Categoria: Historiografia
Imagem: Os Doze Apóstolos - Caminhos Viagens
Publicado: 16 de Março de 2014, Domingo, 02h01
Se o amigo leitor for dar uma olhada em alguns sites católicos desprestigiosos que tem por aí, irão se deparar com uma série de passagens isoladas nos escritos dos Pais da Igreja totalmente desorganizadas e lançadas na tela sem qualquer exegese ou interpretação em cima delas, simplesmente acreditando que em tudo o que é lugar onde está escrito a palavra “tradição” significa que os Pais da Igreja não adotavam a Sola Scriptura, como se as tradições da Igreja excluíssem a autoridade única e suprema das Sagradas Escrituras.
Este tipo de argumentações desconexas pode ser visto nas argumentações de qualquer herege, não somente dos apologistas católicos. Por exemplo, há alguns anos eu debati com um espírita que jurava de pé junto que em todo lugar em que a palavra “espírito” aparecia na Bíblia significava aquela entidade incorpórea, consciente e racional, que se despreende do corpo por ocasião da morte e volta a encarnar novamente em outro corpo sabe-se lá quanto tempo depois, exatamente conforme ele havia aprendido de Kardec.
Foi o maior tédio ter que provar pra ele que a palavra “espírito” na Bíblia tinha um significado totalmente diferente daquilo que significava nos escritos de Allan Kardec. Para ele, em qualquer lugar da Bíblia que aparecesse a palavra “espírito”, já significava logo de cara as teses espíritas e kardecistas, e não tinha nem conversa! Não importava o contexto, a exegese bíblica ou o significado real dos termos.
A mesma coisa acontecia quando a Bíblia se referia aos demônios como sendo “espíritos malignos”. Para ele, isso queria dizer que os demônios não eram demônios, mas “espíritos” (no sentido kardecista da palavra!). Mas não é somente com espíritas inexperientes que esta má interpretação acontece aos montões. Os católicos possuem a mesma deficiência técnica quando leem a palavrinha mágica chamada “tradição” nos escritos dos Pais. Para eles, significa logo de cara que por “tradição” implica necessariamente em:
1. Uma doutrina que não se encontra na Bíblia em lugar nenhum.
2. Uma doutrina que foi transmitida somente oralmente.
3. Uma doutrina não-escrita e não-bíblica (i.e, fora das Escrituras) que foi conservada pela Igreja de Roma.
4. Uma doutrina que serve para complementar as Escrituras e que está a par dela.
5. Uma autoridade de fé distinta das Escrituras, que serve para comprovar doutrinas que não se encontram na Bíblia.
Então, em todas as vezes que os “apologistas” católicos (ou pelo menos os mais inexperientes e amadores deles) leem a palavra “tradição” nos escritos dos Pais, não importa o contexto, eles logo já têm em mente os cinco significados que eles aprenderam na catequese, que seriam aquilo que a “tradição” significaria. Eles não buscam mostrar aquilo que é a tradição, eles somente visam empurrar goela abaixo a interpretação deles daquilo que seria a tradição.
Cabe a nós, então, quebrarmos o encanto católico e desvendarmos de uma vez por todas o que realmente significava a “tradição”, provando que os Pais da Igreja não eram incoerentes para que uma hora afirmassem que a Sagrada Escritura é a única regra de fé e suficiente para a salvação, para que em outro momento apelassem a uma tal “tradição”, que, teoricamente, seria contrária às Escrituras. Deve haver um consenso, e não uma contradição. E é exatamente isso o que eu irei analisar a partir de agora.
Antes de tudo, vamos à conversa de Jerônimo com Agostinho. Eles estavam entrando em um embate teológico acerca da repreensão de Paulo a Pedro, descrita no segundo capítulo de Gálatas. O problema era que Agostinho cria em uma coisa, e Jerônimo em outra. Para Agostinho, Paulo estava totalmente com a razão em ter criticado Pedro na frente de todos.
