Categoria: Historiografia
Imagem: Rei Henrique VIII com Ana Bolena por Daniel Maclise - ArtsDot
Publicado: Originalmente publicado em Agosto/2008 e republicado no dia 08 de Agosto de 2021, Domingo, 22h04
A obra da Reforma na Inglaterra, no que diz respeito à compreensão do Estado, na verdade não começou senão na última metade do século XVI. O que Henrique VIII tentou não era de forma alguma uma verdadeira reforma religiosa. Ele acabou com a obediência ao papa no ano de 1534; supriu as ordens pedintes no ano seguinte, e após este ato saqueou os mosteiros, de cujos rendimentos se apoderou para o seu próprio uso. O motivo que levou Henrique a esta espécie de reforma foi a cólera que lhe despertou a recusa do papa em conceder-lhe o divórcio com Catarina de Aragão. Ora, uma reforma originada assim não se podia conservar.
Ainda assim ia prosseguindo uma verdadeira obra de Deus, obra que, na verdade, nunca tinha cessado desde o tempo de Wycliff, e todos os anos vinha para o país nova luz da Europa, e é disto que vamos falar especialmente. No próprio ano em que o rei subiu ao trono, o bispo papista de Londres, Ricardo Fitzjames, começou uma pequena perseguição na sua diocese, fato este que prova que a verdade já se estava fazendo sentir em alguns bairros; e entre os anos de 1510 e 1537 houve uns quarenta cristãos pertencentes a ambos os sexos, que sofreram de vários modos pela sua fé. Nas proximidades de Lincoln, houve, nesta época, muita perseguição, e o bispo da diocese, protegido por uma carta do rei, fez proceder uma rigorosa busca de hereges a quem tratava, quando os traziam à sua presença, com uma crueldade característica. Aqueles que eram tidos por culpados da primeira ofensa, e abjuravam das suas ideias, eram geralmente encarcerados nos mosteiros por toda a vida, mas os “hereges” reincidentes eram entregues às autoridades seculares para serem queimados em vida.
William Tyndale / Fonte: alecsatin.com
William Tyndale
No entanto, outros ingleses, com fins mais nobres e puros, não estavam menos ocupados em outros pontos. No ano 1520 William Tyndale deixou a Universidade de Cambridge e começou a sua notável carreira.
Estando em Gloucéster, como professor em casa de um fidalgo chamado Welsh, discutia ali frequentemente com os abades, diáconos e outros beneficiadores que se reuniam à mesa do fidalgo. Numa dessas discussões, o seu adversário, encolerizado, no calor da controvérsia, disse-lhe: “Era melhor viver sem as leis de Deus do que sem as do papa“. Tyndale, no auge de indignação, exclamou: “Eu não me importo com o papa nem com as suas leis“, e acrescentou: “se Deus me poupar a vida hei de fazer que em poucos anos qualquer rapaz que conduz o arado saiba mais das Escrituras do que o senhor“. No fim de tudo parece que o estudante de Cambridge não era muito popular em casa do fidalgo de Gloucéster, e os seus serviços eram muito mais apreciados do que a sua companhia.
Seguindo depois para Londres, procurou Cuthbert Tonstall, que então era bispo, e diligenciou obter um lugar em casa dele, mas os seus esforços foram debaldes.
O seu destino era outro: era ser um servo do Senhor em tempos perigosos, e para isso era preciso que passasse por provas mais severas do que as que se poderia encontrar na casa de qualquer bispo. Contudo, por algum tempo esteve hospedado em casa de um tal Humphrey Monmouth, um digno cidadão de Londres que tinha um verdadeiro respeito pelo seu hóspede, e que estava ele próprio, bastante interessado no novo ensino. Mas à medida que as opiniões de Tyndale se tornaram conhecidas (e ele não era homem que escondesse a sua luz) os perigos aumentavam para ele, e os seus amigos aconselharam-no a retirar-se para a Europa.
Além disso, havia uma nova obra que estava prendendo a sua atenção – a tradução da Bíblia – e para isto necessitava de todo o sossego possível, o que em Londres não podia ter: “Estou ansioso pela Palavra de Deus“, disse ele, “e hei de traduzi-la, digam o que disserem e façam o que quiserem. Deus não me há de deixar morrer. Ele nunca fez uma boca sem fazer o seu alimento, nem um corpo sem também fazer o seu vestuário“. Com tal ânsia a oprimi-lo, não é de admirar que Tyndale não fizesse caso das necessidades do corpo.
