Categoria: Historiografia
Imagem: Julgamento de Wycliffe devido as críticas contra o comportamento clerical - Conhecimento Científico
Publicado: Originalmente publicado em Agosto/2008 e republicado no dia 31 de Julho de 2021, Sábado, 18h28
Supõe-se que João Wycliff [imagem ao lado] nasceu nas proximidades de Richmond, no condado de York, na Inglaterra, pouco mais ou menos em 1324. A pobreza de seus pais, que parece terem sido camponeses, não o impediu de entrar, na idade própria, na universidade de Oxford, onde aproveitou todas as ocasiões para se instruir, ganhando bem depressa as boas graças do seu tutor, o piedoso e sábio Thomas Bradwardine, que fazia dele muito bom juízo. Durante os seus estudos adquiriu um bom conhecimento não só das leis civil, canônica e municipal, mas também da ruína da natureza humana, como as Escrituras a ensinam, da inutilidade do merecimento humano para a salvação, e da grandeza da graça divina, pela qual o homem pode ser justificado sem as obras da Lei. Diz-se também que, por conselho do seu tutor, estudara as obras de Grostete, e dali lhe viera a ideia de que o papa era o Anticristo.
Os seus ataques às ordens mendicantes, que atraíam os estudantes da universidade para os seus mosteiros, tornaram-no notável em Oxford. Ele escreveu alguns folhetos sobre o assunto. Era Wycliff nesse tempo professor da universidade, mas isso não o impediu de continuar no seu trabalho pelo Senhor, e, aos domingos, despia a toga de professor e pregava ao povo o Evangelho simples na linguagem popular.
A fama das suas pregações bem depressa chegou a Roma, e os frades mendicantes, cuja influência estava muito abalada pelo seu ensino, apressaram-se a dar a saber ao papa os seus receios. Para isso usaram de um meio muito eficaz extraindo dos escritos de Wycliff dezenove artigos, e mandando-os ao papa, juntamente com as suas cartas; e, como a maior parte destes artigos, combatiam de uma maneira muito clara as pretensões temporais do papa, pode-se facilmente imaginar qual foi o resultado. Nove dos extratos foram logo condenados como heresias e outros declarados errados, e foram mandadas imediatamente ordens à Inglaterra para que o ousado herege fosse levado aos tribunais pelas suas opiniões. Isto foi o princípio do conflito, mas Roma ainda desta vez se enganou.
Ataque ao Reformador
Ao atacar o reformador, tinham atacado um homem com amigos, porque Wycliff tinha-os em todas as classes. A classe popular estimava-o porque ele se interessava pela sua causa e lhes explicava as Sagradas Escrituras em linguagem que podiam compreender; os fidalgos eram seus amigos porque ele os ajudava a resistir ao clero; e em Oxford não era menos estimado pela sua piedade do que respeitado pelo seu saber.
No mês de fevereiro do ano 1377 foram abertas as sessões da Convocação de S. Paulo, e para ali se dirigiu Wycliff, acompanhado de seus amigos João de Gaunt, duque de Lencastre e Lord Percy, marechal da Inglaterra. Receavam estes que se ele fosse sozinho não seria ouvido com imparcialidade, e podia talvez ser vítima de um jugo odioso; e quando começou o julgamento, a conduta de Guilherme Courtenay bispo de Londres mostrou bem que tinham razão de ter receios.
A multidão de gente dentro da catedral era enorme, e o marechal teve de empregar a sua autoridade para poder chegar ao pé dos juízes. Isto excitou o bispo imensamente, e seguiu-se uma cena tumultuosa. “Se eu soubesse, senhor,” disse ele, “que queríeis ser senhor nesta igreja, teria tomado as minhas medidas para vos impedir de aqui entrar“. O duque de Lencastre, que era nesse tempo regente do reino pela menoridade do rei Ricardo II, aprovou o ato do marechal, e observou que era “necessário manter a ordem apesar dos bispos“. Courtenay a custo conteve a sua ira, mas quando, em seguida, o marechal pediu uma cadeira para Wycliff, exclamou, encolerizado, “Ele não deve sentar-se; os criminosos conservam-se de pé perante seus juízes“. De ambos os lados se levantou novamente uma grande discussão, e só Wycliff se conservou silencioso; no entanto, o povo, seguindo o exemplo dos seus chefes, começou a exprimir sua própria opinião com atos de violência. Era impossível prolongar a sessão em tais circunstâncias; portanto, encerraram o tribunal, e o reformador saiu da catedral acompanhado pelo duque de Lencastre.
