OS DOIS TIPOS DE JUSTIÇA, REINOS E REGIMES EM LUTERO: UMA DINÂMICA DE LEI E EVANGELHO A PARTIR DO ARTIGO V DA FÓRMULA DE CONCÓRDIA


Categoria: Martinho Lutero, Filosofia
Imagem: Leipziger Disputation zwischen Luther und Eck, Gemälde von Julius Hübner (1806-1882) (zerstört) - Simul Justus et Peccator Blogspot
Publicado: 14 de Julho de 2020, Terça Feira, 20h56

GEORGE CARLOS FELTEN[1]

– RESUMO
O presente artigo busca uma análise dos ensinamentos luteranos sobre os dois tipos de justiça (passiva e ativa), os dois reinos (do mundo e dos céus) e os dois regimes (o da mão direita e esquerda), partindo do binômio de lei e evangelho presente no artigo quinto da Fórmula de Concórdia. Deus reina nos dois reinos por meio dos dois regimes, que podem ser relacionados com os dois tipos de justiça devido ao fato de um ser pautado pela lei (justiça ativa – regime da mão esquerda) e o outro pelo evangelho (justiça passiva – regime da mão direita). A pesquisa também instiga futuras análises sobre a interface entre os dois regimes em ambientes cristãos como a escola confessional.

Palavras-chave: Lei e Evangelho; Dois tipos de justiça; Dois Reinos; Dois regimes; Lutero; Fórmula de Concórdia;

1 INTRODUÇÃO
A Reforma Luterana produziu preciosidades em quase todos os campos humanos existentes na época. Porém, sem dúvida, o mais importante se deu no campo da Teologia com a redescoberta do Evangelho, os avanços nas traduções bíblicas e na sua correta interpretação. E, quando falamos sobre interpretação das Sagradas Escrituras, há algo que não podemos tirar do horizonte: a distinção entre Lei e Evangelho.

Este trabalho visa analisar o artigo V da Fórmula de Concórdia, que justamente trata da controvérsia sobre este ensino. Também é um intento deste trabalho, perceber os usos de Lei e Evangelho na forma como o Deus triúno governa o mundo, i.e., nos dois reinos, por meio dos Regimes apontados por Lutero, a saber, o da direita e o da esquerda. Entretanto, para um melhor entendimento, outra dupla de palavrinhas deve ser tratada: a justiça passiva e ativa.

Entretanto, antes de entrar prontamente no assunto, cabe contextualizar o leitor sobre o que é a Fórmula de Concórdia, bem como o Livro de Concórdia como um todo, que serão a base para o desenvolvimento do trio de dualidades (Dois tipos de Justiça, dois reinos e dois regimes).

1.1 O Livro de Concórdia
Lançado no ano de 1580, durante as comemorações do cinquentenário da Confissão de Augsburgo, o Livro de Concórdia é o conjunto dos textos confessionais (Conteúdo Doutrinário) aceitos pela Igreja Luterana como a pura e correta interpretação bíblica. O objetivo do Livro de Concórdia, bem como da Fórmula de Concórdia é

servir como interpretação autentica da Confissão de Augsburgo e constituir, assim, uma síntese do ensino evangélico que é explicação verdadeira da Sagrada Escritura e se acha em continuidade com a fé da igreja através dos séculos.” (HENDRIX;GASSMANN, 2002, P. 41)

É por este motivo que a Igreja Luterana insiste na subscrição total dos pastores ao conteúdo doutrinário contido no Livro de Concórdia, já que, segundo Walther, “esse conteúdo está em total acordo com a Escritura e não se opõe à Escritura em qualquer ponto, seja esse ponto de maior ou menos importância” (WALTHER, 1998, P. 5).

1.2 A Fórmula de Concórdia
O período pós-morte de Lutero (1546) foi conturbado entre os luteranos: A derrota da Liga de Esmalcalde (1547), seguida do Ínterim de Augsburgo(1548) e do de Leipzig (1549)[2], por exemplo, foram momentos que geraram uma tensão muito grande entre os subscritores da Confissão de Augsburgo.