Mas a perseguição aumentava cada vez mais, e, se aqueles que o rodeavam estavam sendo condenados só por lerem porções da Palavra de Deus, não era de supor que aquele que estava traduzindo a Bíblia inteira pudesse escapar. “Ah!“, suspirava ele, “não haverá nem um lugar onde eu possa traduzir a Bíblia? Não é só a casa do bispo que me está fechada, mas toda a Inglaterra!” Era muito verdadeiro este queixume, e alguns dias depois de sair de debaixo do teto hospitaleiro de Humphrey Monmouth, Tyndale achava-se a caminho da Alemanha.
Tendo chegado à Alemanha, Tyndale procurou vários reformadores, passando em seguida à Saxônia, onde teve uma conferência com Lutero, e tendo-se conservado por ali algum tempo, seguiu para os Países Baixos, estabelecendo finalmente a sua residência na Antuérpia. Outros dizem que foi primeiro a Hamburgo, e dali para Colônia, sendo seguido para esta cidade pelo seu implacável inimigo Cochlaeus, do qual se diz que embriagou os impressores para obter deles o segredo da obra de Tyndale. Achando-se em perigo, seguiu para Worms, e ali completou a primeira parte da sua obra, a tradução do Novo Testamento. Na primavera de 1526, chegaram à Inglaterra cópias dessa tradução, que circularam por todo o país. A situação dos padres de Roma que estavam na Inglaterra era má, e começaram a perguntar uns aos outros o que se havia de fazer. Os alicerces do papismo estavam sendo minados e parecia que todo o edifício estava em perigo de desabar. Condenar o livro era coisa fácil, e isto estavam fazendo, mas livrar o país da nova doutrina que ele tão claramente ensinava, e evitar a entrada de novos exemplares, era uma coisa diferente. Era inútil que Henrique se desesperasse e Tonstall pregasse contra o livro; este tinha-se apoderado do coração e consciência do povo, assim como do seu espírito, e nem os clamores do rei nem os sermões do bispo podiam destruir a sua influência. Foram publicamente queimadas em Oxford, Cambridge e Londres várias cópias da tradução, e em alguns casos não só os livros, mas também os seus leitores foram lançados às chamas, mas apesar disto a obra foi para frente, porque Deus assim o queria.
Tyndale no entanto ocupava-se com o Velho Testamento, e no ano 1528 acabou os primeiros cinco livros, o Pentateuco. Durante a sua viagem a Hamburgo, onde ia imprimi-los, sofreu um naufrágio e o manuscrito perdeu-se. Continuou a viagem logo que lhe foi possível e chegando a Hamburgo recomeçou o seu árduo trabalho, sendo auxiliado pelo reformador Miles Coverdale, cuja tradução das Escrituras foi publicada alguns anos depois.
Fim do Trabalho de Tyndale
Mas os trabalhos do ousado reformador deviam em breve ter o seu fim, por lhe estar destinada a coroa de mártir. Estando em Antuérpia em casa de um inglês chamado Points foi traído e entregue nas mãos dos papistas, por alguém que tinha gozado a sua confiança, e depois de se definhar na prisão durante dezoito meses (durante os quais contribuiu para a conversão do carcereiro e outras pessoas da sua casa), foi condenado ao poste. Teve por sorte ser estrangulado antes de ser queimado; a sentença foi cumprida na cidade de Vivorden no ano 1536. As suas últimas palavras pronunciadas em alta voz foram uma oração para o país tão mergulhado em trevas – “Senhor! Abre os olhos do rei de Inglaterra!“.
Dr. Latimer pregando para Eduardo VI, filho do Rei Henrique VIII. Fonte: Wikipédia
Dr. Latimer
Mas Tyndale não foi o único inglês de conhecimentos excepcionais e de habilidade que trabalhou para o bem público durante estes tempos. O que ele estava fazendo em silêncio como tradutor das Escrituras fazia-o também de um modo mais público o Dr. Latimer, de Cambridge, por meio dos seus sermões.
Hugo Latimer era filho de um fazendeiro, e nasceu em 1541. A sua precocidade junto com uma inteligência viva, levaram o seu pai a mandá-lo para a Universidade de Cambridge. Uns quatro anos mais tarde o seu espírito tomou uma direção séria, e o vivo estudante tornou-se um dedicado e supersticioso discípulo da igreja romana. Por esse mesmo tempo aplicou-se ao estudo dos clássicos com grande persistência. Mais tarde começou os seus estudos de teologia, e gastou muitas horas preciosas com as obras de sábios doutores da Idade Média. Chegou a ser, segundo as suas próprias palavras, “o mais obstinado papista da Inglaterra”. O seu zelo contra as novas doutrinas exprimia-se por vivo sarcasmo e discursos mordazes que muitos deleitavam o clero. Na verdade, a fama das suas pregações continuava a espalhar-se de tal modo, que os prelados e frades começaram a esfregar as mãos e animarem-se uns aos outros com a ideia de que até mesmo Lutero tinha finalmente encontrado o seu igual.
