ÉTICA BARTHIANA E TEOLOGIA PÚBLICA: CONTRIBUIÇÕES PARA A TEOLOGIA DA CIDADANIA


Categoria: Filosofia e Sociologia
Imagem: Karl Barth / Imagem: Gazeta do Povo
Publicado: 07 de Março de 2024, Quinta Feira, 21h25

Artigo publicado pela REVER: Revista de Estudo da Religião. Fundada em 2001 como o primeiro periódico on-line de ciência da religião na América Latina, a REVER: Revista de Estudos da Religião  é atualmente uma publicação resultante da parceria do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com o Centro de Investigação em Teologia e Estudos de Religião e o Programa de Doutoramento em Estudos da Religião da Universidade Católica Portuguesa.

Jefferson Zeferino
Mestre e Doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR. Membro do Grupo de Pesquisa “Teologia, Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso” da PUCPR. Bolsista CAPES.

Clodovis Boff
Doutor em Teologia pela Universidade de Louvain, Bélgica. Professor do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR.

Resumo
Este artigo é motivado pela ética tal como é vivida pela comunidade cristã, na qual se nota uma considerável incoerência entre vida e fé. Isso conduz à pergunta acerca da legitimidade e fundamentação da ética cristã. Diante dessa problemática, nossa investigação objetiva identificar a fundamentação da ética na elaboração teológica de Karl Barth e suas implicações para a práxis cristã hoje, tanto no âmbito comunitário, quanto no campo do fazer teológico. Como resultado, entendemos que a fundamentação da ética na teologia de Karl Barth é a própria pessoa de Jesus Cristo. Dessa fundamentação, os seguintes aspectos se destacam: humanidade de Deus – cristologia com ênfase na humanidade; radicalidade da graça – pensar a graça de Deus às últimas consequências; encarnação soteriológica e ética quenótica – ética encarnada na vida fundamentada no movimento de Deus em Jesus em favor da humanidade toda; “Cristo em nós” – Jesus como paradigma da ação cristã; e cidadania – especialmente como tarefa da comunidade cristã dentro da comunidade civil. Por fim, colocamos essas categorias em diálogo com elementos de uma Teologia da Cidadania formulados por Rudolf von Sinner.

Introdução
A fundamentação da ética, a radicalidade da graça, a humanidade de Deus, o Cristo em nós, ética quenótica, a cidadania e a opção preferencial pelos pobres são os principais aspectos que destacamos de nossa análise da ética barthiana1. Motivados pela pergunta sobre a fundamentação da ética em Barth, percorremos sua elaboração teológica e percebemos dimensões ligadas a esta fundamentação e que também podem ser de grande utilidade para se pensar tanto a ética quanto a cidadania em nosso contexto.

Querer saber onde a ética está fundamentada é querer saber o que guia o agir ético, qual a sua finalidade, seu sentido. Ora, a ética é uma das instâncias tidas como produtoras de sentido na atualidade. Contudo, quando se constitui como um fim em si mesma, perde sua relevância teológica (Boff, 2014, p.545). A ética, enquanto sentido, não possui um horizonte salvífico-escatológico. Daí a importância de discernir a fundamentação da ética, pois se esta estiver embasada em si mesma não resiste à complexidade da vida e não responde a todas as perguntas da alma humana.

Sobre a presença cristã na esfera pública brasileira, cabe trazer um questionamento do próprio Barth:

Será que realmente ouvimos o chamado que escutamos? Será que chegamos a apreender aquilo que compreendemos? Que o que se impõe hoje é uma reorientação em Deus frente ao todo de nossa vida […]? (Boff, 2014), p.545)

Mais: será que a comunidade cristã

já forneceu à comunidade civil a prova do espírito e da força, representou e proclamou a Jesus Cristo frente ao mundo de forma tal que já possa esperar, de sua parte, ser considerada fator importante, interessante e benéfico na vida pública? (Barth, 2006, p. 300)

No pano de fundo de ambas as questões está a relação, muitas vezes incoerente, entre a fé e a ação cristã. O que nos leva a outras perguntas: qual a relevância da Igreja, assim como ela está organizada, para a sociedade? qual a fundamentação da ética na Igreja cristã hoje? E, de forma mais geral: o que motiva a ação humana? Qual o sentido e a finalidade da ética cristã? E, enfim, “a grande questão do nosso tempo [que] é a questão de todos os tempos: o Mistério de Deus”. (Boff, 2014, p.174)

Ao questionarmos a legitimidade e a realidade concreta da fé cristã na atualidade, somos motivados a trabalhar o pensamento de Barth a fim de encontrar impulsos consistentes para uma cidadania cristã ética pertinente hoje.

Nosso contexto: uma breve aproximação
Com o jornal em uma mão e a Bíblia na outra, como sugeria Barth, buscamos aqui uma breve contextualização de nossa realidade atual, marcada pelos problemas de corrupção e a proposição de se pensar a ética neste horizonte.

Devemos enfatizar que nossa motivação à pesquisa é o contexto em que vivemos. Em nosso caso, ao pensar a ética no cenário brasileiro, somos, de imediato, confrontados com o problema da corrupção2.

Sobre a corrupção, atenta o Papa Francisco em Misericordiae Vultus, ao chamar os corruptos à conversão, que:

Esta praga putrefata da sociedade é um pecado grave que brada aos céus, porque mina as próprias bases da vida pessoal e social. A corrupção impede de olhar para o futuro com esperança, porque, com a sua prepotência e avidez, destrói os projetos dos fracos e esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nos gestos diários para se estender depois aos escândalos públicos. A corrupção é uma contumácia no pecado, que pretende substituir Deus com a ilusão do dinheiro como forma de poder. É uma obra das trevas, alimentada pela suspeita e a intriga. Corruptio optimi pessima: dizia, com razão, São Gregório Magno, querendo indicar que ninguém pode sentir-se imune desta tentação. Para a erradicar da vida pessoal e social são necessárias prudência, vigilância, lealdade, transparência, juntamente com a coragem da denúncia. Se não se combate abertamente, mais cedo ou mais tarde torna-nos cúmplices e destrói-nos a vida (MV, 19).

Assim como na Laudato Si’, em que Francisco situa o cerne dos problemas ambientais em uma crise mais profunda, que é a crise do humano, uma crise existencial (LS, 6 e 9). Também aqui ele entende a corrupção nesse horizonte. Trata-se de um problema de sentido da vida.

Em outra chave de interpretação, para a filósofa Marcia Tiburi3 há um determinado padrão de comportamento em que se evidencia a figura do canalha (corrupto). Para ela, “o descompromisso e a desonestidade com o que se diz são características de nossa sociedade há tempos”. A autora identifica esse comportamento como neurótico, na medida em que se utiliza da “inversão”, isto é, “um tipo de distorção” em que se manipula “o que o outro diz”. O que se contrapõe à ética, que está relacionada ao dever ser. Para ela, “alguém que na esfera privada é neurótico, na esfera pública pode ser um canalha”. Entretanto, a autora identifica que, no contexto atual, “vivemos no império da canalhice onde a burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu […] Ela se transformou no todo do poder”. A pergunta de Tiburi é a seguinte: “Por que nos deixamos representar por ele [o canalha]?”.

