologia das duas esferas, somada da pregação de Martinho Lutero para subsidiar a necessidade da população de aceitar uma diferença de moralidade pessoal cristão da moralidade do Estado, e, por fim, analisando o movimento que trabalhou a síntese das duas crenças e a apresentou como opção ao povo alemão: O movimento cristão-alemão.

Em primeiro lugar, mostrou-se que a teologia das duas esferas foi conseqüência da visão dualista de dois reinos, um humano e outro celeste, já sendo trabalhada dentro do seio da Igreja desde o séc. V, pelo papa Gelásio I, evoluindo ao longo dos tempos e sendo sintetizada por Martinho Lutero durante sua Reforma, com a intenção de fazer com que a população aceitasse o poder do Estado e separasse seu poder e área de atuação do poder da Igreja, abrindo espaço para a teoria de que o homem deveria separar a moralidade pessoal, cristã, da moralidade do Estado, não permitindo que aquela ficasse no caminho desta.

Em segundo lugar, este trabalho apresentou a visão nazista de religiosidade, em duas vertentes: A exaltação e divinização do sangue ariano por parte do movimento nazista, e a criação de um movimento dentro da igreja protestante, conhecido como movimento cristão-alemão.

Inicialmente, este trabalho apresentou a visão assustadora de uma divinização do sangue ariano por parte do partido nazista, baseando-se em várias teorias antissemitas e racialistas do século anterior, que teriam ajudado vários teólogos alemães a buscar formas de mostrar que o cristianismo cabia dentro da ótica nacional-socialista de governo e sociedade.

A seguir, com base na ideia nazista de “cristianismo positivo”, apresentada no Ponto 24 de seu Estatuto, que dava três diretrizes claras para uma religiosidade aceitável pelo Estado nacional-socialista – deveria ser antijudaica, aceitar o poder Estatal e buscar acabar com todas as divisões da igreja – este trabalho apresenta o movimento cristão-alemão, trabalhando três características básicas deste movimento: A busca por um Jesus ariano, ou seja, não-judeu; A busca por uma desjudaização do cristianismo, através da modificação da Bíblia, dos hinos e do catecismo para eliminar quaisquer elementos judaicos aparentes neles; e a oposição à doutrina, uma forma encontrada pelo movimento de realizar seus objetivos.

A conclusão que se chega, ao concluir este trabalho, é que ainda há muita área para pesquisa nesse campo da história da Igreja cristã. Diversos pontos interessantes surgiram durante este estudo que, se trabalhados, mereceriam obras específicas. O recorte desta obra procurou focar na Igreja Protestante alemã, porém há indícios de que membros do clero católico também aceitaram muitas ideias cristãs-alemãs. Também há a questão da forma como a Igreja Católica reagiu ao movimento nazista, tendo em vista esta também ter ficado inativa durante a perseguição nazista ao povo judaico.

Além disso, um foco especial nos movimentos de resistência ao nazismo seria interessante. Os estudos comprovaram que a Igreja Confessante surgiu de uma reação ao avanço do movimento cristão-alemão, porém, surpreendentemente, esta reação não se deu exatamente por conta do seu antissemitismo, e sim pela questão do Parágrafo Ariano implementado especificamente contra o clero.

Outra área de pesquisa interessante que surge deste estudo é o posicionamento da teologia alemã no pós-guerra. As fontes trabalhadas para este estudo revelam que a Igreja Confessante foi a responsável por organizar a Igreja Protestante Alemã após 1945. Entretanto, sabe-se, hoje, que a Alemanha vive um momento de esfriamento espiritual. Uma pesquisa que buscasse traçar paralelos entre o ocorrido durante os anos nazistas e os dias atuais poderia encontrar respostas para esse esfriamento. Seria condição dos tempos, ou a teologia produzida antes e depois da Segunda Guerra Mundial teria algo a ver com isto?

Por fim, talvez a informação mais surpreendente encontrada nas fontes trabalhadas seria, segundo Bergen[1], a de que algumas igrejas étnicas alemãs ao redor do mundo teriam se interessado pela teologia cristã-alemã. Ela cita que, no final de 1933, sessenta e seis pastores protestantes alemães na América do Sul teriam endossado o movimento cristão-alemão.

As conseqüências desta pesquisa são inúmeras para o continente sulamericano: Teria essa teologia feito um grande impacto nas igrejas alemãs da América do Sul? Teria essa teologia chegado ao Brasil? E mais: Haveria alguma ligação entre esse fator e a fuga de inúmeros nazistas para este conitnente? Teriam as igrejas trabalhado em conjunto com os governos argentino e brasileiro para facilitar a fuga de oficiais de alto-escalão nazistas, como Joseph Mengele, médico e biólogo pesquisador do campo de Auschwitz, cujos restos mortais foram encontrados no Brasil no início da década de 80?

Ao encerrar este trabalho, fica uma sensação de espaço para uma pesquisa muito mais ampla do alcance do movimento cristão-alemão e dos ideais nazistas na teologia cristã dos sécs. XX e XXI. Muitos outros fatores podem ser levantados para o comportamento da população alemã durante o governo nazista, porém eles não se encaixam no recorte deste trabalho. Todos os fatores apresentados podem ser questionados ou minimizados. Porém, é fato que o movimento cristão-alemão alcançou um poder de penetração na mente dos alemães que não se tinha conhecimento até poucos anos atrás, e levantar essa obra de pesquisa no Brasil é o primeiro passo para que seus impactos em nosso país possam também ser estudados.

