CONVERSAS À MESA (TISCHREDEN) PT. 4/47 - DAS OBRAS DE DEUS


Categoria: Conversas à Mesa [Tischreden]
Imagem: Martinho Lutero (no centro) - eBiografia
Publicado: 19 de Janeiro de 2017, Quinta Feira, 19h26

LXIII.
Todas as obras de Deus são inescrutáveis e inexplicáveis. Nenhum sentido humano pode descobri-las. Somente a fé é que pode apreendê-las, sem o poder ou auxílio humanos. Nenhuma criatura mortal pode compreender Deus em sua majestade. Por isso, ele veio a nós de maneira mais simples, foi feito homem, não é mesmo? Pecado, morte e fraqueza. Em todas as coisas, nas menores criaturas e nos seus membros, brilham claramente o poder supremo e as obras maravilhosas de Deus. Pois qual é o homem, por mais poderoso, sábio e santo, que pode fazer de um figo uma figueira ou um outro figo, ou de um grão de cereja uma cereja ou um pé de cerejas? Qual é o homem que sabe como Deus cria e preserva todas as coisas e faz com que se desenvolvam?

Nem mesmo podemos entender como o olho vê, ou como são simplesmente pronunciadas palavras inteligíveis quando a língua se move e se mexe na boca, tudo coisas naturais, diariamente vistas e praticadas. Como é que, então, seríamos capazes de compreender ou entender os secretos conselhos da majestade de Deus, perscrutá-los com nossos sentidos, razão e entendimento humanos? Deveríamos, então, admirar a nossa própria sabedoria? Eu, de minha parte, me considero um tolo e me mantenho cativo.

LXIV.
No princípio, Deus fez Adão com um pouco de argila, e Eva da costela de Adão. Ele os abençoou e disse: “Frutificai e multiplicai-vos” – palavras que ficarão e permanecerão sendo poderosas até o fim do mundo. Embora muitas pessoas morram diariamente, outras, porém, sempre são geradas, conforme diz Davi no Salmo: “Tu permites aos homens que morram e passem como uma sombra, dizes, tornai-vos novamente, vós filhos dos homens.” Essas e outras coisas que ele cria diariamente, o mundo pagão cego não vê nem reconhece como maravilhas de Deus, mas pensa que tudo é feito pela sorte ou o acaso. Os crentes, porém, sempre que erguem os seus olhos contemplando os céus e a terra, o ar e a água, vêem e reconhecem todas as maravilhas de Deus e, cheios de admiração e prazer, louvam ao Criador, sabendo que o Senhor se agrada disso.

LXV.
Para os filhos cegos do mundo, os artigos de fé são muito elevados. Que três Pessoas são um único Deus, que o verdadeiro Filho de Deus foi feito homem, que há duas naturezas em Cristo, divina e humana, etc, tudo isso os ofende como sendo ficção e fábula. Pois assim como é inverossímil dizer que um homem e uma pedra são uma só pessoa, assim também é inverossímil para o sentido e a razão humanos [dizer] que Deus foi feito homem, ou que as naturezas divina e humana unidas, em Cristo, são uma só pessoa. São Paulo demonstrou a sua compreensão desse assunto, mesmo não apreendendo tudo, em Colossenses: “Em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da Divindade” [Cl 2.9]. Igualmente: “Nele estão ocultos todo o tesouro da sabedoria e do conhecimento” [Cl 2.3].

LXVI.
Se alguém perguntar por que Deus permite que as pessoas sejam endurecidas e caiam na perdição eterna, deixe-o perguntar ainda: Por que Deus não poupou o seu único Filho, mas o entregou por todos nós, para morrer a ignominiosa morte de cruz, o sinal mais certo do seu amor para conosco, pobre povo, do que da sua ira contra nós. Perguntas desse tipo não podem ser melhor solucionadas e respondidas do que por questões inversas. Realmente, o malicioso diabo enganou e seduziu Adão. Contudo, devemos considerar que, logo após a queda, Adão recebeu a promessa da semente da mulher que esmagaria a cabeça da serpente e abençoaria a todas as pessoas sobre a terra. Portanto, precisamos reconhecer que a bondade e a misericórdia do Pai, que enviou o seu Filho para ser nosso Salvador, é imensurávelmente grande para o mundo mau e ingovernável. Deixa, por isso, ó homem, que a sua boa vontade te seja aceitável, e não especula com tuas dúvidas diabólicas, teus por quês e para quês tocando as palavras e obras de Deus. Pois Deus, Criador de todas as criaturas, e que ordena todas as coisas segundo a sua inescrutável vontade e sabedoria, não se agrada desses questionamentos.