Melanchton, amigo íntimo de Lutero e tido como o seu sucessor na Igreja, acaba cedendo às investidas destes ínterins e aceita, novamente, rituais “de fora” que tinham sido abolidos anteriormente entre os luteranos.[3] Como era de se esperar, isto gerou, ou, acentuou diferenças entre os luteranos, que, summa summarum, se dividiram entre seguidores: os da interpretação de Lutero (Gnesioluteranos – liderados majoritariamente por Matias Flácio) e os da interpretação de Melanchton (Filipistas – liderados por Jorge Major).

As controvérsias intra-luteranas se intensificaram cada vez mais até que em 1577, o Eleitor Augusto da Saxônia deu o primeiro passo para o movimento que gerou, depois de três anos e mais de 8 mil assinaturas de teólogos, o Livro de Concórdia completo, contendo os Símbolos Ecumênicos, a Confissão de Augsburgo, a Apologia, Os Artigos de Esmalcalde, Tratado Sobre o Poder e o Primado do Papa, os Catecismos de Lutero e a Fórmula de Concórdia. Este momento foi considerado, inclusive, a passagem para o período denominado Ortodoxia Luterana.

2 O ARTIGO V – DA LEI E DO EVANGELHO
A estrutura da Fórmula de Concórdia é basicamente a de artigos que trazem o problema, analisam as possibilidades, afirmam o ensinamento correto e refutam o incorreto. A isso, chama-se Epítome, isto é, um resumo daquilo que se ensina. Depois disso, vem a “Declaração Sólida” que, segundo o próprio Livro de Concórdia, trata-se da

repetição e Explanação Geral, Pura, Correta e Final de alguns Artigos da Confissão de Augsburgo nos Quais, por algum Tempo, Houve Desacordo entre alguns Teólogos, Resolvido e Composto sob a Orientação da Palavra de Deus e do Conteúdo Sumário do nosso Ensino Cristão.” (LIVRO DE CONCÓRDIA,2006, P. 539)

A fim de compreender melhor a importância da discussão que virá a seguir, devemos ter em mente que o que está em jogo aqui é uma rede de ensinamentos bíblicos que estão intimamente conectados sob o aspecto de Lei e Evangelho no Livro de Concórdia. O assunto não é simples. Como bem definiu Walther, “distinguir corretamente a Lei e o Evangelho é a mais difícil e suprema arte que se apresenta aos cristãos em geral e, em especial, aos teólogos.” (WALTHER, 2005, P. 54) Assim, também, reza a Fórmula de Concórdia sobre este assunto:

Cremos, ensinamos e confessamos que a distinção entre lei e evangelho, como luz especialmente gloriosa, deve ser mantida com grande diligencia na igreja. Por ela (segundo a admoestação de S. Paulo), a palavra de Deus é corretamente dividida.” (LIVRO DE CONCÓRDIA, 2006, P. 515)

Esta correta distinção, na verdade, é a moldura, ou, a estruturação de toda a Escritura. Se não a manuseamos bem, artigos como o “da justificação”, “do arrependimento” e “da fé e das boas obras” (respectivamente IV, XII e XX na Confissão de Augsburgo), por exemplo, ficam seriamente abalados. Também se não levarmos os aspectos de Lei e Evangelho nas leituras bíblicas, facilmente encontraremos contradições em passagens essenciais para o correto entendimento da Escritura (Rm 3.28 e Tg 2.24, por exemplo).