Em resumo, a crítica da filósofa gaúcha se coloca no contexto da abundante manifestação da corrupção em cargos políticos e em quadros de alta direção de grandes empresas, mas, em nosso caso, deveríamos nos perguntar acerca de uma possível neurose em massa na Igreja brasileira.

No âmbito do direito, Rabenhorst (2005, p.121) percebe, a partir de Austin e Bentham, que “não existe nenhuma correlação entre o direito tal como ele é e o direito como ele deveria ser”. Não aprofundamos aqui as implicações no campo do Direito de tal expressão, mas nos apropriamos da frase para dizer que não existe praticamente4 nenhuma correlação entre a política brasileira tal como ela é e a política brasileira como ela deveria ser. Entretanto, a política enquanto elemento comum a todos diz também respeito à comunidade cristã e, ao pensarmos a participação sócio-política das Igrejas e da assim chamada bancada evangélica5, por exemplo, podemos afirmar o mesmo.

Acerca das incoerências entre vida e fé, precisamos dar um passo atrás e ressaltar que no pensamento cristão há ênfase no amor enquanto caridade e doação diaconal. O que é corroborado pelo grande mandamento de Jesus Cristo que consiste em amar a Deus integralmente e ao próximo como a si mesmo (Mc 12.30-31; Mt 22.37-39). Por vários motivos, o amor é palavra-chave na pregação e doutrinas cristãs, é em amor que Deus se doa por meio de Jesus Cristo, e mais, o próprio Deus é amor (1 Jo 4.7-16). Para Barth, a questão do amor é fundamental. Ele o coloca como referencial para o labor teológico, e é dentro da perspectiva do amor que ele reconhece que o centro da Teologia cristã é o próprio Cristo (Barth, 2007, pp. 123-128). Para ele, o referencial do agir ético cristão deve ser o agir do próprio Deus, já que é o movimento de Deus que move o ser humano em direção ao próximo (Barth, 2006, pp. 34-36).

No entanto, esta fundamentação da fé e da ética no amor parece desassociada da prática ética na vida dos cristãos, que às vezes cede à canalhice. Os próprios profetas, já antes do Nazareno, denunciavam o afastamento das práticas religiosas do povo de seu fundamento. Sobre isso, vale atentar a crítica profética ao culto presente em textos como os de Isaías 1.10-20; Jeremias 7.1-7; Oseias 6.1-11; e Amós 8.4-14. Todos esses textos têm como pano de fundo a ineficácia das práticas religiosas enquanto estas estão desligadas da vida de fé, quando os pobres são oprimidos pelos mesmos que oferecem cultos, incensos, holocaustos e festas rituais. “Pois eu quero amor e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6.6). Esse versículo deflagra a mais valia dada aos rituais cúlticos do que àquilo que realmente constituiria o culto, a saber, amor e conhecimento de Deus. Também no Novo Testamento, já no início da comunidade cristã é contada a insatisfação dos helenistas, por terem suas viúvas esquecidas na partilha dos alimentos (At 6.1). Até mesmo a comunidade primitiva, tão idealizada, teve problemas para equilibrar fé e vida. O que também se percebe na exortação de Paulo à comunidade de Corinto, em que alguns passavam fome enquanto outros até se embebedavam em ceias (1Co11.21). Assim, entendemos que as incoerências entre fé e vida saltam aos olhos, o que, infelizmente, se confirma no decorrer da história cristã e se faz presente hoje.

O problema da ética é, portanto, sempre atual. Pois a dinâmica da vida exige sempre novas atitudes e posicionamentos, os quais são sempre mediados pela fé que se tem. Assim, podemos elencar como problemas de incoerência entre vida e fé: o problema da ética falha dos cristãos, com ou sem cargos políticos; o mero ritualismo nas práticas religiosas; a falta de conhecimento das razões da fé; a carência de uma Teologia genuflexa (BOFF, 2012, pp. 142-143); a pobreza da ação política; e a falta de engajamento cidadão em ações de transformação da sociedade.

Diante deste quadro perguntamos: 1. Onde está fundamentada a ética na elaboração teológica de Karl Barth e como ela é desenvolvida? 2. Quais são as implicações da fundamentação da ética para a práxis cristã hoje? Tentamos responder a essas questões no decorrer de nossa explanação.

A fundamentação da ética em Barth
É conhecido o cristocentrismo de Karl Barth (Balthasar, 1992; Bayer 1994; Busch 2004, 2005; Collange, 2004; Cornu, 1971; Gibellini, 2012; Hunsinger, 2000; Mondin, 2003,; Santana Filho, 2013; Schwöbel, 2000; Webster, 2000, Zefferino, 2014). Esta fundamentação cristológica é confirmada em nossa pesquisa, como apresentaremos a seguir. Entretanto, aqui já nos colocamos sob a influência da Cristologia da humanidade de Deus (Zefferino, 2015). Entendemos existir um processo de humanização na teologia de Barth que equilibra a balança: o totalmente Outro – bastante enfatizado na teologia dialética – em Jesus é, também totalmente aqui, totalmente encarnado e totalmente humano.

Efetivamente, a fé cristã pode ser entendida como aquela que entende Jesus de Nazaré como centro de sua fé e curiosidade, o que tem implicações diretas para o fazer teológico. Como o exprime Boff (2015, p. 113), “é a natureza mesma de seu objeto próprio – Deus revelado em Jesus Cristo como amor salvador – que obriga a teologia cristã a ser afetiva para poder ser adequadamente intelectiva”.

Para Barth (2007, p.126), o assunto (Sache) central da Teologia é Jesus Cristo, aquele que consuma historicamente e de forma última a aliança entre Deus e o homem. Mondin (2003, pp.69-70) mostra que a Teologia de Barth é cristocêntrica justamente por reconhecer Jesus Cristo como a própria Palavra de Deus (Barth, 1975), tendo como finalidade maior a reconciliação operada em sua humanidade. Nesse contexto, Hunsinger (2000, pp.131-133) diz que as duas naturezas de Cristo, no sentido calcedonense, são tema central no desenvolvimento teológico do teólogo de Basileia. Além disso, de acordo com Bayer (1994, pp.361-363), estudar Barth diante do tema da ética é convocar para a discussão aquele que ancorou a ética no coração da dogmática.

A fundamentação da ética na Teologia barthiana é cristológica. Aqui, no entanto, vale ressaltar que essa ética, se bem colocada, não despreza o ser humano, ao contrário, o entende em sua dimensão mais profunda que se encontra justamente na humanidade de Deus. Assim, ao se partir do Deus revelado em Jesus Cristo, parte-se do homem. O estatuto teórico está fundado no Deus que escolhe ser Deus da humanidade tornando-se ser humano (Barth, 2006).