Por que Deus, por vezes, segundo os seus divinos conselhos, maravilhosamente sábios, inalcançáveis para a razão e entendimento humanos, tem misericórdia desse homem e endurece aquele, isso não nos convém inquirir. Deveríamos saber, indubitavelmente, que ele não faz nada sem uma certa causa e conselho. Realmente, se Deus tivesse que prestar contas de cada uma de suas obras e ações, ele seria apenas um Deus pobre e simples.

Nosso Salvador disse a Pedro: “O que eu faço não o sabes agora; compreendê-lo-ás depois.” [Jo 13.7]. Depois, então, saberemos quão graciosamente nos atingiu o nosso Deus e Pai. Entrementes, embora venham sobre nós desgraça, miséria e sofrimento, devemos ter essa confiança segura nele, que ele não nos afligirá para serem destruídos nem o nosso corpo, nem a nossa alma, mas lidará conosco de forma tal que todas as coisas, sejam boas ou más, resultarão em nosso benefício.

LXVII.
Se alguém perguntar onde estava Deus antes da criação dos céus, temos a resposta de S. Agostinho. Segundo ele, Deus estava nele mesmo. Quando mais alguém me pergunta a mesma coisa, eu digo-lhe o seguinte: Deus estava preparando o inferno para tais espíritos tolos, presunçosos, alvoroçados e inquisidores como você. Após haver criado todas as coisas, ele estava em todo lugar e, ao mesmo tempo, em nenhum lugar, pois não posso apreendê-lo sem a Palavra. Não obstante, ele será encontrado ali aonde ele se comprometeu estar. Os judeus o encontravam em Jerusalém mediante o trono da graça (Êxodo 25). Nós o encontramos na Palavra e na fé, no batismo e nos sacramentos. Em sua majestade, porém, Deus não pode ser achado em lugar algum.

Consistia-se numa graça especial quando Deus se prendia a si mesmo num certo lugar onde seria encontrado, notadamente, naquele lugar onde estava o tabernáculo, para o qual eles se voltavam e oravam, primeiro em Silo e Siquém, depois em Gibeon e, finalmente, no templo de Jerusalém.

Os gregos e pagãos imitavam essa prática em todas as épocas, e edificavam templos aos seus ídolos em certos locais. Em Éfeso, para Diana, em Delfos, para Apolo, e assim por diante. Pois, ali onde Deus edifica uma igreja, lá o diabo também edificaria uma capela. Eles imitavam os judeus também nisso, a saber, assim como o Santo Lugar era escuro, assim também da mesma maneira eles deixavam escuros os seus santuários onde o diabo respondia. Logo, o diabo é sempre um imitador de Deus.

LXVIII.
Deus é justo, fiel e verdadeiro. Ele revelou isso em suas promessas de perdão dos pecados e resgate da morte eterna por intermédio de Cristo. Mas, também, pelo fato dele nos haver deixado nas Escrituras muitos exemplos graciosos e confortadores de santos importantes e consagrados, imensamente iluminados e favorecidos por Deus que, apesar disso tudo, caíram em grandes e tristes pecados.

Adão, por sua desobediência, trouxe hereditariamente o pecado e a morte sobre toda a sua posteridade. Arão trouxe um grande pecado sobre Israel, a tal ponto que Deus teria destruído o povo. Davi também caiu de uma forma muito triste. Jó e Jeremias amaldiçoaram o dia em que nasceram. Jonas ficou dolorosamente contrariado porque Nínive não foi destruída. Pedro negou, Paulo perseguiu a Cristo.

As Sagradas Escrituras nos relatam esses e inúmeros outros exemplos semelhantes não a fim de que vivamos seguros e pequenos, descansando sob a graça de Deus. Esses exemplos são para que ao sentirmos a sua ira, “que certamente vem após os pecados”, não caiamos em desespero. Antes, ao nos lembrarmos desses exemplos confortadores cheguemos à conclusão que se Deus foi misericordioso para com eles, também será, do mesmo modo, gracioso para conosco por causa da sua bondade e misericórdia reveladas em Cristo e não nos imputará os nossos pecados.