Já para Jerônimo, Paulo estava sendo dissimulado, pois este, segundo ele, cometia os mesmos erros de Pedro em outras ocasiões, então não tinha moral para repreender Pedro. Agostinho, quando ficou sabendo desta nova interpretação que Jerônimo tinha acerca desta passagem, ficou assustado, e escreveu uma carta a Jerônimo, o que acabou dando início a um longo debate entre eles acerca deste e de outros temas. Nesta carta, Agostinho escreve a Jerônimo nas seguintes palavras:
“Em sua exposição da Epístola de Paulo aos Gálatas eu encontrei uma coisa que me causa muita preocupação. Pois se declarações falsas em si mesmas tenham sido admitidas na Sagrada Escritura, que autoridade restará para nós?” [Jerome, Letter 67, From Augustine, Cap.3]
Agostinho sustentava a posição de que a Escritura declarava categoricamente que Pedro estava agindo de maneira errada, de modo que a interpretação de Jerônimo ia contra a clareza das Escrituras, distorcendo-as, como se fossem falsas. Então, Agostinho diz que, se declarações falsas fossem admitidas nas Escrituras, nenhuma autoridade restaria para eles.
Isso é certamente surpreendente, pois nos revela que a Escritura era a única autoridade de fé dos primeiros cristãos. Agostinho diz que, sem as Escrituras, não restaria nenhuma autoridade para eles. A pergunta retórica que ele faz: “que autoridade restará para nós?” mostra claramente como que eles não consideravam a tradição oral como uma outra autoridade complementar (como creem os católicos), mas a Sagrada Escritura como única e insubstituível.
Deste modo, podemos ver que os Pais da Igreja não consideravam a tradição da mesma forma que os católicos atuais a veem. Eles não criam que a tradição fosse uma autoridade a par das Escrituras, como o catolicismo fortemente crê, dizendo que “a tradição é parte da revelação de Deus e por isso deve ser respeitada a par da Escritura” [Giuseppe Perardi, op. cit., pag. 375]. O Concílio Vaticano II expressa este parecer católico errôneo ao dizer:
“Não é através da Escritura apenas que a Igreja deriva a certeza a respeito de tudo aquilo que foi revelado. Por isso, ambas (Escritura e Tradição) devem ser aceitas e veneradas com igual sentido de piedade e reverência” [Compêndio do Vaticano II, pág.127]
Portanto, para os católicos, a tradição é uma autoridade de fé a par das Escrituras e com a mesma autoridade delas. Porém, para os Pais da Igreja, a tradição servia apenas para interpretar as Escrituras, e não para estabelecer uma autoridade à parte delas, para fundamentar doutrinas que não se encontrassem na Bíblia. Os próprios doutores da Igreja Ortodoxa (que também creem na tradição) admitem isso, dizendo:
“As Sagradas Escrituras são o coração da Tradição e o fundamento da fé” [“A Igreja Grego-Ortodoxa”, Rev. Robert G. Stephanopoulos, Ph.D]
“Igreja Cristã é uma Igreja Escritural: a Ortodoxia crê nisso, tão ou mais firmemente que o Protestantismo. A Sagrada Escritura é a expressão suprema da revelação de Deus ao homem, e os Cristãos devem ser sempre o ‘Povo do Livro’” [“A Igreja Ortodoxa”, Bispo Kallistos Ware]
Para os Ortodoxos, a tradição não era uma regra de fé a par das Escrituras que servia para complementá-las; ao contrário, era apenas um meio evocado para estabelecer uma interpretação hermenêutica da única suprema e soberana regra de fé: as Escrituras. George Florovsky, arcipreste da Igreja Ortodoxa (1893-1979), escreveu sobre isso nas seguintes palavras:
“Além disso a exegese era, naquele tempo, o principal, e talvez o único, meio teológico, e, a autoridade das Escrituras era soberana e suprema. Os Ortodoxos eram forçados a levantar as questões hermenêuticas cruciais: Qual era o princípio de interpretação? … Foi nessa situação histórica que a autoridade da Tradição foi invocada pela primeira vez” [Sobre Igreja e Tradição – Uma Visão Ortodoxa e Oriental]
O próprio Florovsky faz questão de ressaltar que essa “tradição” não serve nem nunca serviu para fundamentar doutrinas que não se encontram nas Escrituras, nem tampouco para deixar a Sagrada Escritura “insuficiente” em si mesma. Ele diz:
“A tradição na Igreja Antiga era, antes de tudo, um princípio e método hermenêutico. As Escrituras podiam ser correta e completamente acessadas e entendidas somente à luz e no contexto da Tradição Apostólica viva, que era um fator integral da existência Cristã. Era assim, não porque a Tradição pudesse acrescentar qualquer coisa ao que havia sido manifestado nas Escrituras, mas porque ela provia o contexto vivo, a perspectiva compreensiva, e só nela, a verdadeira “intenção” e o “projeto” total dos Santos Escritos, da Divina Revelação, poderiam ser detectados e pegos” [Sobre Igreja e Tradição – Uma Visão Ortodoxa e Oriental]
Portanto, essa “tradição” (método hermenêutico para interpretar as Escrituras) não era de forma alguma aquilo que é hoje pregado pelos católicos romanos, um verdadeiro circo de doutrinas não-bíblicas e extra-bíblicas, que não se encontram em parte alguma das Escrituras, mas servem como pretexto para fundamentarem cada vez mais dogmas em cima dela. Ao contrário, ela servia apenas e tão somente para interpretar a Bíblia, sem poder acrescentar qualquer coisa ao que havia sido manifestado nas Escrituras!