Assim diz o próprio Lutero sobre esta distinção e sobre o que é próprio de cada um:

A diferença, então, entre Lei e Evangelho é esta: a Lei faz exigências de coisas que temos de fazer; insiste em que façamos determinadas obras; insiste em obras que devemos realizar a serviço de Deus e do nosso próximo. No Evangelho, no entanto, somos convidados à distribuição de ricas dádivas que devemos receber e aceitar: o amor, a misericórdia de Deus e a eterna salvação. (…) o Evangelho nos convida a aceitar o que é dado. A Lei, no entanto, nada dá, apenas tira e exige coisas de nós. (…) um ordena, o outro promete. O Evangelho dá e nos convida a aceitar; a Lei exige e diz ‘faça isso ou aquilo’” (LUTHER, 1992, p. 157)

2.1 A Controvérsia
De acordo com o texto presente na fórmula de Concórdia, a gênese do problema residia na compreensão da palavra “Evangelho”. Alguns dos teólogos não entendiam que a Escritura usa este termo sob dois significados diferentes, aquilo que denominamos o evangelho lato sensu e o stricto sensu.

Segundo os Filipistas, é próprio do evangelho não só a pregação da graça e do perdão dos pecados, mas também da repreensão e exortação contra a falta de fé, origem de todos os pecados (Rm 14.23). Para eles, não era função da lei pregar contra incredulidade, mas sim do evangelho. A lei apenas denunciava e punia os pecados, e não a sua origem.

Esta era uma reação a partir de outros ensinamentos que, por suposto, diziam a negativa disto, ou seja, que pregação do evangelho nada tinha a ver com repreensão ou exortação. Segundo esta visão, evangelho, no seu sentido próprio, deveria significar apenas a pregação da graça e do perdão dos pecados. Para estes, cabe unicamente à lei repreender. Ao evangelho, cabe unicamente acolher o pecador arrependido em amor.

2.2 Como a Fórmula de Concórdia Resolve?
A Fórmula de Concórdia mostra como a Escritura nem sempre se refere a “Evangelho” num sentido único. Ela define nos seguintes termos:

Todavia, já que a palavra ‘evangelho’ não é usada em apenas um sentido na Sagrada Escritura, (…) se entende (por) toda a doutrina de Cristo, (…), acertadamente se diz e se escreve que o evangelho é proclamação do arrependimento e do perdão de pecados. (…) Mas quando se contrasta a lei do evangelho (…) o evangelho não é pregação de arrependimento ou reprovação, mas propriamente, outra coisa não é senão proclamação de consolo e mensagem alegre que não censura nem aterroriza, porém conforta as consciências contra os terrores da lei, dirige-as apenas ao mérito de Cristo e as reergue com a amável pregação da graça e do favor de Deus, adquiridos através do mérito de Cristo.” (LIVRO DE CONCÓRDIA, 2006, p.515)

Assim, há momentos em que a Escritura fala sobre pregação de Evangelho no seu sentido lato, como em Marcos 1.1, 15. Todavia, há também momentos em que “Evangelho” está claramente em oposição à lei, como, por exemplo, em Rm 1.17.

É interessante notar também que, na Declaração Sólida, os escritores apontam para o duplo significado de “arrependimento”. Algumas vezes a Escritura se refere ao arrependimento como processo todo de conversão, que inclui o crer na obra de Jesus em lugar do pecador (como é o caso de Lucas 13.5 e 15.7). Outras vezes, a Escritura distingue o arrependimento do perdão dos pecados (como, por exemplo, em At 20.21 e Lc 24.47). Assim sendo, tanto a palavra “evangelho” quanto a palavra “arrependimento” devem ser encaradas sob estas duas possibilidades, o que intensifica a necessidade do interpretador da Bíblia observa o contexto em que o termo está sendo usado.

Nesta controvérsia, basicamente se destacam dois grupos diferentes. Aqui, entram em jogo dois extremos que são perigosos: os legalistas e os antinomistas.