É importante salientar que Karl Barth teve a difícil tarefa de pensar a fé cristã em contextos que exigiam uma ressignificação de pensamento e paradigmas. Entre tais contextos, vale destacar as Grandes Guerras; o conflito leste-oeste (entre União Soviética e Estados Unidos); além da industrialização em processo de aceleração. Esses momentos levaram o cristão e também o não cristão a repensar aquilo em que depositavam a fé. A fé no homem, que até então marcava o espírito iluminista, recebeu pesados golpes, e milhões de vítimas da ação humana geravam o mesmo número de questionamentos acerca da ética. Barth viveu esses momentos como pastor e como professor de Teologia. Este cristão que foi um dos grandes articuladores teológicos de seu tempo não se calou, pelo contrário, posicionou-se, foi crítico, autocrítico e procurou chamar a atenção do cristão quanto a sua responsabilidade ética e cidadã, que é responsabilidade para com a pessoa humana. Já no início de sua vida pastoral deparou-se com a realidade de uma vila de operários na Suíça, percebeu a necessidade de conjugar vida e fé, envolveu-se, em virtude disso, com o socialismo religioso de Kutter e Ragaz. Além disso, revoltou-se contra os professores que o formaram dentro do liberalismo, na medida em que muitos deles demonstraram apoio à política de guerra alemã em 1914, entendendo que não poderia mais segui-los em sua ética e Teologia. Também teve papel importante na liderança da Igreja Confessante (Bekennende Kirche), sendo um dos principais formuladores da Confissão de Barmen (1934) que se colocava como uma declaração contra Hitler e o nazismo. Sua postura o fez perder a cátedra em Bonn, em 1935, mudando rapidamente para a Basileia (Busch, 2005; Cornu, 1971; Santana Filho, 2013).

Com o intuito de compreender os impulsos do pensamento de Barth para a ética cristã hoje, demonstramos, a seguir, elaborações sintéticas de nossas análises dos seguintes textos de Barth: “O cristão na sociedade” (1919); “O problema da ética na atualidade” (1922); “O primeiro mandamento como Axioma Teológico” (1933); “Evangelho e Lei” (1935); “Ética como tarefa da doutrina de Deus” (1942); “Comunidade cristã e comunidade civil” (1946).

O cristão na sociedade (1919)6
O movimento crístico de Deus é a fundamentação da ética. O cristão na sociedade quer dizer que Deus está presente por meio de suas testemunhas. Estas, embaladas pelo agir de Deus em favor do ser humano, que é o próprio Cristo, devem corresponder a este indicativo que torna-se imperativo. O “Cristo em nós”, isto é, Jesus Cristo como pressuposto da ética cristã, deve motivar o cristão a agir cristãmente de fato. Enfim, a ética cristã está fundamentada na ação do próprio Deus, que é ação criativa e redentora.

O problema da ética na atualidade (1922)7
A fundamentação da ética é Jesus Cristo, a Palavra última de Deus, conteúdo da fé e da revelação, e realidade para além da linguagem. A questão da ética recebe distintos contornos de acordo com cada época. Mais: ela é um problema existencial que envolve o ser humano como um todo, sendo que ele mesmo não consegue ser a resposta para tal questão. Apenas em Jesus Cristo é que a realidade da ética, que, em última análise, é também a pergunta pela motivação da ação humana, tem sentido.

É dentro do relacionamento com o absoluto inatingível, mas que se dá a conhecer, é que o ser humano encontra uma segurança. No desespero de sua finitude é que o homem pode apoiar-se em Deus e ter nele a fonte de toda a sua existência e fundamentação de sua práxis.

O Primeiro Mandamento como Axioma Teológico (1933)8
No que diz respeito à fundamentação da ética, no presente texto é notória sua relação com o axioma teológico, o qual é descrito por Barth como o primeiro mandamento, sendo que só é normativo na medida em que faz parte do documento normativo da comunidade cristã e por se tratar de revelação de Deus na história, o que, por sua vez, aponta para a plenitude desta revelação em Jesus Cristo. Assim, o caminho da fundamentação da ética que podemos identificar nesse texto se dá da seguinte maneira:

Ética/Ação motivada –> Fazer teológico –> Axioma Teológico –> Primeiro Mandamento –> Revelação de Deus na História –> Jesus Cristo

Dessa forma, Barth insere no sentido do texto veterotestamentário a totalidade do significado da revelação de Deus, e coloca este ponto de partida como fundamento último do fazer teológico. Com isso, refuta qualquer Teologia cristã que não parta dessa revelação crística. Assim, o centro do primeiro mandamento é Jesus Cristo, Deus revelado, pois ele é a palavra eterna de Deus que encarna historicamente e dá o real sentido de toda a existência e de toda a Escritura.

Evangelho e Lei (1935)9
Para Barth, dizer Evangelho e Lei faz todo sentido, pois a realidade da lei encontra seu real significado sob a perspectiva do Evangelho, sendo que ambos só podem ser compreendidos sob a luz da palavra de Deus. A palavra eterna de Deus, por sua vez, denuncia a profundidade do pecado humano, pois foi necessário que esta se tornasse carne e assumisse a humanidade completa e, com isso, o castigo do pecado, para que a vontade de Deus para com o ser humano pudesse ser cumprida. A vontade de Deus é o contrário do pecado. Este último é o distanciamento de Deus, é o viver sem Deus, ou seja, é o viver humano que confia em si mesmo para a salvação. Já a vontade de Deus consiste no reconhecimento de sua graça, a qual só é possível ao ser humano por meio de Jesus Cristo, a palavra eterna de Deus que é ao mesmo tempo o conteúdo do Evangelho, que é a graça de Deus. Assim, era necessário que a graça de Deus se tornasse carne para que o ser humano entoasse seu sim para a graça de Deus.

A lei, por sua vez, é a forma pela qual o Evangelho se apresenta, tendo como sua chave de leitura o próprio Deus encarnado, que cumpriu a lei por meio do amor. A lei, ou seja, o mandamento de Deus, possui seu significado na graça de Deus, que é o próprio Cristo, portanto, a graça de Deus cumpriu a lei. Esta lei se resume na obediência concretizada em amor. Entende Barth ter sido necessário que Deus cumprisse a lei por meio de Jesus Cristo e, assim, vencesse o castigo do pecado, o que é anunciado na ressurreição. A morte não pôde deter a graça encarnada de Deus.