Florovsky segue o seu raciocínio citando também Atanásio:
“O argumento era ainda estritamente Escritural, e, em princípio, Santo Atanásio admitia a suficiência das Escrituras, sagradas e inspiradas, para defesa da verdade (c.Gentes,I). Somente que as Escrituras tinham que ser interpretadas no contexto da tradição viva da crença, sob a direção e controle da “regra da fé.” Essa “regra,” no entanto, não era de modo algum, uma autoridade “estranha” que poderia ser “imposta” sobre os Santos Escritos. Era a mesma “pregação Apostólica” que estava escrita nos livros do Novo Testamento, mas era, como se fosse, essa pregação in epítome … No capítulo de encerramento dessa primeira epístola a Serapion, Santo Atanásio retorna mais uma vez ao mesmo ponto. “De acordo com a tradição passada a nós pelos Padres, eu passei essa tradição sem inventar nada estranho a ela. O que eu aprendi, eu escrevi (e?e?a?a?a, eneharaksa), em conformidade com as Escrituras” (c.33)” [Sobre Igreja e Tradição – Uma Visão Ortodoxa e Oriental]
Note novamente que essa tradição não afetava de maneira nenhuma os princípios básicos da Sola Scriptura (de que a Sagrada Escritura é o ápice da autoridade em matéria de fé e doutrina e suficiente em si mesma), pois o próprio arcipreste ortodoxo renomado afirma que eles eram ainda (na época de Atanásio, séc.IV) “estritamente Escriturais”, isto é, estritamente fundamentados naquilo que está escrito na Bíblia.
Ele ainda afirma que Atanásio admitia a suficiência das Escrituras, e que essa nova “regra interpretativa”, chamada de “tradição”, não era algo paralelo ou diferente das Escrituras, mas exatamente a mesma pregação apostólica que estava escrita nos livros do Novo Testamento! Ele ainda segue citando Atanásio, que dizia seguir a tradição, mas não uma tradição não-bíblica que adicionasse doutrinas ou dogmas que não se encontram na Escritura (como é o caso dos católicos romanos), mas sim em conformidade com as Escrituras!
Portanto, a tradição, longe de trazer insuficiência à Bíblia ou de retirar o ápice de superioridade dela, pode ser considerada apenas quando está em total conformidade com as Escrituras, e não para acrescentar doutrinas que não se encontram na Bíblia!
Veremos, então, mais textos sobre a “tradição” nos escritos dos Pais. Jerônimo (347 – 420) foi um dos mais famosos e importantes da era patrística, e escreveu que a tradição apostólica não era algo “fora da Escritura” ou “fora daquilo que está escrito“, pois, ele diz, «admitidos tudo o que está escrito e rejeitamos tudo o que não está»:
“Se vós quereis clarificar as coisas em dúvida, ide à lei e ao testemunho da Escritura; fora dali estais na noite do erro. Nós admitimos tudo o que está escrito e rejeitamos tudo o que não está. As coisas que se inventam sob o nome de tradição apostólica sem a autoridade da Escritura são feridas pela espada de Deus” [Jerônimo, In Isaiam, VII; In Agg., I]
Fora do «testemunho da Escritura», estamos na «noite do erro». Enquanto os católicos ensinam que a tradição não se encontra nas Escrituras, mas fora dela, Jerônimo dizia expressamente o contrário: as tradições estavam sujeitas à Escritura, de modo que eles admitiam «tudo o que está escrito e rejeitamos tudo o que não está».