Em resumo, legalistas são aqueles que misturam lei e evangelho de maneira que a lei esteja mais presente, transformando Cristo num novo legislador ou apenas em um exemplo[4]. As consequências são catastróficas, na medida em que, ou transforma os receptores da mensagem em desesperados pela sua condição, ou os converte em hipócritas por pensarem que cumprem plenamente a lei de Deus. Portanto, eliminar o evangelho da pregação é obra diabólica.

Também, o outro oposto não deixa de ser satânico na medida em que não fornece a preparação para o Evangelho. Os antinomistas são aqueles que não crêem que haja a necessidade de pregar a Lei, já que o cristão não está mais sob o julgo dela. Contra isso, já alertou Walther de que “se a Lei não preceder o Evangelho, este não terá efeito.” (WALTHER, 2005, p. 89)

Sendo assim, a Fórmula de Concórdia nega o ensinamento que mistura as duas coisas, seja para um lado ou para o outro. Entretanto, afirma que haja estes dois usos da palavra “evangelho” na Escritura, a saber, o estrito e o lato: quando se fala em sentido estrito, nada mais se está falando do que da graça, isto é, do favor imerecido de Deus, que nada cobra em troca, em contraste com a lei; Quando se fala em sentido lato, no entanto, temos o ensinamento completo de Jesus, que inclui repreensões e mandamentos.

Por isso, a pregação e a correta distinção entre lei e evangelho não se trata de preferência ou estilo retórico do pregador, já que a mensagem nunca é propriamente dele, mas sim de Deus que se revelou por meio deste ensinamento bíblico que deve ser encarado com diligência e seriedade. Neste sentido é que Walther diz que “esta arte [a de distinguir corretamente lei e evangelho] é ensinada exclusivamente pelo Espírito Santo, na escola da experiência.” (WALTHER, 2005, p.54)

3 DOS DOIS TIPOS DE JUSTIÇA
Tendo analisado isto, cabe avaliar o uso destas doutrinas divinas, distintas entre si. Entretanto, buscar uma análise completa dos usos de Lei e Evangelho na vida humana, além de inocência e certa presunção, seria um trabalho literalmente infindável. Assim, uma das principais consequências do uso próprio de Lei e Evangelho é a aplicação aos dois tipos de justiça.

3.1 A Justiça Passiva – Coram Deo.
Ao interpretar a passagem de Romanos 1.17, Lutero teve sua grande sacada: para ele ficou claro que a justiça da qual Deus falava por intermédio do apóstolo Paulo não era a justiça pela “qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos”, mas sim a justiça “pela qual o justo vive através da dádiva de Deus, ou seja, da fé”. Em outras palavras, “através do evangelho é revelada a justiça de Deus, isto é, a passiva, através da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: ‘o justo vive por fé’.”[5]

Como o ser humano é totalmente passivo quanto a este tipo de justiça, a função da lei não é a de exortação ao cumprimento de determinados mandamentos, mas sim o de destronar o ser humano, mostrando sua realidade frente à perfeição que Deus exige e que nós não conseguimos entregar.

Portanto, podemos dizer que o evangelho é o que faz o serviço de reconstruir, através dos meios da graça, o ser humano atingido pela lei. Na justiça passiva, então, o evangelho é que domina a ação salvífica, embora a lei seja necessária como bem aponta Walther[6].

Assim diz Lutero (2004, P. 242) sobre a justiça passiva:

A primeira espécie é a justiça alheia e infundida de fora. É a justiça mediante a qual Cristo é justo e justifica pela fé, (…). Esta justiça, portanto é concedida às pessoas no Batismo e em toda época de verdadeira penitência, de modo que o ser humano possa, com confiança, gloriar-se em Cristo e dizer: ‘É meu tudo o que é de Cristo: seu viver, o que fez, disse, que sofreu e morreu, exatamente como se tudo isso tivesse acontecido comigo, como se eu tivesse vivido, feito, dito, sofrido e morrido.

Aqui, portanto, não há ação do ser humano, já que ele é passivo quanto ao assunto de salvação. A justiça coram Deo acontece extra nos e é pro nobis, ou seja, é externa ao ser humano e em seu favor pelo batismo.