Sob a perspectiva da fundamentação da ética, percebemos claramente aqui que ela se encontra sob a esfera cristológica. Jesus Cristo é o sentido da lei, e por isso também o sentido da ética. Vejamos:

Ética –> Lei –> Evangelho –> Graça –> Jesus Cristo

Mais uma vez, o caminho trilhado por Barth se encerra em Jesus Cristo. Fundamento último da lei, conteúdo do Evangelho, graça de Deus, senhor e salvador de toda a humanidade, a qual foi assumida em seu ser Deus de uma vez por todas. Nas palavras de Barth: “em indissolúvel mas também inamalgamada unidade consigo mesma” (Barth, 2006, p.218).

A ética como tarefa da Doutrina de Deus (1942)10
A fundamentação da ética é a graça eletiva de Deus revelada em Jesus Cristo. A graça de Deus elege o próprio Deus para ser Senhor amoroso e gracioso do ser humano e elege o ser humano para servir e obedecer ao mandamento de Deus. O mandamento de Deus surge na medida em que Deus se revela em sua graça.

Na aliança de Deus com o ser humano, é o próprio Deus que cumpre a aliança totalmente, pois Deus é ser humano em Jesus Cristo, ele é Senhor e Servo. Diante da ação de Deus, cabe ao homem a glorificação da ação doacional de Deus.

O ser humano é colocado dentro da aliança em Jesus Cristo, sendo chamado a conformar-se à ética de Deus. Em Jesus Cristo, toda a existência recebe seu fundamento e sua devida dimensão. Ele mesmo é o Criador, o Reconciliador e o Redentor, e o ser humano faz parte disso em Cristo.

Comunidade cristã e comunidade civil (1946)11
A fundamentação da ética é o relacionamento do cristão com o Senhor da comunidade cristã e da comunidade civil. Este relacionamento é fundado e plenificado em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Entretanto, a comunidade cristã vive diante da realidade do pecado, como dimensão real presente no ser humano. E é consciente de suas contingências que ela se coloca dentro da comunidade civil, sendo-lhe vedada uma existência apolítica ou não cidadã. Ela reconhece a comunidade civil como lugar privilegiado onde ela pode ser comunidade cristã. É dentro da realidade civil que ela pode servir as pessoas em amor e entrega doacional, movida pelo próprio amor e entrega quenótica de Jesus Cristo. No horizonte de sua atuação está a pessoa humana, preferencialmente o pobre. É nesse serviço que ela aguarda ativamente a realização plena do Reino de Deus.

Síntese
A fundamentação da ética é Jesus Cristo. Isto Karl Barth apresenta de variadas formas, mas em última análise sua elaboração teórica sempre culmina com a glorificação do nazareno como o centro-vital de toda a existência e, em consequência, de toda ética.

Ao falar do cristão na sociedade, Barth entende o cristão como aquela testemunha do amor de Deus revelado em Jesus Cristo. Mais: ele entende que a própria ação cristã deve ter Jesus Cristo como pressuposto. O Cristo em nós significa que a ética cristã deve estar totalmente envolvida e comprometida com seu Senhor. O Deus cristão, Criador, Reconciliador e Redentor, é, ele mesmo, a fundamentação e o paradigma da ética.

Quando fala da ética como problema da atualidade, ele entende esta realidade como algo existencial e, por isso, questão inescapável a todo homem. Novamente aqui Karl Barth recorre à Palavra de Deus, como aquela Palavra que, para além da linguagem, está prenhe da realidade de Jesus Cristo, que é realidade salvífica. Jesus Cristo é a fonte da ética, pois é a fonte e o sentido da própria vida que se faz presente e se dá a conhecer ao ser humano.

No que tange ao primeiro mandamento e à sua dimensão como axioma teológico, Karl Barth não demora em identificar Jesus Cristo com o Deus do primeiro mandamento, sendo que este é o Filho desde toda a eternidade. Jesus Cristo é o conteúdo da revelação de Deus que acontece na história.

Acerca da dinâmica Evangelho e Lei, para Karl Barth estas realidades só fazem sentido dentro da dimensão da Palavra de Deus. Mais: elas só fazem sentido diante da graça de Deus, que Barth identifica com Jesus Cristo. Jesus Cristo é a graça de Deus. E esta mesma graça, ao relacionar-se com o ser humano, torna-se lei, isto é, referência.

Quando Karl Barth pensa o mandamento de Deus, portanto, ele não se furta à graça de Deus. Toda a realidade humana só pode ser entendida diante da graça amorosa de Deus, que é graça criativa, reconciliadora e redentora. Ora, essa graça é Jesus Cristo. Ele fundamenta toda a existência, todo o pensar teológico e toda ética cristã. A graça de Deus que demanda obediência torna-se lei cumprida pelo próprio Cristo em sua humanidade. Ao ser humano cabe conformar-se a ética de Deus e glorificar sua obra e Palavra.

Enfim, ao falar da comunidade cristã e sua relação com a comunidade civil, Karl Barth não a entende como algo de fora, como uma espectadora da História, mas decisivamente presente e atuante na comunidade civil, a exemplo de seu Senhor que concretamente age e acontece na história. Sua função é espiritual e social. Nutrida pelo próprio autor da vida, ela tem como tarefa uma inserção transformadora e significativa no seio da comunidade civil. Ela glorifica a Jesus Cristo, a palavra e a obra de Deus em seu serviço ao ser humano, preferencialmente aos pobres, aos fragilizados, aos vulneráveis, aos invisibilizados, aos oprimidos, isto é, a todos que sofrem12. Diante dessas conclusões, cabe pensar um pouco além as implicações da ética barthiana para a práxis cristã na atualidade.

Impulsos oriundos da ética barthiana
De forma breve, reunimos as principais questões que pulsam a partir das análises feitas até aqui acerca do pensamento de Karl Barth.

De forma geral, podemos dizer que o aspecto mais nuclear no pensamento de Karl Barth é a centralidade de Jesus Cristo. Tudo começa e termina nele. Ele é o télos e a arché de todo desenvolvimento teológico de nosso autor. Para Barth, em Jesus Cristo Deus cria, reconcilia e redime a humanidade. O que acontece por meio da encarnação. E aqui precisamos ampliar alguns aspectos.

Nossa hipótese teológica – nutrida pelo pensamento de Barth, especialmente a radicalidade da graça e a humanidade de Deus – é de que na humanidade de Deus está a criação, a reconciliação e a redenção. Isto significa que no fato de Deus ser verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, em Jesus Cristo, a História acontece. Assim, quando Deus se faz homem em Jesus de Nazaré, e isto é entendido como verdadeiro já desde toda a eternidade, ele assume a humanidade em sua inteireza. No entanto, e aqui ensaiamos uma analogia da fé, assim como quando Jesus toca o leproso, não é Jesus que se torna impuro, mas é o leproso que é purificado, também Deus ao se tornar totalmente homem não se torna pecador, mas a humanidade é que é purificada. Isto é, ao tornar-se homem, tanto o ser de Deus quanto o ser do homem recebem uma nova dimensão na pessoa de Jesus Cristo.