Se eles rejeitavam tudo o que não está, isso significa que a “tradição apostólica”, de que eles tanto falavam, não se referia a ensinos que não se encontravam nas Escrituras; ao contrário, se referia exatamente ao «testemunho da Escritura»! Isso explica o porquê que Jerônimo termina dizendo que «as coisas que se inventam sob o nome de tradição apostólica sem a autoridade da Escritura são feridas pela espada de Deus».
Ao que tudo indica, já naquela época existiam pessoas inventando doutrinas falsas, com o pretexto de que não se encontravam na Escritura, mas na tradição. Este era basicamente o mesmo argumento usado hoje pelos católicos: “de que não precisa estar na Bíblia, porque está na tradição!” Jerônimo, contudo, repudia isso que era inventado sob o nome de “tradição apostólica”, e explica que a verdadeira tradição se encontra dentro do testemunho da Escritura, admitindo tudo aquilo que está escrito, e não fora dela, na noite do erro.
Essa visão sobre a tradição apostólica é completamente análoga ao critério dos Reformadores que, assim como os Pais, entendiam que a tradição não era uma fonte ou autoridade de fé complementar à Bíblia ou mesmo secundária, mas estava submetida (sujeita) ao testemunho das Escrituras, a única regra de fé e prática dos cristãos, pelo qual todas as tradições e ensinos devem ser julgados com base nela, a autoridade final em matéria de fé.
O Terceiro Catecismo Católico declara expressamente que a tradição fora da Bíblia foi “transmitida inalterada de séculos em séculos até nós”. Porém, o fato é que os próprios Pais da Igreja denunciavam que existiam tradições orais que não se conservaram em seus dias, ou que foram interpretadas erroneamente por aqueles que a ouviram. Eusébio de Cesareia (265 – 339), por exemplo, afirmou que Papias entendeu erroneamente um ensinamento oral transmitido a ele pelos apóstolos:
“O próprio Papias conta também outras coisas como tendo chegado a ele por tradição não escrita, algumas estranhas parábolas do Salvador e de sua doutrina, e algumas outras coisas ainda mais fabulosas… eu creio que Papias supõe tudo isto por haver derivado das explicações dos apóstolos, não percebendo que estes haviam-no dito figuradamente e de modo simbólico” [História Eclesiástica, Livro III, 39:11,12]
Aqui vemos claramente Eusébio reconhecendo que a «tradição não escrita» não havia sido transmitida de modo inalterado ou confiável. Se não fosse assim, ele não teria tido que corrigir uma tradição não escrita! Por isso, muitas vezes as tradições não escritas podem servir muito mais para o mal do que para o bem. Como o próprio Eusébio confirma, elas podem servir para corromper o evangelho verdadeiro:
“O mesmo escritor [Hegesipo] nos explica o início das heresias de seu tempo nestes termos: “E depois que Tiago o Justo sofreu o martírio, o mesmo que o Senhor e pela mesma razão, seu primo Simeão, o filho de Clopas, foi constituído bispo. Todos o haviam proposto, por ser o outro primo do Senhor. Por esta causa chamavam virgem à Igreja, pois ainda não havia se corrompido com vãs tradições” [História Eclesiástica, Livro IV, 22:4]
Se existem tradições orais que podem ser falsas e servem até mesmo para corromper o evangelho, então com qual critério que devemos acatar algumas tradições e rejeitar outras? Isso é muito simples: quando a tradição está de acordo com a Bíblia, ela é aceita; quando, porém, tal ensino não está confirmado pelo testemunho das Escrituras, ela é duvidosa, e pode servir para corromper a fé.
É por isso que tantas vezes vemos os Pais se referirem à tradição como sendo uma «tradição escriturística», pois as verdadeiras tradições tinham que estar confirmadas pelo testemunho Escriturístico. A tradição apostólica da Igreja não era «não escrita», mas puramente Escriturística. Dionísio, por exemplo, afirma:
“Há de se cogitar, que a tradição escriturística afirma que os mandamentos da Lei foram transmitidos diretamente por Deus a Moisés. Certamente! Mas se as Sagradas Escrituras assim se exprimem é para que não ignoremos que essas prescrições são a própria imagem da Lei divina e sagrada” [Da Hierarquia Celeste, Cap.4]
“Mas ainda é conveniente a meus sentidos refletir sobre essa tradição Escriturística que atribui aos anjos os números de mil vezes mil e dez mil vezes dez mil [Daniel 7:10], retornando sobre eles mesmos e multiplicando por eles mesmos os números mais elevados que nós conhecemos, para nos revelar claramente que o número das legiões celestes para nós escapa de todas as medidas” [Da Hierarquia Celeste, Cap.14]
Ele se refere à tradição como sendo uma «tradição escriturística», e não como sendo uma «tradição não escrita»! Há uma grande diferença entre uma coisa e outra. A segunda seria semelhante à tradição católica, onde a tradição é transmitida oralmente e não necessariamente de acordo com a Bíblia, mas a segunda mostra que essa tradição era, antes de tudo, fundamentada pelas próprias Escrituras, e não fora dela.