3.2 A Justiça Ativa – Coram Mundo.
A justiça ativa, como o nome e o contexto sugerem, é aquela justiça na qual o ser humano tem participação, embora, como bem enfatiza Lutero, nós não “a operamos sozinhos, mas […] cooperamos com aquela primeira e alheia.[7] Aqui é o lugar onde podemos falar com tranquilidade sobre boas obras frente ao nosso próximo.

Lutero parece traçar três linhas pelas quais a justiça ativa se guia: a mortificação da carne/crucificação das concupiscências em relação a si mesmo, o amor ao próximo e a humildade/temor a Deus.

Aqui, a Lei assume o papel de um guia, embora o evangelho ainda seja a fonte de qualquer ação do cristão, já que a pregação exclusiva da lei só pode criar fariseus hipócritas ou Judas desesperados[8].

É neste sentido que Arand (2017, P. 9) diz que

lei e evangelho, como obras de Deus, também desempenham um papel importante no nosso relacionamento com os outros. A lei fornece o padrão ao qual devemos nos conformar com nossos pensamentos, palavras e ações. Ela fornece orientação para o nosso comportamento e canaliza nossas energias em direções favoráveis a Deus. Mas é o evangelho que dá às criaturas humanas de Deus os novos desejos e impulsos espirituais que envolvem não só o acolhimento dos dons de Deus pela fé (coram Deo), mas também a vivência das nossas vidas por meio do amor ao próximo e do cuidado com a criação de Deus.[9]

Esta justiça, como bem apontou Lutero, não deve ser entendida como uma justiça original, no sentido de dar origem a si mesma. Ela é uma consequência da justiça passiva, assim como o fruto é consequência da planta e não existe, de fato, sem ela. Pois Lutero (2004, p. 243) fala assim da relação entre os dois tipos de justiça:

E essa justiça [passiva] é a primeira, é o fundamento, causa, origem de toda justiça própria ou de conduta. Porque de fato a mesma é concedida em lugar da justiça original, perdida em Adão, e realiza aquilo, sim, muito mais do que aquela justiça original teria conseguido realizar.

4 QUANTO AO USO DA LEI E DO EVANGELHO: OS DOIS REINOS E OS DOIS REGIMES
Para entendermos melhor o que significam os dois regimes, temos que levar em conta um dos principais ensinamentos resgatados por Lutero: os dois reinos, o reino dos céus e o reino do mundo[10], este ligado ao Regime da mão esquerda e aquele, ao da mão direita, como veremos a seguir.

Esta matéria não deve ser entendida como se Deus, o Rei, reinasse em um destes reinos (o dos céus) e o diabo e o ser humano reinassem no outro (o do mundo). No entanto, como bem salienta Hendrix; Gassmann (2002, p.138), “Lutero (…) não falou apenas de dois reinos, mas também de dois governos: o governo de Cristo ou do evangelho e o poder temporal ou da lei. Deus reina através dos dois governos sobre ambos os reinos.

Lutero usa o termo alemão Reich, rapidamente traduzido por reino. Porém, este signo linguístico pode causar a impressão de se tratar de um reino físico, com fronteiras e todas as demais características. Entretanto, esta não parece ser a melhor definição em Lutero.

Segundo Johannes Heckel (Apud. ARAND, 2017. P. 10), “a palavra ‘reino’ em Lutero precisa ser vista de uma forma mais pessoal, como um grupo ou um corpo de pessoas que são comandadas pela cabeça deste corpo[11]. Temos assim um conceito dinâmico e não estático de reino. O reino está onde o Rei está governando, seja em graça e misericórdia ou em ira e juízo.