Ao acolher nossa humanidade em seu próprio ser, Deus vem misericordiosa e amorosamente em nossa direção para se relacionar conosco em uma densidade sem precedentes. Tanto a perspectiva da dignidade humana, quanto a dignidade de Deus recebem aprofundamentos em suas concepções. Deve ficar claro, no entanto, que tal realidade é verdade já agora na humanidade de Jesus de Nazaré, que prefigura a comunhão última com Deus.

Na humanidade de Jesus, o ser humano – que é homo incurvatus in se13, contrapõe-se o “homem quenótico”. Deus, ao tornar-se humano, rompe com o pecado, rompe com a realidade do homo incurvatus in se, tanto ontologicamente como em sua práxis. Ele instaura a ética quenótica (cf. Fp 2.5-11), que é aqui entendida como o movimento de contínua entrega amorosa em favor do próximo. Esta kénosis, por ser real em Jesus Cristo, está presente na criação, na reconciliação e na redenção. Assim, o agir de Deus na história é sempre ação quenótico-amorosa14.

Ainda outro aspecto da argumentação de Barth que se faz atual é que, a partir do próprio ser de Jesus, na radicalidade da graça, o teólogo de Basileia rompe com o princípio autorreferencial daquilo que Clodovis Boff entende como modernidade fechada (Boff, 2014, pp. 402-413). Esse tipo de modernidade é criticada na raiz por Barth, pois, diferente da autorreferencialidade, a ética cristã pressupõe o reconhecimento do senhorio de Deus sobre a História e sobre o ser humano.

De Barth, recebemos sem ressalvas a centralidade de Jesus Cristo como fundamento de todo fazer teológico e de toda ética. Entretanto, como sustentamos acima, tentamos radicalizar ainda mais a radicalidade da graça pensada por Barth no que chamamos de encarnação soteriológica. De resto, estamos de acordo com o teólogo suíço na medida em que levamos sua lógica a consequências que ele talvez não tenha previsto. Entendemos que Jesus Cristo é o centro vital que exprime a radicalidade da graça a partir da qual toda a realidade deve ser pensada.

Por fim, atentamos para as teses que julgamos mais fundamentais da elaboração teológica de Barth e que servem de referência tanto para a práxis comunitária quanto para a práxis teológica:

1. Jesus Cristo é o fundamento último e o centro vital para a vida cristã e para o pensamento teológico.

2. O Cristo em nós é o pressuposto básico da ética.

3. A radicalidade da graça deve ser pensada até as últimas consequências, estando sempre presente no fazer teológico e na prática ética também em sua dimensão inspiradora.

4. A humanidade de Deus é o conceito chave para a profunda reflexão acerca da realidade humana e da realidade de Deus por meio de uma só pessoa: Jesus Cristo.

Um ensaio de Teologia pública: ética barthiana e Teologia da cidadania15
Os quatro aspectos destacados acima, a saber, fundamentação cristológica, humanidade de Deus, radicalidade da graça e Cristo em nós, junto com os conceitos de ética quenótica e encarnação soteriológica, são aqui recebidos com o intuito de pensarmos a ética barthiana no horizonte da cidadania.

Antes precisamos introduzir nosso horizonte. A expressão Teologia da Cidadania como Teologia Pública é de Rudolf von Sinner16. O ponto de partida para a reflexão da cidadania, para o Professor de São Leopoldo, foi Hugo Assmann, que “argumentou que a ‘teologia da cidadania e da solidariedade’ deveria ser uma continuação da teologia da libertação”. Para o autor, esse acento permite uma melhor aplicação das experiências da própria Teologia da Libertação, assim como uma abertura aos “teólogos pentecostais que demonstram resistência ao termo ‘libertação’” (SINNER, 2014, p. 14).

Para Sinner, “cidadania tornou-se o termo-chave da democracia no Brasil”. E, para ele, “Igrejas cristãs e outras comunidades religiosas são, efetivamente, parte da sociedade civil e contribuem fomentando, de algum modo, a cidadania” (SINNER, 2014, p. 15).

As contribuições da ética barthiana serão desenvolvidas em dois momentos: 1. Em diálogo com a elaboração de Sinner; 2. Breves desenvolvimentos dos elementos acima referenciados da Teologia barthiana.

Karl Barth e Rudolf von Sinner: em prol de uma Teologia da cidadania
R. von Sinner anima a reflexão acerca de uma Teologia da Cidadania a partir de elementos oriundos da Teologia luterana: a) ser cidadão; b) viver como cidadão; c) perseverar como cidadão; d) servir como cidadão; e) ser um cidadão cristão. Abaixo reproduzimos a elaboração ético-teológica do teólogo suíço sobre estes aspectos.

Primeiro elemento:

Ser cidadão/ã: dignidade e direitos” (SINNER, 2014, p. 38). A gratuidade da justificação e a atribuição da dignidade pelo Criador, sem condições, são ênfase aqui. A teologia luterana insiste na justificação pela graça mediante a fé extra nos, recebida como dádiva, que junto com uma teologia da criação focada no ser humano feito à imagem e semelhança de Deus fundamenta a cidadania. A pessoa é cidadã não por características ou méritos específicos, mas simplesmente por ser um ser humano, que tem sua dignidade intrínseca atribuída. Ninguém pode roubá-la dela; contudo, pode ser invisibilizada. Nesse caso, importa torná-la visível novamente e possibilitá-la como experiência concreta para a pessoa (SINNER, 2014, p. 39).

Segundo elemento:

Viver como cidadão/ã: confiança no contexto da desconfiança. Enquanto a confiança interpessoal e a institucional são indispensáveis para qualquer democracia, estas são ausentes ou restritas no Brasil num nível alarmante. As igrejas, ao mesmo tempo, estão entre as instituições consideradas mais confiáveis, o que lhes confere um alto potencial e responsabilidade. O fato de que sua fé significa confiança em Deus vai muito além de tal confiança necessária para o funcionamento da democracia, mas pode fortalecê-la e renová-la. Daí é possível arriscar-se novamente em confiar – e mostrar-se digna da confiança dos outros. Nesse sentido, é possível viver como cidadão/ã (SINNER, 2014, p. 39).

Terceiro elemento:

Perseverar como cidadão/ã: a ambiguidade da existência. […] enxergar-se e a outros como simul iusti et peccatores, justos in spe, na esperança, e pecador in re, na verdade, como diria Lutero. Antes de ser um pessimismo, como alguns pensaram, considero essa visão realista. Isso significa, também, que a confiança conforme exposto acima não pode ser uma confiança ingênua, mas cautelosa e informada. Para os cristãos, sempre há desconfiança diante dos seres humanos, tanto de si mesmos quanto de outros, de acordo com sua consciência do poder do pecado. De qualquer forma, sendo capaz de aguentar ambiguidade como parte intrínseca da vida, pode-se perseverar como cidadão/ã (SINNER, 2014, pp. 39-40).