Podemos observar também por meio desses exemplos de grandes homens caindo tão gravemente, quão mau, astuto e invejoso espírito é o diabo. Ele é um verdadeiro príncipe e bem mundano.

Essas pessoas elevadas, divinas, que cometeram pecados tão pesados caíram segundo o conselho e permissão de Deus, a fim de que não se orgulhassem ou gabassem de seus dons e qualidades, porém, temessem. Pois, quando Davi assassinou Urias, tomou para si a mulher dele e, com isso, deu motivo para que os inimigos blasfemassem a Deus, ele não poderia se gabar de haver governado bem, ou demonstrado bondade. Antes, ele disse: “Pequei contra o Senhor” [2 Samuel 12.13], e com lágrimas clamou por misericórdia. Jó, da mesma forma, reconhecidamente diz: “Eu falei como um tolo, e por isso me culpo e me arrependo” [cf.: Jó 42.3-6].

LXIX.
Quando Deus contempla alguma grande obra, ele a começa pela mão de alguma criatura humana pobre e fraca, a quem ele depois auxilia, para que os inimigos que a pretendem obstruir sejam vencidos. Exemplo disso foi quando Deus libertou os filhos de Israel do longo, fatigante e pesado cativeiro no Egito, conduzindo-os à terra prometida. Para isso, chamou Moisés e lhe deu o seu irmão Arão como seu assistente. Embora Faraó primeiro se endureceu contra eles, e oprimiu o povo muito mais do que antes disso, no fim ele se viu obrigado a liberar Israel. Quando, a seguir, ele os caçou com todo o seu exército, o Senhor afogou Faraó com todo o seu poderio no Mar Vermelho libertando, desse modo, o seu povo.

Da mesma forma, na época do sacerdote Eli, os negócios estavam muito maus em Israel. Os filisteus os pressionavam, roubando de sua terra a arca de Deus. Eli, em profunda tristeza no coração, caiu para trás da sua cadeira quebrando o pescoço. Parecia que Israel fora totalmente vencido. No entanto, Deus fez surgir o profeta Samuel e, por meio dele, restaurou Israel, e os filisteus foram derrotados.

Mais tarde, quando Saul foi dolorosamente oprimido pelos Filisteus, de modo que para angústia do coração desesperou-se e se suicidou, morrendo com ele três dos seus filhos e muitas outras pessoas, todos pensavam que seria o fim de Israel. Contudo, logo depois, quando Davi foi escolhido para ser o rei de todo o Israel, então chegou a idade áurea [para o povo]. Pois Davi, o escolhido de Deus, não apenas salvou Israel das mãos dos inimigos. Ele também subjugou todos os reis e povos que se lançaram contra ele, e soergueu novamente o reino de tal maneira que na sua época e na de Salomão estava em pleno desenvolvimento, poder e glória.

Quando Judá foi levado cativo para Babilônia, então Deus escolheu os profetas Ezequiel, Ageu e Zacarias que confortaram as pessoas em seus sofrimentos e cativeiro. Eles não apenas apregoaram a promessa do seu retorno para a terra de Judá, mas também que Cristo viria no tempo certo.

Portanto, podemos notar que Deus nunca esquece do seu povo, nem mesmo o fraco, ainda que, por causa dos seus pecados, ele o suporte por um longo tempo a fim de ser severamente punido e flagelado. Assim como, também em nossa época, ele nos libertou graciosamente do longo, incômodo, pesado e horrível cativeiro do malvado papa. Deus, por sua misericórdia, conceda que possamos reconhecer isto com gratidão.

LXX.
Deus poderia ser muito mais “rico”, se ele fosse mais cauteloso e nos tivesse proibido o uso da sua criação. Se ele sempre retesse um pouquinho o sol, de modo que não brilhe, ou prendesse o ar, a água, o fogo! Ah! Quão voluntariamente daríamos toda a nossa riqueza para termos novamente o direito ao uso dessas criaturas.

Todavia, observando que Deus tão generosamente acumula os seus dons sobre nós, acabamos reivindicando-os como direito. Que ele os impeça se assim o desejar. A indescritível multidão de seus benefícios obscurece a fé nos cristãos, e muito mais ainda nos pagãos.