Vale ressaltar aqui que existiram tradições orais (não escritas) transmitidas pelos apóstolos; porém, tais tradições não estavam em desacordo ou em desarmonia com a Bíblia, mas eram «tradições escriturísticas» por estarem de acordo e em total harmonia com os ensinamentos bíblicos.
Portanto, o que não devemos aceitar são aquelas tradições não escritas e também não bíblicas, isto é, sem o apoio das Escrituras para a confirmação de doutrina, mas sustentadas puramente por elas mesmas. E é exatamente deste tipo de “tradições” que vive a Igreja Católica.
É por isso que Atanásio (295 – 373) diz claramente que a tradição que ele recebeu estava em conformidade com as Escrituras, e não fora delas:
“De acordo com a tradição passada a nós pelos Pais, eu passei essa tradição sem inventar nada estranho a ela. O que eu aprendi, eu escrevi, em conformidade com as Escrituras” [Ad Serapion. Cap.33]
O que ele aprendeu, ele escreveu, em conformidade com as Escrituras. Este adendo seria desnecessário no caso de que a tradição herdada por ele não tivesse fundamento Escriturístico ou base bíblica. Se fosse uma tradição fora da Bíblia, como é o caso da tradição católica-romana, ele não teria adicionado este fato importante que desvenda qualquer mistério sobre a tradição, que é a sua declaração de que essa tradição estava em conformidade com as Escrituras (não somente que não as contradiziam).
O mesmo Atanásio afirmou em outra oportunidade que a tradição da Igreja era confirmada por ambos os Testamentos:
“Mas nossa fé é correta, começando com o ensinamento do apóstolos e tradição dos padres, sendo confirmada por ambos os Testamentos” [Epístola 60]
Diferentemente da tradição romana, onde coisa nenhuma precisa estar na Bíblia e onde muitas doutrinas estão fundamentadas puramente sobre a tradição e não tem qualquer base bíblica (tornando a tradição suficiente em si mesma), a verdadeira tradição apostólica dos Pais da Igreja era «confirmada por ambos os Testamentos». Ou seja, não bastava dizer que “estava na tradição”, tinha que comprovar isso usado base bíblica!
A verdadeira tradição tinha que ser confirmada à luz das Escrituras. Enquanto a tradição católica não precisa da confirmação das Escrituras para provar que certa doutrina ou dogma é verdadeiro, a legítima tradição tinha que ter fundamento bíblico para ser confirmada, como nos diz Atanásio.
Diante disso, é um equívoco muito grande presumir que a “tradição” implica na extinção da “Sola Scriptura”. O que estamos vendo é precisamente o contrário. Quanto mais analisamos o conceito de “tradição” que tinham os Pais da Igreja, mais constatamos que essa tradição tinha fundamento bíblico e dela necessitava para ser confirmada como verdadeira, o que só serve para comprovar e validar ainda mais a legitimidade da doutrina cristã da Sola Scriptura.
Se os católicos aprendessem o que significa a “tradição”, nos poupariam de passar tantos disparates de textos patrísticos desconexos que supostamente entram em contradição consigo mesmos.
Enquanto os Pais entendiam que a tradição estava submetida à única regra de fé – a Escritura Sagrada – e desta tem que ter a sua confirmação, os católicos formulam seus dogmas e suas doutrinas puramente por uma tradição não escrita e não escriturística (i.e, uma tradição oral que não tem apoio nas Escrituras).
Cipriano de Cartago (200 – 258) é outro que nos explica que a tradição deve estar «prescrita no Evangelho, ou contida nas epístolas ou Atos dos Apóstolos» (Epístola 74). Esta informação é particularmente de grande importância, pois Cipriano estava discutindo com nada a menos que um bispo de Roma, Estêvão, que era um “papa”, segundo os católicos.