Dois Papas ao Mesmo Tempo
Por algum tempo deixaram-no em paz, e Roma teve de se ocupar duma questão mais séria, que exigia toda a sua atenção. Tratava-se nem mais nem menos do que a eleição de um papa rival em Findi, Nápolis. O pontífice romano, Urbano VI, desgostara de tal maneira os seus cardeais pela sua aspereza e severidade, que estes tinham julgado conveniente prestar a sua fidelidade a outro, e tinham investido dessa dignidade Roberto, conde de Genebra. Este, depois de ser devidamente eleito, estabeleceu a sua residência em Avignon, França, sob o título de Clemente VII, e ali foi reconhecido como papa pela Escócia, Espanha, França, Sicília e Chipre. O resto da Europa ainda considerava Urbano como o legítimo “sucessor” de S. Pedro.
Como era de esperar, este notável cisma ainda mais excitou o zelo de Wycliff contra o papismo, e deu-lhe novos motivos para vencer. “Confiemos na ajuda de Cristo“, exclamou ele, “porque Ele já começou a ajudar-nos pela sua graça, fendendo a cabeça do Anticristo em duas, e fazendo com que as duas partes comecem a guerrear uma contra a outra“. Ele já tinha declarado que o papa, o soberbo padre mundano de Roma, era o Anticristo, e o mais maldito dos exploradores da bolsa alheia, e agora Wycliff não teve escrúpulos em afirmar que tinha chegado o momento oportuno para extinguir o mal inteiramente.
Wycliff Citado de Novo
Afirmando isto, porém, antecipava o futuro, e sendo citado segunda vez para comparecer perante os seus acusados, viu que muitos dos seus amigos o tinham abandonado por causa das suas idéias extremistas, e entre eles o duque Lencastre. Mas Deus não o tinha abandonado, e o abandono dos amigos terrestres deu-lhe pouco cuidado. No seu primeiro julgamento tinha ele talvez estado, sem o saber, a fazer da carne a sua arma, mas agora não era assim, e apresentou-se no tribunal sozinho. Contudo, bastantes pessoas que esperavam ser ele provavelmente devorado naquela caverna de ladrões, encaminharam-se para a capela, na intenção de lhe acudir aos primeiros sintomas de traição que se manifestassem.
Os prelados tinham ido para o concílio confiados e altivos, certos de uma vitória fácil, mas ao observarem estas manifestações populares, ficaram inquietos e, quando, ao começar os interrogatórios, receberam uma ordem da mãe do jovem rei proibindo-os de pronunciar qualquer sentença definitiva sobre a doutrina conduta de Wycliff, a sua derrota foi completa.
Wycliff Traduz a Bíblia
Assim pois, pela graça de Deus, Wycliff escapou ainda mais uma vez das garras dos seus perseguidores, e pôde, pouco depois, ocupar-se com a grande obra da tradução da Bíblia na linguagem do país. Havia muito tempo que ele manifestara o desejo de que os seus patrícios pudessem ler o Evangelho da vida de Cristo em inglês, e havia agora todas as possibilidades de ver o seu desejo satisfeito. Poucos meses mais tarde essas probabilidades tornaram-se em certeza, e, à proporção que o trabalho ia chegando ao fim, o ousado reformador começou a sentir que a sua missão na terra estava quase terminada. No ano de 1383 viu a sua obra completa, e, apesar de os bispos fazerem toda a diligência para que a versão fosse suprimida por lei do Parlamento, os seus esforços não tiveram resultado, e em breve a Bíblia começou a circular por todo o reino.
Morte de Wycliff
Wycliff sendo desenterrado e queimado / Fonte: Wikimedia Commons
Wycliff porém não viveu o suficiente para ver a oposição dos bispos, pois que a 31 de dezembro de 1384, depois de uma vida agitada de sessenta anos, entrou no descanso eterno; e, posto que os seus amigos receassem que ele morresse de morte violenta, Deus tinha determinado outra coisa e assim morreu pacificamente em Luterworth. Os agentes de Roma foram pois logrados na esperança de alcançar a desejada presa, mas ainda assim o seu corpo foi mais tarde desenterrado e queimado, e as cinzas lançadas num regato próximo, “O regato“, diz Fuller, “levou as cinzas ao rio Avon; o Avon levou-as ao Saverna; o Saverna ao canal, e este ao grande oceano. E assim as cinzas de Wycliff são os emblemas da sua doutrina, que se acha agora espalhada pelo mundo inteiro“.