Quarto elemento:

Servir como cidadão/ã: liberdade e serviço. A questão da motivação para a cidadania também merece destaque, uma motivação que não apenas considera os próprios direitos, nem apenas seus deveres. Tal motivação, pela qual os/as cristãos/ãs têm fundamentação teológica específica, nem cai numa autonomia mal-entendida como mero interesse individual, nem numa heteronomia como subserviência cega, mas procura o serviço livre na liberdade. Mediante a justificação pela fé, os cristãos se tornam criaturas novas, livres do cativeiro do mal, enquanto estão numa posição para servir, no meio do pecado e do mal. Em seu famoso tratado da liberdade cristã, Lutero mostra claramente que tal liberdade não é, simplesmente, uma liberdade de escolha, mas de serviço: ser, ao mesmo tempo, um ‘senhor libérrimo’ e ‘a todos sujeito’17, por vontade própria, não por coerção. Assim, cidadania pode ser descoberta como serviço. Diante da ênfase comum apenas em direitos e não deveres, tal atitude é, especialmente, importante (SINNER, 2014, p. 40).

Quinto elemento:

Ser um/a cidadão/ã cristão/ã: servindo a Deus sob dois regimentos. Alguns cristãos e igrejas têm a tendência de separar religião e política, igreja e Estado, de uma forma a serem dispensados, indevidamente, de suas responsabilidades em relação ao conjunto da sociedade. Outros tendem a confundir as esferas e procuram impor sua fé e igreja sobre os demais. Ambas as tendências precisam ser superadas pelo cidadão cristão que se enxerga como servindo a Deus sob dois regimentos. Para Lutero, numa época de cristandade, era claro que Deus reinaria por meio de ambos os regimentos. Esse não pode ser um ponto de partida hoje, em tempos de pluralismo religioso e num Estado secular, i.e., neutro em assuntos da religião. Contudo, a distinção de papéis ainda importa hoje para evitar uma intromissão indevida de ambos os lados” (SINNER, 2014, pp. 39-40). É “um desafio para qualquer cidadão cristão servir a Deus sob dois regimentos, o espiritual e o secular” (SINNER, 2014, p. 41).

De acordo com von Sinner, “os princípios esboçados aqui são, acredito, não restritos a cidadãos/ãs cristãos/ãs, pelo menos os primeiros quatro”. Sua “fundação teológica é, certamente, cristã e procura demonstrar como referências encontradas na Escritura e sua tradição […] podem, e, de fato, deveriam orientar o cidadão cristão em sua cidadania eclesial e secular”. Além disso, destaca o autor, “espero que o que foi dito aqui possa servir como desafio útil também àqueles que não partilham da fé cristã, mas procuram transformar a situação atual na busca da cidadania para todos, baseada na responsabilidade de todos” (SINNER, 2014, p. 42).

A seguir, pensamos brevemente a ética barthiana em diálogo com os elementos de Teologia da cidadania propostos por Sinner.

Ser cidadão: além do reconhecimento da dignidade do ser humano a partir de sua criação a imagem e semelhança de Deus e de sua justificação extra nos, entendemos que a escolha de Deus de tonar-se homem densifica a existência humana ao máximo. Pois Deus acolhe a humanidade em seu próprio ser, por meio de Jesus de Nazaré.

Viver como cidadão: A confiança é central em Barth. Ora, aqui vale ressaltar a precedência da fé em sua elaboração teológica e método. Novamente recorrendo à humanidade de Deus, entendemos que a fé de Jesus, sua disposição em favor do outro, preferencialmente do mais pobre, a ponto de indispor-se com os poderes religiosos e políticos sendo cruelmente assassinado em virtude disso, implica ao cidadão uma responsabilidade profunda com o outro no contexto da sociedade civil.

Perseverar como cidadão: Em O problema da ética na atualidade, Barth, em continuidade com Sinner, acena para a ambiguidade da existência humana a partir do conceito de pecado. Para Barth, é sempre necessário colocar-se sob o abalo da conversão, acrisolar-se. Isto é, reconhecer suas próprias limitações e as dos outros, superando assim determinadas instâncias de ingenuidade.

Servir como cidadão: Os termos liberdade e serviço são importantes para a Teologia barthiana. Para ele, a Teologia em si, ao surgir da comunidade cristã, também deve existir a serviço dela – dimensão eclesial do serviço. Por outro lado, ao entender a comunidade cristã dentro da comunidade civil, também entende que ela deve servir neste contexto – dimensão pública do serviço. O termo liberdade é visto, sempre, como liberdade para. Isto é, a liberdade, para Barth, é uma liberdade a serviço.

Ser um cidadão cristão: A perspectiva de servir a Deus sob dois regimentos é enriquecida com a ideia barthiana da comunidade cristã enquanto parte constituinte e a serviço da comunidade civil.

Ética barthiana e Teologia da Cidadania
Como referimos acima, destacaram-se de nossa pesquisa os seguintes pontos: fundamentação cristológica, humanidade de Deus, radicalidade da graça, cidadania e Cristo em nós, junto com os conceitos de ética quenótica e encarnação soteriológica. O que apresentamos abaixo são breves desenvolvimento destes elementos.

Esperamos que nossa aproximação seja útil tanto enquanto força inspiradora mística como quanto força inspiradora mítica. Isto é, que anime o cristão em sua espiritualidade e relacionamento místico com Deus, realizando-se no encontro com o outro, e que também anime o não cristão pela força motivadora de suas ideias (moral da história; poder motivacional da fábula, metáfora, mito), levando-o a buscar também este relacionamento horizontalmente transcendental com o próximo.

Fundamentação da ética na cristologia da humanidade de Deus18. Esta dimensão é fontal para nossa análise. A Teologia que desenvolvemos procura estar em consonância com a eclesialidade e evangelicalidade da fé, termos chave para Barth. A ética oriunda da fé em Jesus Cristo origina-se, por sua vez, na fé de Jesus de Nazaré, o rosto humano de Deus. Uma ética cristã fundada nesse Deus que se humaniza ontologicamente também deve buscar tal humanização. Aqui entra a dimensão da encarnação soteriológica e quenótica. O movimento de Deus em direção do ser humano é quenótico, enquanto se esvazia de si mesmo, mas também é de preenchimento, pois assume a humanidade em seu próprio ser. Essa doação total, quenótica e dialógica, é paradigmática para a práxis cristã nas esferas privada e pública. Deus encontra o ser humano e o ser humano encontra Deus em Jesus. A categoria do encontro, e também a da hospitalidade mútua, têm aqui lugar. Por isso que os temas encarnação soteriológica; ética quenótica; encontro; e hospitalidade carecem de ulterior desenvolvimento: Encarnação soteriológica. Deus torna-se humano, encarnando, efetivamente, na realidade do ser humano, salvando-o, primeiro da não existência, na criação, e da realidade de homo incurvatus in se, na ética quenótica de Jesus; Ética quenótica. O termo kenosis é aqui central. O esvaziamento de si em prol de um preenchimento e doações totais superam a realidade do homem encurvado sobre si mesmo. Esse movimento motiva a ética cristã, no entanto, também aqui se está ciente da ambiguidade da existência e da realidade do pecado; Encontro. No encontro ontológico de Deus com a humanidade em Jesus, o cristão é envolvido pela graça de Deus e motivo pelo Espírito a encontrar-se consigo mesmo, com o outro e com Deus; Hospitalidade. Assim como Deus hospeda a humanidade em seu próprio ser, a ética da graça é aquela nutrida por esta espiritualidade do serviço, ao hospedar ama-se o próximo diaconalmente.