LXXI.
Quando Deus quer punir um povo ou um reino, ele lhes tira os bons e piedosos professores e pregadores, e os priva de administradores e conselheiros sábios, piedosos e honestos, bem como de soldados bravos, íntegros e experientes, além de outros bons homens. Então, as pessoas simples ficam seguras e felizes. Elas continuam na obstinação, não sentindo mais carência da verdade e da doutrina divina. Pelo contrário, elas as desprezam e se tornam cegas, sem temor nem honestidade. Acabam cedendo a todos os tipos de pecados vergonhosos, de modo que surge um tipo de vida selvagem, dissoluta e maligna, assim como essa que vemos agora e conhecemos muito bem, e que não podemos suportar por muito tempo. Eu sinto que o machado está posto à raiz da árvore para que a corte logo [Mt 3.10; 7.18-19]. Que Deus, por sua infinita misericórdia nos leve graciosamente, para que não estejamos presente diante de tais calamidades.

LXXII.
Deus nos dá o sol, a lua e as estrelas, fogo e água, ar e terra, todas as criaturas. Também nos dá o corpo e a mente, todos os tipos de sustento: frutas, sementes, trigo, vinho, tudo o que é bom para a preservação e o conforto da vida terrena. Além disso, ele nos dá a sua Palavra salvadora. Ele se dá a si mesmo.

Agora, o que é que ele ganha por tudo isso? Na verdade, nada; antes, porém, é maldosamente blasfemado e seu Filho unigênito é condenado e crucificado, seus servos afligidos, perseguidos e mortos. O mundo é um filho pagão; ai dele!

LXXIII.
Deus confia mui maravilhosamente o seu ofício mais sublime a pregadores que são, em si mesmos, pobres pecadores que, enquanto o pregam, mui fragilmente o praticam. Assim acontece sempre com o poder de Deus em nossa fraqueza; pois quando ele é enfraquecido em nós, então ele é mais forte.

LXXIV.
Como Deus deveria tratar conosco? Bons dias, não conseguimos tolerar; os maus, não podemos suportar. Se Ele nos dá riquezas, nos tornamos arrogantes, de modo que, por nós, ninguém pode viver em paz. Não, nós queremos ser levados sobre cabeças e ombros e ser adorados como deuses. Se Ele nos dá pobreza, então ficamos desanimados, impacientes e murmuramos contra ele. Por isso, nada melhor para nós do que sermos imediatamente cobertos com a pá [i.e., enterrados].

LXXV.
Alguém disse o seguinte: “Visto Deus saber que o homem não permaneceria em seu estado de inocência, por que, afinal, o criou?” O Dr. Lutero respondeu rindo: O Senhor, todo-poderoso e magnificente, viu que ele poderia precisar ter em sua casa costureiros e fossas. Estejas certo de que ele sabe muito bem do que é capaz. Tenhamos cuidado com essas questões abstratas e consideremos a vontade de Deus assim como ela nos foi revelada.

LXXVI.
O Dr. Henning perguntou: “Será que a razão não exerce nenhuma autoridade junto aos cristãos, posto que ela deve ser desconsiderada em assuntos de fé?” O Dr. [Lutero] respondeu: Sem a fé e o conhecimento de Deus, a razão é obscura. Contudo, nas mãos dos que crêem, é um instrumento excelente. Todas as facilidades e dons são perniciosos quando exercidos pelos ímpios, mas muito salutares quando possuídos por pessoas piedosas.

LXXVII.
Deus lida de modo estranho com os seus santos, contrário a toda a sabedoria e entendimento humanos, a fim de que os que temem a Deus e são cristãos, aprendam a depender de coisas invisíveis, e pela mortificação possam ser novamente vivificados; pois a Palavra de Deus é a luz que brilha num lugar escuro [2Pe 1.19], conforme o revelam todos os exemplos de fé. Esaú foi amaldiçoado, no entanto, foi tudo bem com ele; ele foi senhor no país e sacerdote na igreja; no entanto, Jacó teve de fugir, e viveu na pobreza, noutro país.

Deus age muito mais com os cristãos piedosos do que com os ímpios e, por vezes, de forma muito pior. Ele lida com eles até mesmo como um pai doméstico faz com um filho e um empregado. Ele açoita e bate com muito mais intensidade e freqüência no filho do que no doméstico. Contudo, ele ajunta um tesouro para o filho herdar, enquanto num doméstico obstinado e desobediente ele não bate com a vara, mas empurra portas afora e não lhe dá nada da herança.