Para encerrar, deve-se pensar sempre que a análise do passado é o caminho para evitar novos erros semelhantes no futuro. Porém, não se deve ficar preso ao passado, lamentando tudo o que aconteceu, sem construir conhecimento em cima disto. Sem ação e sem autocrítica, o passado pode voltar a se repetir e ser ainda pior do que o acontecimento original.

Como diz um velho ditado irlandês, ‘Cure o passado. Viva o presente. Sonhe o futuro’. Que nós, teólogos cristãos, possamos analisar e curar as dores causadas por nosso passado, viver o presente para o bem de todos, e sonhar um futuro onde o cristianismo possa novamente ser relevante para a vida das pessoas, não como um mero discurso filosófico ou moral, mas como um verdadeiro fator de transformação de vidas, através da pregação da graça imerecível da salvação em Jesus Cristo.

– REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Angela M. República de Weimar e a Ascensão do Nazismo. São Paulo: Brasiliense, 2008.

ALMEIDA, Maria Aparecida de Andrade. Os judeus e a expulsão da sinagoga para a comunidade joanina. Oracula – Revista de Estudos de Apocalíptica, Misticismo e Fenômenos Visionários. São Bernardo do Campo: v. 10, p. 2, 2010. ISSN: 1807-8222.

ASCHHEIM, Stephen. The Nietzsche legacy in Germany, 1890-1990. Barkeley e Los Angeles: UC Press, 1992.

AURÉLIO ONLINE. Disponível em: < http://www.dicionariodoaurelio.com/ >. Acesso em: 26 ago. 2010.

BARMEN DECLARATION. Disponível em: < http://www.creeds.net/reformed/barmen.htm >. Acesso em 07 jul. 2010 às 18>22h.

BARNES, Kenneth C. Nazism, liberalism and Christianity: Protestant Social thought in Germany and Great Britain. 1925-1937. Lexington: University Press of Kentucky, 1991.

BERGEN, Doris. Twisted Cross: The German Christian Movement in the Third Reich. Chapel Hill: UNC Press, 1996.

____. Storm Troopers of Christ: The German Christian Movement and the Ecclesiastical FInal Solution. In: ERICKSEN, Robert P., HESCHEL, Susannah. Betrayal: German Churches and the Holocaust. Minneapolis: Augsburg Fortress, 1999.

BÍBLIA. Português. Bíblia Online. Edição Revista e Atualizada. Disponível em < http://www.bibliaonline.com.br >. Acesso em: 8 jul. 2010.

CONTE, Édouard, ESSNER, Cornelia. Demanda da Raça: Uma Antropologia do Nazismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

FRICK, Frank S. A Journey through the hebrew scriptures. Orlando: Harcourt Brace & Company, 1995.

GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998.

GONZALEZ, Justo. A Era Inconclusa. São Paulo: Vida Nova, 1995.

GRAMSKI, Antonio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. 4 ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

HESCHEL, Susannah. The Aryan Jesus: Christian Theologians and the Bible in Nazy Germany. Princeton: Princeton University Press, 2008.

HOBSBAWN, Eric, RANGER, Terence. The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

LOPES, Augustus Nicodemos. A Bíblia e Seus Intérpretes. Uma Breve História da Interpretação. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

LUZ, Enrique. O Eterno Judeu. Anti-semitismo e Antibolchevismo nos cartazes de propaganda política nacional-socialista. 1919-1945. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.

LUTZER, Erwin. A Cruz de Hitler. São Paulo: Editora Vida, 2001.

MARTON, Scarlett, in. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacoia Junior. São Paulo: Annablume, 1997.

MEYER, F. B. Comentário Bíblico F. B. Meyer. 2 ed. Trad. Amantino Adorno Vassão. Belo Horizonte: Betânia, 2002.

MICHAELIS. Disponível em < http://michaelis.uol.com.br/ >. Acesso em 31 ago. 2010 às 17:05.

RAMOS NETO, João Oliveira. Os problemas e limites do Método Histórico-Crítico. Revista Theos – Revista de Reflexão Teológica da Faculdade Teológica Batista de Campinas. Campinas: 6a Edição, V. 5 – No 2 – Dezembro de 2009, ISSN: 1980-0215.

PNASIEWICZ, Roberlei. Olhar Hermético ou Hermenêutico: fundamentalismo religioso, origens e desafios. Atualidade teológica (PUCRJ), v. 29, p. 1-11, 2008.

SCHLEIERMACHER, Friedrich. The Life of Jesus. Philadelphia: Fortress Press, 1975.

STEIGMANN-GALL, Richard. The Holy Reich: Nazi Concepts of Christianity, 1919-1945. Cambridge e New York: Cambridge University Press, 2005.

TAHA, Abir. Nietzche: O profeta do nazismo. O culto do super-homem revelando a doutrina Nazista. São Paulo: Madras, 2007.

UNITED STATES HOLOCAUST MEMORIAL MUSEUM. Disponível em: < http://www.ushmm.org/wlc/article.php?lang=en&Moduleld=10007170 >. Acesso em: 20 fev. 2010.

VANDRUNEN, David. Natural Law and the Tow Kingdoms. A Study in the Development of Reformed Social Thought. Grand Rapids, Michigan, EUA, Cambridge, Reino Unido: Eerdmans, 2010.

WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento. Manual de Metodologia. 5 ed. São Leopoldo: Sinodal. São Paulo: Paulus, 1998.


Gostou do artigo? Comente!
Nome:

E-Mail:

Comentário:



- Nenhum comentário no momento -

Desde 3 de Agosto de 2008