A radicalidade da graça. A graça de Deus é a chave a partir da qual Barth entende a história de Deus com a humanidade. Essa graça é identificada com a pessoa de Jesus. Ao partir da leitura da radicalidade da graça é que os conceitos de misericórdia, compaixão e amor diaconal têm espaço. A ética da graça, portanto, é aquela que se coloca na esteira do Deus de Jesus que se apresenta compassiva e misericordiosamente em relacionamento radical com a humanidade.

O Cristo em nós. Essa perspectiva é justamente a confirmação da pessoa de Jesus como paradigma da ética. Esse conceito entende a pessoa de Jesus como pressuposto para a ética cristã, sua atuação, assim como as leituras teológicas de sua vida têm aqui espaço motivacional.

Cidadania. Apesar de o termo cidadania não existir assim como o entendemos em português no idioma alemão, percebemos que a elaboração teológica de Barth, principalmente no que diz respeito à presença do cristão na sociedade ou ainda da relação entre comunidade cristã e comunidade civil, reúne o arcabouço teórico concernente ao tema. De fato, a cidadania é ponto fundamental para uma atuação pertinente do cristão na esfera pública.

Considerações finais
Em nossa análise percebemos a atualidade e pertinência da Teologia de Karl Barth, especialmente de seu pensamento ético. Ora, em perspectiva latino-americana é fundamental que os mais abstratos conceitos teológicos encarnem de forma definitiva na realidade da vida. Em nossa leitura, privilegiando o conceito de humanidade de Deus e radicalidade da graça, entendemos que a Teologia barthiana aterrissa na vida cotidiana. Isto é verificável na preocupação ética de seus textos, sempre escritos em profundo diálogo com o contexto histórico-político que o autor vivia. O que revela a dimensão libertadora de sua obra, sobretudo de sua ética. Também sua identidade profundamente cristológica corrobora essa preocupação com os problemas do homem contemporâneo. A cidadania, por sua vez, ao ser pensada no horizonte teológico, recebe aqui importantes desdobramentos oriundos da ética barthiana.

Ainda gostaríamos de enfatizar o aspecto pneumatológico da Teologia barthiana. A graça acontece na história. Essa declaração pode ser compreendida teologicamente de duas formas: 1. Na ação de Deus, que é sempre graça; 2. Na ação humana, que pode ser mediação da graça de Deus. Assim como em Barth, entendemos necessária uma leitura trinitária da realidade. Dessa forma, o Deus que Cria, Reconcilia e Redime está sempre atuando na força do Espírito. Nesse sentido, a cidadania acontece historicamente como ação do Espírito Santo na sociedade. Na medida em que o ser humano age quenótica-amorosa-diaconalmente, a graça tem espaço.

Enfim, compreendemos que, a partir da Teologia de Karl Barth, é possível pensar uma ética pertinente ao contexto brasileiro atual. A cidadania, surge como espaço privilegiado da ação do Espírito Santo por meio da comunidade cristã. Nesse sentido, a ética barthiana torna-se vocação e invocação. O cristão é chamado a atuar concretamente na sociedade nutrido pela ética da graça, compreendendo-se sempre sob o Senhorio de Deus, invocando sua presença, e colocando-se humildemente a seu serviço no serviço ao próximo.

Notas
1 Aqui apresentamos brevemente resultados oriundos de nossa pesquisa de mestrado com retoques de redação e alguns desenvolvimentos posteriores em virtude da temática da cidadania que surge como horizonte de nosso trabalho de doutoramento. Dessa forma, desenvolvemos aqui, junto com o resumo de nossa dissertação, um ensaio de Teologia da Cidadania. Pesquisa realizada sob a orientação de Clodovis Boff, que contribui ativamente em todo processo, bem como na confecção desta versão sintética para publicação em forma de artigo. Para o texto da dissertação na íntegra: ZEFERINO, 2015.

2 Para esta parte, utilizamos livremente fragmentos do texto: ZEFERINO, 2014.

3 TIBURI, Marcia. Distorcer é poder. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/04/distorcer-e%5B1%5Dpoder/. Acesso em: 23.04.2015.

4 Inserimos o termo “praticamente” entendendo que há bons exemplos tanto no campo político quanto no campo religioso no que diz respeito à boa cidadania.

5 A bancada evangélica, ao apoiar o rearmamento da população, a diminuição da maioridade legal, entre outros aspectos, se coloca contra o pensamento cristão iluminado pelo amor e humanidade de Deus, pela radicalidade da graça, pela ética quenótica etc.

6 Para esta parte, nos embasamos em: Barth, 2006, pp. 19-46.

7 Para esta parte, nos embasamos em: Barth, 2006, pp. 85-107.

8 Para esta parte, nos embasamos em: Barth, 2006, pp. 127-139.

9 Para esta parte, nos embasamos em: Barth, 2006, pp. 217-235.

10 Para esta parte, nos embasamos em: Barth, 1983, pp. 509-551, em comparação com Barth, 1988, pp. 564- 612. Sobre este último, agradecemos ao Prof. Dr. Euler R. Westphal pelo gentil empréstimo de seu exemplar.

11 Para esta parte, nos embasamos em: Barth, 2006, pp. 19-46.

12 Desta aproximação à Teologia de Karl Barth no que tange à fundamentação da ética, percebemos que alguns termos se mostram fundamentais na empresa de sistematizar tal pensamento. São eles: fundamento; evangelho; graça; mandamento; lei; ética; Reino de Deus; Cristo em nós. Para acessar a íntegra desta sistematização, cf. Zeferino, 2015.

13 Ao qual se contrapõe o homo incurvatus in proprium, pois este é um conceito positivo referente ao legítimo amor de si.

14 Os temas “ética quenótica”, “homem quenótico” e “ação quenótico-amorosa” devem ser aprofundados em outra pesquisa.

15 Este ensaio não está presente no texto de nossa dissertação, mas aparece aqui como um desdobramento posterior de implicação práxica da Teologia barthiana e já como prefiguração do que intentamos em nossa pesquisa doutoral.