Entram no reino do mundo, as instituições governadas pela lei civil que, embora sejam governadas em última análise por Deus, podem ser adulteradas por estarem nas mãos de seres humanos caídos e falhos. Aqui vale ressaltar a orientação luterana de que o “abuso não se torne o uso[12]. No reino dos céus, em contraste, Deus reina pelo evangelho. O Espírito Santo, através dos seus meios, rege por aqui.

É neste sentido que bem nos lembra Scholz (2007, P. 8): “à luz do esquema dos dois reinos, a igreja entra tanto no reino da mão direita de Deus (evangelho) quanto no reino da mão esquerda (lei).

Porém, lembra Hendrix (2002, P. 142) que

segundo as confissões, os cristãos não se encontram divididos entre duas lealdades, tampouco pertencem por igual a dois senhores. Como Deus governa também o reino temporal, os cristãos podem legitimamente fazer uso de ordenanças civis, e deles se espera que obedeçam às leis existentes, a menos que, é claro, tal obediência os leve a pecar.

A partir das duas espécies de justiça apontadas por Lutero, e dos dois reinos, nos quais Lei e Evangelho têm suas funções bem estipuladas, podemos perceber dois meios pelos quais Deus, o Rei, governa. A palavra usada por Lutero para denominar “reino”, porém, como já vimos, deve ser bem entendida como coisa dinâmica.

O Rei governa seu reino por meio de suas mãos. A isso, denominamos “os dois regimes”, a saber, o da mão direita e o da mão esquerda.

4.1 O Regime da Mão Direita
Assim diz Warth sobre este regime:

No regime da direita o Reino de Deus é perfeito. Esta é a área de certeza, de conforto, de paz, em que Deus age na sua graça. Pela fé em Cristo, através do Evangelho, somos aceitos como filhos amados de Deus, santos pelo perdão, e herdeiros da vida eterna. É a mensagem central da Bíblia, anunciada pela Igreja. A revelação plena será na outra dimensão da eternidade.” (WARTH, 2000, p. 27)

Também conhecido como regime espiritual, no regime da mão direita impera o Evangelho. O primeiro paralelo a ser feito é com a justiça passiva: assim como lá, Deus age aqui por meio do Evangelho, governando o mundo a partir da mudança de mentalidade (μετάνοια). No regime da mão direita a Lei é aio e não protagonista, já que apenas prepara o caminho e conduz para a real mudança.

Não há cobranças, não há tarefas, não há retribuição, não há meritocracia e não há deveres para o pecador no reino da mão direita. Ele é totalmente passivo no processo. Deus é que age pelo Evangelho no seu stricto sensu. No regime da mão direita, impera a graça (Êx 14.13-14; Sl 124; Jo 11.25-26; Ef 2.8-9; Ap 21.6; etc.).

4.2 O Regime da Mão Esquerda
Sobre o regime da mão esquerda, Warth afirma:

No regime da esquerda o Reino de Deus é um constante desafio, porque nos coloca numa área de risco em que a perfeição é uma tarefa. Trata-se da área da vida cristã no seu dia a dia, inclusive na educação e na pesquisa, na ciência humana que a universidade busca, promove e respeita. A maior perfeição que o cristão atinge é que ele recebeu de Deus um ‘espírito voluntário’ (Salmo 51.12) para não errar, mas para ser perfeito em tudo que empreender. Sempre viverá do perdão em Cristo. Assim os dois regimes se interrelacionam no Reino de Deus.” (WARTH, 2000, p. 27)

Também nomeado como o regime secular, o regime da esquerda é aquele pelo qual Deus governa com a espada, imperando, portanto, o uso da lei. Neste regime, podemos encaixar o Estado, com todos os seus mecanismos como os poderes legislativo, executivo e judiciário, os projetos sociais, escolas e demais instituições.