Portanto, ele não estava se referindo a uma “tradição qualquer”. Ele estava se referindo a tradições que teriam supostamente sido conservadas pela Igreja de Roma, e que, mesmo assim, teriam que estar submetidas ao testemunho das Escrituras. Cipriano se manifesta sobre Estêvão nas seguintes palavras:
“De onde é aquela tradição? Ela vem da autoridade do Senhor e do Evangelho, ou ela vem dos comandos e das epístolas dos apóstolos? Pois que aquelas coisas que estão escritas devem ser feitas, Deus testemunha e admoesta, dizendo a Josué o filho de Num: “O livro desta lei não deve se afastar de tua boca; mas tu deves meditar nele dia e noite, para que tu possas observar para fazer de acordo com tudo que está escrito ali”. Também o Senhor, enviando Seus apóstolos, os ordena para que as nações sejam batizadas, e ensinadas a observar todas as coisas que Ele comandou. Se, então, é ou prescrito no Evangelho, ou contido nas epístolas ou Atos dos Apóstolos, para que aqueles que vêm de alguma heresia não devam ser batizados, mas somente as mãos sejam impostas a eles em arrependimento, que esta divina e santa tradição seja observada. Mas se em todo lugar os hereges são chamados nada mais do que adversários e anticristos, se deles se pronuncia que são pessoas a ser evitadas, e serem pervertidas e condenadas por si mesmos, porque é que não deveríamos pensar que eles sejam dignos de ser condenados, já que é evidente do testemunho apostólico que eles são de si mesmos condenados?” [Epístola 74]
Cipriano se manifesta contra a decisão do bispo de Roma, Estêvão, em aceitar o batismo de hereges, em lugar de um rebatismo. Este, curiosamente, dizia estar seguindo a “tradição”, exatamente como fazem os outros bispos de Roma até os dias de hoje. Porém, ao invés de Cipriano aceitar este argumento sem qualquer hesitação (mesmo não estando nas Escrituras, como fazem os católicos até hoje) ele condena vigorosamente essa atitude, e manda uma pergunta que deveria ressoar pelos ouvidos de todo o clero romano:
“…De onde é aquela tradição?“
Essa questão abordada por Cipriano é exatamente aquela que estou examinando em todos os artigos desta série. Será que devemos aceitar todas as tradições vindas de Roma (independentemente de estarem ou não nas Escrituras), ou será que devemos aceitar somente aquelas tradições que vem das Escrituras?
Para os católicos, qualquer tradição vinda de Roma – ainda que não tenha qualquer base bíblica – pode ser aceita com facilidade, se tiver o aval do papa. Já para Cipriano, que discutia com um bispo de Roma, apenas as tradições que estavam contidas no Evangelho, nas Epístolas ou nos Atos que deveriam ser aceitas.
Com isso, ele confirma tudo aquilo que já vimos em nosso estudo: não é qualquer tradição da Igreja Romana que devemos aceitar, mas devemos examinar cada uma delas sob a luz da Escritura Sagrada. Foi exatamente isso o que fizeram os Reformadores, e precisamente o mesmo que Cipriano fez com aquele bispo de Roma.
Ele afirma que aquelas tradições que estão escritas na Sagrada Escritura devem ser seguidas, e então diz que, se a tradição está de acordo com aquilo que é prescrito no Novo Testamento, então «que esta divina e santa tradição seja observada»; mas, se não é assim, então não devemos nos submeter a tradições não escriturísticas, mesmo se tiver sido proferida por algum papa de Roma, assim como ele rejeitou a tradição de Estêvão por não constar nas Escrituras!
“De onde vem essa tradição” é uma pergunta que deve ser feita a todo o momento quando nos deparamos com uma delas. E, logo em seguida, o próximo passo será examinarmos as Escrituras para vermos se há respaldo a essa tradição. Se há, então não há qualquer problema em aceitá-la. Mas, se não há, então se cumpre aquilo que o próprio Cipriano disse ao papa Estêvão:
“Dá gloria a Deus quem, sendo amigo de hereges e inimigo dos cristãos, acha que os sacerdotes de Deus que suportam a verdade de Cristo e a unidade da Igreja, devem ser excomungados?” [Epístola 74]
Cipriano rejeitou a tradição não-bíblica de Estêvão e o chamou de «amigo de hereges e inimigo dos cristãos», por manter uma tradição que não se encontra nas Escrituras. Se Cipriano fez isso e ele é até hoje muito respeitado, venerado e canonizado pela Igreja Católica, por que devemos condenar os Reformadores, que fizeram exatamente a mesma coisa de Cipriano, em condenar as tradições não-bíblicas da Igreja Romana e até mesmo o próprio papa por levar adiante essas tradições?