16 Utilizamos aqui material apresentado em 2015, não publicado, com o título: “Protestantismo, teologia pública e cidadania: impulsos para a ética cristã a partir de Rudolf von Sinner” no IV Simpósio do GT de História das Religiões e Religiosidades sediado pela Universidade da Região de Joinville, UNIVILLE.

17 Aqui também serve de inspiração Karl Barth, que trabalha a perspectiva de Jesus Cristo, o Senhor, enquanto Servo e também o Servo enquanto Senhor em sua Doutrina da Reconciliação.

18 Aqui vale citar a crítica já desenvolvida por Weber (1964), de que Barth dá pouca atenção à pesquisa acerca do Jesus histórico. De fato, uma boa análise do Jesus histórico pode enriquecer em muito o que Barth chama de humanidade de Deus.

Referências
BALTHASAR, H. The Theology of Karl Barth. San Francisco: Ignatius Press, 1992.

BARTH, K. A humanidade de Deus. In: _____. Dádiva e Louvor: ensaios teológicos de Karl Barth. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006, p. 389-405.

BARTH, K. Church Dogmatics: The Doctrine of the Word of God. v.I/1. Edinburgh: T & T Clark, 1975.

BARTH, K. Dádiva e Louvor: ensaios teológicos de Karl Barth. ALTMANN, W. (Org.). São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006.

BARTH, K. Ethics as a task of the Doctrine of God. In: _____. Church Dogmatics: The Doctrine of God (The Command of God). v. II.2. Edinburgh: T&T Clark, 1983, p. 509-551.

BARTH, K. Ethik als Aufgabe der Gotteslehre. In: _____. Die Kirchliche Dogmatik: Die Lehre von Gott (Gottes Gebot). v. II.2. Zürich: Theologischer Verlag Zürich, 1988, p. 564-612.

BARTH, K. Evangelho e Lei. In: _____. Dádiva e Louvor: ensaios teológicos de Karl Barth. ALTMANN, W. (Org.). São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006, p. 217-235.

BARTH, K. O cristão na sociedade. In: _____. Dádiva e Louvor: ensaios teológicos de Karl Barth. ALTMANN, W. (Org.). São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006, p. 19-46.

BARTH, K. O cristão na sociedade. In: _____. Dádiva e Louvor: ensaios teológicos de Karl Barth. ALTMANN, W. (Org.). São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006, p. 19-46.

BARTH, K. O primeiro mandamento como axioma teológico. In: _____. Dádiva e Louvor: ensaios teológicos de Karl Barth. ALTMANN, W. (Org.). São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006, p. 127-139.

BARTH, K. O problema da ética na atualidade. In: _____. Dádiva e Louvor: ensaios teológicos de Karl Barth. ALTMANN, W. (Org.). São Leopoldo: Sinodal/EST, 2006, p. 85-107.

BARTH. Introdução à Teologia Evangélica. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2007.

BAYER, O. Karl Barth. In: _____. Theologie. Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 1994, p. 310-388.

BOFF, C. O livro do sentido: crise e busca de sentido hoje (parte crítico-analítica). v.1. São Paulo: Paulus, 2014.

BOFF, C. Teoria do método teológico. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

BOFF, C. Teologia e espiritualidade: por uma teologia que ilumine a mente e inflame o coração. In: Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v.7, n. 1, p. 112-141, jan./abr. 2015.

BUSCH, E. Karl Barth: his life from letters and autobiographical texts. Eugene: Wipf & Stock, 2005.

BUSCH, E. The Great Passion: An introduction to Karl Barth’s Theology. Grand Rapids: Eerdmans, 2004.

COLLANGE, J. Barth, Karl. In: LACOSTE, J. Y. (Org.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, p. 242-247.

CORNU, D. Karl Barth: teólogo da liberdade. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1971.

FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015.

FRANCISCO. Misericordiae Vultus: O rosto da misericórdia. Bula de proclamação do jubileu extraordinário da misericórdia. São Paulo: Paulinas, 2015.

GIBELLINI, R. Teologia dialética. In: _____. A teologia do século XX. São Paulo: Edições Loyola, 2012, p. 13-31.

HUNSINGER, G. Karl Barth’s Chritology: its basic Chalcedonian character. In: The Cambridge Companion to Karl Barth.

WEBSTER, J (Org.). Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 127-142.

KÜNG, H. Great Christian Thinkers. New York: Continuum, 1994.

MONDIN, B. Karl Barth e a teologia da Palavra de Deus. In: _____. Os grandes teólogos do século vinte. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. 35-77.

RABENHORST, E. Ser e dever ser na teoria kelseniana do direito. In: Revista Direito e Liberdade, ESMARN, Mossoró, v.1, n.1, p. 119-130, jul/dez 2005.

SANTANA FILHO, M. Karl Barth e sua influência na teologia latino-americana: palavra, evento e práxis da libertação. São Paulo: ASTE/Associação Basileia, 2013.

SCHWÖBEL, C. Theology. In: The Cambridge Companion to Karl Barth. WEBSTER, J (Org.). Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 17-36.

SINNER, R. von. Cidadania no Brasil: Teoria, prática, teologia. In: Teologia pública no Brasil e na África do Sul: cidadania, interculturalidade e HIV/Aids. BUTTELLI, F. BRUYNS, SINNER, R. von. (Orgs.). São Leopoldo: Sinodal/EST, 2014, p. 13-46.

TIBURI, M. Distorcer é poder. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/04/distorcer-e-poder/. Acesso em: 23.04.2015.

WEBER, J. Karl Barth and the historical Jesus. In: Journal of Bible and Religion. v. 32. n. 4. Oct., 1964, p. 350-354.

WEBSTER, J. Introducing Barth. In: The Cambridge Companion to Karl Barth. _____. (Org.). Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 1-16;

ZEFERINO, J. A fundamentação da ética na teologia de Karl Barth: impulsos para a práxis cristã hoje. Orientador, Clodovis Boff. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2015.

ZEFERINO, J. Karl Barth e a Teologia da Libertação: direcionamentos para a ética cristã hoje. In: Vox Scrip. Rev. Teo. Int. São Bento do Sul/SC. Vol. XXII – n.1. – jan[1]jun 2014, p. 79-115.

ZEFERINO, J. Práticas religiosas e sua fundamentação ética a partir de Karl Barth. In: Anais do 27º Congresso Internacional da SOTER: espiritualidades e dinâmicas sociais: memória – prospectivas. SOTER (Org.). Belo Horizonte: SOTER, 2014, p. 1841- 1855.

ZEFERINO, J.; BOFF, C. A humanidade de Deus como fundamento para uma espiritualidade ética. In: Estudos Teológicos. São Leopoldo. v. 55. n. 1., p. 89-100. jan./jun. 2015.

 

Fonte: Academia.Edu


Gostou do artigo? Comente!
Nome:

E-Mail:

Comentário:



- Nenhum comentário no momento -

Desde 3 de Agosto de 2008