A exemplo do tópico anterior, podemos fazer o paralelo entre o regime da mão esquerda e a justiça ativa, já apreciada anteriormente. No regime da mão esquerda, sendo majoritariamente regido pela lei, há meritocracia, retribuição, tarefas, deveres, prazos, prestação de contas, cobranças e coisas do tipo. No regime da mão esquerda, impera a lei (Êx 20.12; Mt 22.15-22; Rm 13), e Deus governa por este meio também.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deus não apenas se revelou pela Escritura sob o aspecto de Lei e Evangelho, mas também governa sob estes dois aspectos presentes no regime da mão direita (evangelho) e no da mão esquerda (lei). E como bem lembra Arand (2017, P. 10), “embora os crentes batizados não estejam mais sob o domínio de Satanás, eles, no entanto, vivem sob o governo das duas mãos de Deus, tanto a lei como o evangelho.[13]

Há ambientes em que, num primeiro momento, estes dois regimes diametralmente opostos estão simultaneamente presentes. Na escola cristã, por exemplo, acontece de um pastor capelão ter que atender, na sala de capelania, um aluno que sofre por alguma angústia espiritual, e ter que, no dia seguinte, cobrar este mesmo aluno, por um trabalho não entregue, punindo-o, quando necessário, na sala de aula. Também na igreja algo similar acontece: ao passo em que se busca a pregação do evangelho genuíno e puro de Deus, também se exigem estatística, horário e comprometimento, ligados claramente à lei.

A pergunta que este trabalho deixa para futuras pesquisas é: como é possível lidar com estas duas faces do governo de Deus num mesmo espaço? Qual o limite e quais as influências que o regime da mão direita pode ter sobre o da mão esquerda e vice-versa?

Não sabemos, de fato, se estas perguntas podem ser respondidas de forma categórica e estática, já que o mundo criado por Deus, como vimos, é dinâmico. Entretanto, parece necessária a contemplação e reflexão deste tema para um trabalho melhor desenvolvido nos ambientes nos quais há este conflito.

Esperamos, assim, que esta pesquisa possa ser uma das bases para o aprofundamento da questão que, de fato, é imperativa para quem quer se preparar bem para o ministério em geral, ou mais especificamente, com capelania escolar, por exemplo.

6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAND, Charles P. The Distinction between Law and Gospel in Martin Luther’s Theological Development. In: Oxford Research Encyclopedia of Religion. Online Publication Date: Mar 2017. (Link: https://t.co/lB8HOFmY0Z – acesso em 21/06/2017)

HENDRIX, Scott; GASSMANN, Günther. As Confissões Luteranas: Introdução. Trad.: Enio Mueller. São Leopoldo: Sinodal, 2002.

Livro de Concórdia. Editado por Darci Drehmer. Trad.: Arnaldo Schüler. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: ULBRA; Porto Alegre: Concórdia, 2006.

LUTERO, Martinho. Prefácio ao primeiro volume da edição completa dos escritos latinos [1545]. In: Pelo Evangelho de Cristo: obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma. Trad.: Walter O. Schlupp. Porto Alegre: Editora Concórdia; São Leopoldo: Editora Sinodal. 1984.

LUTERO, Martinho. Sermão sobre as Duas Espécies de Justiça [1519]. In: Obras Selecionadas, v.1. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia Editora, 2004.

LUTERO, Martinho. Instrução dos Visitadores aos Párocos. In: Obras Selecionadas, v.7. São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia Editora, 2000.

LUTHER, Martin. (1532). The distinction between the Law and the Gospel: a sermon by Martin Luther. Concordia Journal, St. Louis, Pp.153-163, April, 1992.

SCHOLZ, Vilson. A igreja e o pastor à luz do primeiro uso da Lei. In: Igreja Luterana, Volume 66 – Junho e Novembro de 2007 – Números 1 e 2. P. 8.

WALTHER, Carl F. W. A correta distinção entre Lei e Evangelho. Trad.: Marie L. Heimann. – Porto Alegre: Concórdia, 2005.

WALTHER, C. F. W. Confissões luteranas: o que significam hoje? In: VoxConcordiana – suplemento teológico. São Paulo, Ano 13, nº 2, pp.5-18, 1998.