Como vemos, não há coerência na Igreja Romana. Em outro momento, Cipriano volta a condenar tais tradições, chamando-as de “humanas” por não constarem nas Escrituras, as “ordenanças divinas”:
“Que orgulho e que presunção é igualar tradições humanas às ordenanças divinas!” [Epístola 71]
Atanásio (295 – 373), importante bispo de Alexandria no século IV, que já analisamos no artigo anterior, foi outro que reconheceu que existem pessoas que «recebem tradições de homens caindo em erro» (Festal Letter 2). As tradições só podem ser consideradas válidas quando a Escritura dá testemunho delas. Foi precisamente quanto a isso que Justino escreveu em seu Diálogo com Trifão:
“Não temos algum mandamento de Cristo que nos obrigue a crer nas tradições e nas doutrinas humanas, mas somente naquelas que os bem-aventurados profetas promulgaram e que Cristo mesmo ensinou, e eu tenho cuidado de referir todas as coisas às Escrituras e pedir a elas os meus argumentos e as minhas demonstrações” [Justino Mártir, Diálogo com Trifão]
Justino contrasta aqui as “tradições e doutrinas humanas” com o testemunho da Sagrada Escritura. Ele diz que não era para crer em qualquer tradição, mas somente naquelas que tem todo o cuidado de se referirem em todas as coisas às Escrituras, pedindo delas os seus argumentos e demonstrações, como o próprio Justino fazia questão de fazer. Dito em termos simples, devemos aceitar somente as tradições que tem base bíblica, que em «todas as coisas» tem fundamento Escriturístico.
O “somente” que Justino emprega no texto acima é o que soluciona toda a questão. Quando ele aplica o “somente”, ele claramente está indicando que são só as tradições Escriturísticas que são aceitas, e nada daquilo que não esteja na Bíblia. Por isso mesmo ele tinha o cuidado de referir todas as coisas às Escrituras – para não cair no mesmo erro daqueles que seguem tradições que não constam na Bíblia!
J. N. D. Kelly, um dos maiores eruditos em patrística que já existiu, escreveu sobre a Escritura e a tradição da mesma forma que expomos aqui. Tão certo quanto o fato indiscutível de que existia uma tradição apostólica é o fato de que essa tradição apostólica era fundamentada nas Escrituras, e não fora dela. Nas palavras de Kelly, «para que qualquer doutrina fosse aceita, devia primeiramente estar baseada nos fundamentos das Escrituras» (Primitivas Doutrinas Cristãs).
Para este erudito em patrística, a Escritura era completamente suficiente, e a tradição não era uma outra autoridade alternativa ou complementar, mas um método hermenêutico de interpretação das próprias Escrituras: “Se as Escrituras eram completamente suficientes em princípio, a tradição era reconhecida como a mais segura pista para sua interpretação” [Primitivas Doutrinas Cristãs, pp. 47-48]
Termino esta importante série de estudos sobre o significado da tradição nos escritos dos Pais da Igreja com uma citação de mais um importantíssimo bispo da Igreja Antiga, Cirilo, bispo de Jerusalém (315 – 386), venerado pela Igreja Romana e considerado Doutor e Apologista da Igreja, que em suas “Catequeses Mistagógicas” expressou o mesmo parecer dos Pais e que foi apresentado ao longo de todo este estudo:
“Que este selo permaneça sempre em tua mente, o qual foi agora, por meio do sumário, colocado em teu coração e que, se o Senhor o permitir, daqui em diante, será elaborado de acordo com nossas forças por provas da Escritura. Porque, concernente aos divinos e sagrados Mistérios da Fé, é nosso dever não fazer nem a mais insignificante observação sem submetê-la às Sagradas Escrituras, nem sermos desviados por meras probabilidades e artifícios de argumentos. Não acreditem em mim porque eu vos digo estas coisas, a menos que recebam das Sagradas Escrituras a prova do que vos é apresentado: porque esta salvação, a qual temos pela nossa fé, não nos advém de arrazoados engenhosos, mas da prova das Sagradas Escrituras” [“The Catechetical Lectures of S. Cyril” Lecture 4.17]
Paz a todos vocês que estão em Cristo.
Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli.
Fonte: Ortodoxia Reformada