Categoria: Conversas à Mesa [Tischreden]
Imagem: Martinho Lutero (no centro) - eBiografia
Publicado: 21 de Fevereiro de 2023, Terça Feira, 17h22
DCCLXII.
As alegorias espirituais são raramente louváveis quando aplicadas a fé; mas quando são retiradas da vida e do diálogo, passam a ser perigosas pervertendo a doutrina da fé quando os homens a utilizam em exagero. As alegorias são ornamentos finos, mas não são usados como provas. Não devemos fazer uso delas levianamente, a menos que a causa principal seja primeiro suficientemente provada através de argumentos fortes com fundamentos, assim como São Paulo no quarto capítulo de Gálatas. O corpo é a lógica, mas a alegoria é a retórica; é a retórica que adorna e amplia algo com as palavras, e ela não tem valor sem lógica que compreende uma questão de forma clara e breve. Uma retórica sem fundamento são apenas palavras aparadas ou esculpidas.
DCCLXIII.
Uma alegoria é quando algo é explicado e compreendido de uma forma que vai além das palavras expressas. De todas as línguas, nenhuma é tão rica em alegorias quanto o hebraico. A língua alemã é cheia de metáforas quando dizemos: “Ele pendura o relógio de acordo com o vento”, ou “Katharina von Bora é a estrela da manhã de Wittenberg”, e assim por diante. Tais metáforas são apenas palavras figurativas. Já alegorias são como Cristo ordena que alguém lave os pés do próximo, de batizar, do sábado, etc.
Não podemos compreender e defender as alegorias como elas se apresentam aparentemente; como o que Daniel diz a respeito da besta com dez chifres; isso deve ser entendido como uma representação do Império Romano. Da mesma maneira é a circuncisão no Novo Testamento que é uma alegoria, mas no Antigo Testamento a circuncisão não se apresenta como uma alegoria. O Novo Testamento molda as alegorias a partir do Antigo Testamento, como as duas nações que surgiram a partir dos filhos de Abraão.
DCCLXIV.
A lenda de São Jorge tem um belo significado espiritual no que diz respeito ao governo temporal e à política. A virgem representa a política; ela é perseguida pelo dragão, o diabo, que deseja devorá-la; ele a atormenta com fome e escassez, depois com pestilência, em seguida com guerras, até que um bom príncipe ou potentado surge para libertá-la e a endireita novamente.
DCCLXV.
Brincar com alegorias na doutrina cristã é algo perigoso. De vez em quando as palavras se apresentam bem e suavemente, mas não há nenhum propósito. Elas se comparam bem com esses pregadores que não possuem muito estudo não sabendo expor as histórias e os textos corretamente, cujo couro é muito curto e não estica. Esses pregadores recorrem as alegorias nas quais nada é ensinado na certeza sobre a qual um homem possa construir; então devemos nos acostumar a permanecer no texto claro e puro. Philip Melancthon perguntou a Lutero qual era a alegoria e o seu significado oculto de que a águia durante o tempo que choca o ovo não sai para caçar, mantendo apenas um filhote enquanto que os outros são empurrados para fora do ninho. E também sobre os corvos que não alimentam seus filhotes e os abandonam quando ainda estão sem penas? Lutero respondeu: “A águia representa um monarca que, sozinho, possui o seu governo e não permitirá que ninguém além de si mesmo seja igual a ele. Já os corvos são os porcos e deuses de corações duros e pesados desde o ventre da mãe, isto é, os papistas.”
DCCLXVI.
A alegoria de um sofista é sempre ferrada; ela se agacha e se curva como uma cobra que nunca fica reta, quer ela se movimente, rasteje ou fique parada; somente quando ela está morta que fica reta o suficiente.
DCCLXVII.