WARTH, Martim Carlos. Fundamentos da Práxis Pedagógica na Universidade Confessional. In: Igreja Luterana: Revista Semestral de Teologia. São Leopoldo, RS: Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia, v.59, n. 1, junho 2000.


– NOTAS
1. Bacharel em Teologia pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA); Estudante do Programa de Pós-Graduação em Teologia e Ministério Pastoral pela mesma instituição; Seminarista da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (Seminário Concórdia, São Leopoldo – RS); Estudante do Programa de Licenciatura em Letras (Português-Inglês) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Autor do Blog e da Página no Facebook “Sapientia Nulla”.

2. Foram tentativas do império de Carlos V de dominar, ou, exercer poder sob o ensinamento dos luteranos. De certa forma, estes Ínterins também não foram do agrado de muitos líderes católicos, pois também ficariam limitados ao poder do imperador.

3. Na verdade, já se podem perceber indícios das intenções de Melanchton na sua subscrição nos Artigos de Esmalcalde, do Dr. Martinho Lutero (1537). Assim escreve Melanchton “Eu, Felipe Melanchthon, também considero os artigos acima corretos e cristãos. Quanto ao papa, entretanto, penso que, caso se disponha a admitir o evangelho, também nós lhe podemos conceder, por amor da paz e da unidade geral dos cristãos que também estão sob ele e possam estar sob ele, futuramente, a superioridade sobre os bispos que ele possui jure humano.” Livro de Concórdia. Editado por Darci Drehmer. Trad.: Arnaldo Schüler. São Leopoldo: Sinodal; Canoas: ULBRA; Porto Alegre: Concórdia, 2006. P. 340.

4. Para uma análise contemporânea deste assunto, ver PLESS, John T. Handling the World of Truth: Law and Gospel in the church today. Saint Louis: Concordia Publishing House, 2004. Pp. 27-34: “Making Christ a New Moses.”

5. Lutero, 1984. P. 30.

6. Ver tópico “2.2 Como a fórmula de Concórdia resolve?”, parágrafo 6.

7. Lutero, 2004. P. 243.

8. Epítome – V Da lei e do evangelho, parágrafo 7, Fórmula de Concórdia, In: Livro de Concórdia, P. 515.

9. “Law and gospel as the works of God also play a significant role in our relationship with others. The law provides the standard to which we are to conform in our thoughts, words, and deeds. It provides direction for our behavior and channels our energies in God-pleasing directions. But it is the gospel that gives God‟s human creatures the new spiritual desires and impulses that involve not only the reception of God‟s gifts by faith (coram Deo), but also the living out of our lives by love toward neighbor and care toward God`s creation.

10. Arand, 2017. P. 10.

11. “Kingdom language in Luther needs to be seen in the more personalistic language of a group or body of people who are ruled by the head of that body.

12. “Alguns, porém, dizem: Como pode a autoridade proceder de Deus, visto que muitos chegaram ao poder por meio da violência injusta? (…) Resposta: Quando Paulo afirma em Romanos 13[.1] que a autoridade procede de Deus, isso não deve ser entendido como se a autoridade fosse um castigo de Deus, (…) e, sim, no sentido que a autoridade é uma ordenação e um negócio especial de Deus, do mesmo modo como o Sol é criado por Deus, ou como o estado matrimonial é instituído por Deus. E assim como uma pessoa perversa, que toma uma esposa com intenções perversas, abusa do matrimônio, também um tirano abusa da ordem de Deus, como Júlio e Nero. Não obstante, a ordem, através da qual é mantida a justiça e a paz, é criação divina, embora a pessoa que abusa dessa ordem cometa injustiça.” (LUTERO, 2000. P. 279)

13. Although baptized believers are no longer under the rule of Satan, they nevertheless live under the governance of God`s two hands, both law and gospel.

 

Fonte: Academia.edu


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