Os Lollardos
Quando Wycliff morreu os seus adeptos eram muitos, e havia-os entre todas as classes da comunidade. Parece que era em Oxford que havia maior número, e quando o Dr. Rigge, chanceler da universidade, recebeu ordem para impor silêncio àqueles que favoreciam o reformador, respondeu que não ousava fazê-lo por ter medo de ser morto. Todos os que adotaram publicamente a doutrina de Wycliff eram chamados de lollardos, mas é certo que mesmo antes de Wycliff aparecer já existiam muitos cristãos com essa denominação. As suas doutrinas e opiniões eram em tudo iguais às do reformador, e parece que foram tão infatigáveis como ele em as espalhar. Assim como Wycliff, eles também ensinavam que “o Evangelho de Jesus Cristo é a única origem da verdadeira religião; que não há nada no Evangelho que mostre que Cristo estabeleceu a missa; que o pão e vinho, ainda depois de consagrados, ficam sendo pão e vinho; que os que entram para os mosteiros ainda se tornam incapazes de observar as ordens de Deus; e, finalmente, que a penitência, a confissão, a extrema unção, não são precisas, nem se fundam nas Escrituras Sagradas“.
Pensar que Roma deixaria viver tais incorrigíveis hereges, sem se incomodar, seria supor que ela fosse capaz de tolerância e misericórdia – qualidades estas que nunca patenteou. Não era este o seu modo de proceder; e se os lollardos não foram logo perseguidos pela sua cólera, foi unicamente porque lhes faltavam os meios de tornar bastante eficaz a perseguição. Contudo, a subida ao trono de Henrique IV forneceu-lhe a oportunidade que esperava. Os padres e os frades tinham estado no entanto bastante ocupados em espalhar falsos boatos sobre o procedimento revolucionário dos lollardos, e tinham inspirado tais receios à nação que, quando no ano de 1400 o novo rei fez publicar um edito real determinando que os hereges fossem queimados, o Parlamento prontamente o sancionou.
Tempo de Martírios
Se fôssemos descrever todos os martírios que fizeram os “hereges” sofrerem durante esta perseguição, teríamos de escrever um martirológio, e isso iria muito além dos nossos limites. Guilherme Sautree teve a honra de ser a primeira vítima desta nova lei. A ele seguiu-se João Badby, um artista de Worcester, cujo martírio foi presenciado pelo jovem príncipe de Gales – depois Henrique V. Conta-se deste mártir que, quando acenderam o fogo, ele pedira misericórdia, e Henrique ordenara que fosse tirado das chamas. Trazido à sua presença, o príncipe perguntou-lhe: “Queres abandonar a heresia e conformar-te com a fé da santa madre igreja? Se queres, terás sustento por um ano tirado do tesouro do rei“. Mas João Badby tinha estado a pedir misericórdia de Deus e não dos homens, e a sua firmeza não se abalou com mais esta prova. Foi, em consequência, levado segunda vez para as chamas.
Como os lollardos aumentaram cada vez mais, o arcebispo Arundel fez convocar um concílio no ano de 1413, a fim de procurar melhores meios de os suprimir, e desde esse tempo, durante perto de um século, as chamas da perseguição foram ardendo por toda a Inglaterra, e conservou-se o mesmo rigor na busca dos hereges; mas Deus tinha decretado que a obra dos seus servos prosseguisse; e quem poderia deter a sua mão? As miseráveis criaturas de Roma podiam fazer diminuir o pequeno bando de cristãos, por meio do fogo e outras torturas, e prisões (as tribulações eram o quinhão que os fiéis discípulos esperavam), mas não podiam destruir a obra que Deus tinha começado. A sua Palavra – aquela semente incorruptível que vive e permanece eternamente – estava nas mãos do povo, e enquanto o poder dela estivesse entre eles, as armas de Roma eram impotentes, e a obra de Deus nas almas havia de se efetuar para a sua glória.
Fonte: A História do Cristianismo - Dos Apóstolos do Senhor Jesus Cristo ao Século XX, A. Knight & W. Anglin, Ed. CPAD