LXXVIII.
Deus é um Senhor bom e gracioso. Ele quer ser considerado o único Deus, conforme o primeiro mandamento: “não terás outros deuses diante de mim.” Ele não quer nada de nós, quaisquer taxas, subsídios, dinheiro ou bens. Ele quer apenas ser nosso Deus e Pai, então ele nos concede ricamente, com uma taça transbordante, todos os tipos de dons espirituais e temporais. Contudo, nós não o levamos tanto em consideração, nem queremos tê-lo como nosso Deus.

LXXIX.
Deus não é um Deus irado. Se ele o fosse, estaríamos todos completamente perdidos e destruídos. Ele não fere a humanidade voluntariamente, exceto, enquanto Deus justo, ele se veja obrigado a fazê-lo. Todavia, não tendo nenhum prazer na injustiça e na incredulidade, ele precisa, por isso, permitir que a punição tenha livre curso. Assim como, por vezes, olho através dos dedos, quando o tutor açoita o meu filho João, assim ocorre com Deus. Quando somos ingratos e desobedientes à sua Palavra e mandamentos, ele nos faz sofrer pelo diabo para sermos ruidosamente chicoteados com pestilência, fome e açoites semelhantes a esses. Isso não significa que Deus queira ser nosso inimigo e nos destruir. Antes, por meio de tais flagelos ele quer nos chamar ao arrependimento e mudança, e com isso nos impelir a buscá-lo, a correr para ele e clamar por seu auxílio. Temos um belo exemplo disso no livro dos Juízes onde o anjo, na pessoa de Deus, nos diz: “Eu vos golpeei seguidamente e vós não melhorastes”, e o povo de Israel disse: “Salva-nos agora; pecamos e fizemos o que é mau: castiga-nos, ó Senhor, e faze conosco o que quiseres, tão somente, salva-nos,” etc. Nisso ele não afligiu o povo todo para a morte. De maneira semelhante fez Davi, quando pecou (ao levantar o censo, pelo que Deus puniu o povo com pestilência, de modo que morreram 70.000 pessoas), então humilhou-se e disse: “Eu é que pequei, eu é que procedi perversamente; porém estas ovelhas que fizeram? Seja, pois, a tua mão contra mim e contra a casa de meu pai.” [2Sm 24.17]. Então “arrependeu-se o SENHOR do mal e disse ao Anjo que fazia a destruição entre o povo: Basta, retira a mão.” [2Sm 24.16].

Aquele que consegue se humilhar sinceramente diante de Deus em Cristo, esse já venceu. De outro modo, o Senhor Deus perderia a sua divindade, cuja obra própria consiste em ter misericórdia do pobre e aflito, e poupá-los para que se humilhem diante dele. Se não fosse assim, nenhuma criatura humana se aproximaria dele ou o invocaria; nenhum homem seria ouvido ou salvo, nem lhe daria graças: “pois no inferno ninguém te louvará”, diz o Salmo. O diabo pode assustar, matar e roubar; Deus, porém, reaviva e conforta.

Essa pequena palavra: “Deus”, é, na Escritura, uma palavra com vários significados, e seguidamente é entendida como algo a partir da natureza da sua ação e essência: como o diabo sendo chamado deus; a saber, um deus do pecado, da morte, do desespero e da maldição.

Devemos fazer diferenciação correta entre esse deus e o justo e verdadeiro Deus, que é Deus da vida, conforto, salvação, justificação e de toda a bondade; pois há muitas palavras que não levam quaisquer significados exatos, e o equivoco é sempre a mãe do erro.

LXXX.
Os pagãos e perversos usufruem a maior parte das criaturas de Deus: os tiranos têm o maior poder, terras e povo; os agiotas, o dinheiro; os agricultores, ovos, manteiga, trigo, cevada, aveia, maçãs, pêras, etc. Enquanto isso, os cristãos precisam sofrer, serem perseguidos, sentar no calabouço, onde não podem ver o sol ou a lua, serem lançados na miséria, banidos, afligidos, etc. No entanto, um dia desses as coisas vão melhorar. Elas não podem continuar assim para sempre. Tenhamos paciência, e permaneçamos firmes por meio da doutrina pura, não nos afastando dela, apesar de toda essa miséria.