Quando monge, eu era muito versado nessas questões de significados e alegorias espirituais. Era toda a arte que eu carregava; mas depois que li a epístola aos Romanos, alcancei um pouco o conhecimento de Cristo e vi que todas essas alegorias eram vãs, exceto as de Cristo. Antes disso, eu transformava tudo em alegoria até mesmo as necessidades mais insignificantes de nossa natureza. Mas depois refleti sobre questões históricas. E vi o quão difícil foi para Gideão lutar contra o inimigo da maneira mostrada nas Escrituras; não havia ali nenhuma alegoria ou significado espiritual; o Espírito Santo simplesmente diz que é somente a fé com trezentos homens que derrotou uma multidão imensa de inimigos. São Jerônimo e Orígenes, que Deus os perdoe, foram a causa de tal estima pelas alegorias. Mas Orígenes, em seu completo, não vale uma palavra de Cristo. Então eu me livrei de todas essas loucuras, sendo agora a minha melhor arte de apresentar as Escrituras no sentido mais simples possível; nela há vida, força e doutrina; todos os outros métodos não passam de tolices, então deixe-os brilhar como quiserem. Foi assim que Munzer tropeçou com o terceiro capítulo de João: “A menos que alguém nasça de novo da água”, e disse: Água significa tribulação, mas Santo Agostinho os deu a verdadeira regra, que figuras e alegorias não provam nada.
DCCLXVIII.
Poucas lendas são puras; as lendas dos mártires são menos corrompidas que provaram sua fé pelo testemunho de seu sangue. As lendas dos eremitas que habitam na solidão são abomináveis, cheias de falsos milagres e tolices tocantes à moderação, castidade e alimentação. Tenho em consideração os santos cujas vidas não foram marcadas por nenhuma circunstância particular que, de fato, viveram como as outras pessoas que não procuraram se destacar.
DCCLXIX.
Na lenda da Virgem Tecla que, segundo dizem, foi batizada por São Paulo, diz: “ela despertou nele o desejo carnal.” Ah! Amado Paulo, você teve outro tipo de espinho em sua carne do que o desejo carnal. Os frades que vivem à vontade e alegria sonham de acordo com suas cogitações licenciosas de que São Paulo foi atormentado pelas mesmas tribulações que eles.
DCCLXX.
A lenda de São Cristóvão não é história, mas uma ficção composta pelos gregos que é um povo sábio, culto e imaginativo, para mostrar como deve ser a vida de um verdadeiro cristão. Eles o imaginam como um homem grande, alto e forte que carregava o menino Jesus nos ombros como o próprio nome indica, Cristóvão. Mas a criança era pesada de tal modo que quem a carregasse era obrigado a se curvar sob o fardo. Ele atravessa um mar furioso e turbulento, isto é, o mundo, cujas ondas o atingem, a saber, os tiranos e facções, além do diabo que, de bom grado, o privaria de alma e vida; então ele se apoia em uma grande árvore como se fosse um cajado; isto é, a Palavra de Deus. Do outro lado do mar estava um velho usando um lampião que queima uma vela; ou seja são os escritos dos profetas. Cristóvão dirige seus passos até a praia e chega em segurança, ou seja, à vida eterna. Ao seu lado havia uma cesta com peixes e pães; isso significa que Deus alimentará aqui na terra os corpos dos cristãos em meio as perseguições, cruzes e infortúnios para que sejam suportados, e não os deixará morrer de fome como o mundo gostaria. É um belo poema cristão assim como a lenda de São Jorge; Jorge, no grego, significa aquele que constrói edifícios com justiça e regularidade, e que resiste e afugenta os inimigos que os assaltam e os danificam.
DCCLXXI.
Essa é uma das próprias pragas do diabo de que não temos boas lendas puras e verdadeiras dos santos. As que temos estão tão cheias de mentiras que, sem trabalho pesado, não dá para corrigi-las. A lenda de Santa Catarina é contrária a toda a história romana; pois Maxêncio se afogou no Tibre em Roma e nunca foi pra Alexandria, mas Maximiano estivera lá conforme relata Eusébio, e após a época de Júlio Cesar não havia rei no Egito. Aquele que perturbou os cristãos com tantas mentiras foi, sem dúvida, um miserável desesperado que certamente mergulhou nas profundezas do inferno. Acreditávamos em tais monstruosidades no papado e não chegamos a entender. Então vamos dar graças a Deus porque estamos livres deles e dessas coisas tão ímpias.
Fonte: CRTA - Center for Reformed Theology and Apologetics - reformed.org
Tradução: Marcell de Oliveira