Mas alegravam-se cedo demais. Na Universidade juntamente com mestre Latimer havia um chamado Tomás Bilney, com outro modo de pensar. Este vigiava com não menos interesse, posto que por motivo inteiramente diferente, os movimentos do vivo e zeloso pregador. “Ah!“, suspirou Bilney, “se eu pudesse ganhar este eloquente padre para o nosso lado, que triunfo para nossa causa! Se eu o pudesse levar aos pés do Salvador, certamente que se havia de seguir uma vivificação da verdadeira religião!” Isto era realmente para desejar, mas como consegui-lo? Humanamente falando era impossível, mas Bilney era homem de fé, e sentiu que tinha chegado a ocasião de por a fé em prática.
Conversão de Latimer
Um dia Mestre Latimer, no seu caráter de padre confessor, foi esperado no seu quarto por um penitente, cuja presença ali muito o admirou. Era o Mestre Bilney. “Que quer isto dizer“, pensou o padre, “Bilney aqui! Um herege a confessar-se a um católico é extraordinário! Mas talvez que o meu sermão contra Melanchton o convencesse do seu erro, e ele vem procurar restaurar a sua comunhão com a igreja!” Enquanto ele assim raciocinava, Bilney começou a contar ao confessor a simples história da sua própria conversão a Deus; e as palavras, aplicadas pelo Espírito Santo, foram diretamente ao coração e à consciência do padre. Ali naquele mesmo momento se entregou a Deus; e, abandonando desde então a enganosa teologia das escolas, tornou-se não só um sincero estudante da verdadeira teologia, mas também um verdadeiro ensinador das doutrinas reformadas.
Mas os soberbos doutores da Universidade e os padres e frades, que tinham em conta a sua própria justiça, não podiam por muito tempo suportar a sua pregação clara e a sua exposição inexorável dos erros de Roma, e a cólera deles começou a manifestar-se por ameaças ocultas e invectiva cólera. Porém Latimer não era homem que se intimidasse com ameaças ou perdesse o sangue frio com os barulhos, e continuou a pregar com toda a ousadia; seus trabalhos foram muito abençoados por Deus e grande parte da oposição que lhe tinha sido feita foi vencida.
Algum tempo depois, o bispo de Ely usou de modos mais brandos com o intrépido pregador, mas sem resultado. Cumprimentou-o pelos seus mais admiradores dotes; declarou que estava pronto a beijar-lhe os pés, e depois aconselhou-o como meio mais seguro para derrubar a heresia, a pregar contra Lutero. Latimer, que tinha bastante senso comum para não se deixar enganar por tão evidente lisonja, respondeu: “Se Lutero prega a Palavra de Deus, não posso fazer-lhe oposição. Mas se ele ensina o contrário, então estou pronto a atacá-lo“. “Bem, bem, Mestre Latimer“, disse o bispo, “já percebo as suas ideias. Um dia ou outro há de arrepender-se delas“.
Tendo falhado as injúrias, as ameaças e as palavras doces, o bispo passou das palavras às obras, e fechou os púlpitos da Universidade ao pregador. Mas pouco tardou que se abrisse outra porta a Latimer, e Roberto Bernes, prior dos frades agostinhos, em Cambridge, cujo coração o Senhor tinha tocado, convidou-o a pregar na igreja pertencente àquela ordem.
A controvérsia que os sermões de Latimer reavivaram foi interrompida por uma carta do capelão do rei, na qual as partes contendoras foram obrigadas ao silêncio até ser conhecida a vontade do rei. Mas a vontade do rei era que Latimer continuasse a pregar. Tinha sido informado de que o eloquente pregador do Evangelho tinha favorecido a sua causa na questão do divórcio com Catarina de Aragão, e isso era um meio seguro de alcançar o favor real. No ano seguinte encontramo-lo pregando perante a corte em Windsor, onde o rei ficou tão encantado com a sua eloquência sincera e destemida, que o fez seu capelão. Outros favores reais ainda o esperavam, mas os papistas não o deixaram descansar, e sendo citado perante o bispo de Londres por mais uma acusação de heresia foi então excomungado e lançado na prisão.
Fonte: A História do Cristianismo - Dos Apóstolos do Senhor Jesus Cristo ao Século XX, A. Knight & W. Anglin, Ed. CPAD