LXXXI.
Nosso Senhor Deus e o diabo têm duas formas de política que não concordam entre si, sendo completamente opostas uma à outra. Primeiro Deus nos aflige, depois nos levanta e conforta a fim de que a carne e o velho homem sejam mortos e vivam o espírito e o novo homem. Enquanto isso, o diabo, primeiro torna as pessoas seguras e ousadas para que, sem nenhum temor, cometam pecados e maldades e não apenas permaneçam no pecado, mas encontrem gozo e prazer nele, pensando que fizeram tudo certo. No final, porém, quando vem o sr. Estica-pernas, então ele os assusta e apavora sem medida para que morram de desgosto imenso ou, finalmente, são abandonados sem nenhum consolo e desesperam da graça e misericórdia de Deus.

LXXXII.
Somente Deus, e não o dinheiro, mantém o mundo. As riquezas apenas tornam as pessoas arrogantes e preguiçosas. Em Venice, onde se encontram os ricos, sobreveio-lhes uma horrível mortandade, em nossos dias [i.e., de Lutero], de modo que se viram impelidos a apelar por ajuda junto aos turcos, que enviaram vinte e quatro galés carregadas de trigo – todas elas afundadas bem próximas ao porto, diante de seus olhos. Grande riqueza e dinheiro não conseguem parar a fome, antes, causam mortandade ainda maior. Pois, onde estão os ricos, ali as coisas sempre são valiosas. Além disso, o dinheiro não deixa ninguém satisfeito, muito ao contrário, deixa a pessoa melancólica e cheia de desgosto. Pois, as riquezas, diz Cristo, são espinhos que picam as pessoas. Contudo, o mundo é tão louco a ponto de pôr nisso toda a sua alegria e felicidade.

LXXXIII.
Não há aborrecimento maior do que quando Deus silencia e não fala conosco, antes, nos permite prosseguirmos em nossas obras pecaminosas fazendo todas as coisas segundo as nossas paixões e prazeres, conforme tem sido com os judeus pelos últimos mil e quinhentos anos.

Oh! Deus, pune, te pedimos, com pestilência e fome, e com o mal e a doença que ainda possam existir sobre a terra; porém, não fiques em silêncio em relação a nós, Senhor. Deus disse aos judeus: “Eu estendi a minha mão, e clamei, vinde para cá e ouvi”, etc. “Mas vós dissestes: não queremos ouvir”. [N. do T.: veja Pv 1.24: “Mas, porque clamei, e vós recusastes; porque estendi a mão, e não houve quem atendesse”].

De maneira semelhante nós agimos agora. Estamos enfadados da Palavra de Deus. Não queremos pregadores e mestres justos, bons e piedosos que nos ameaçam, nos trazem a Palavra de Deus pura e sem falsificação, condenam a doutrina falsa e verdadeiramente nos advertem. Não, esses nós não podemos suportar. Não queremos ouvi-los, não, antes os perseguimos e os banimos. Por isso, Deus também nos punirá. Assim acontece com filhos perdidos e maus que não querem ouvir seus pais nem ser-lhes obedientes. Depois, eles também serão rejeitados por eles.

LXXXIV.
Nada desagrada mais ao Onipotente Deus, do que quando defendemos e cronometramos os nossos pecados, não querendo reconhecer que fizemos o mal assim como o fez Saul. Pois, os pecados não reconhecidos são contra a primeira tábua dos Dez Mandamentos. Saul pecou contra a primeira tábua; Davi, contra a segunda. Os são pecadores contra a segunda tábua aqueles que observam o sermão sobre o arrependimento, sentem-se ameaçados e reprovados, reconhecem os seus pecados e melhoram a si mesmos. Aqueles que pecam contra a primeira tábua, como os idólatras, incrédulos, acusadores e blasfemadores de Deus, falsificadores da Palavra de Deus, etc., atribuem-se sabedoria e poder. Eles serão sábios e poderosos, duas qualidades que Deus reserva para si mesmo como peculiarmente suas.

LXXXV.
É indescritível quão incrédulo e mau é o mundo. Facilmente podemos percebê-lo a partir do fato que Deus não apenas impôs punições para desenvolver os seus súditos, mas também nomeou muitos executores e carrascos para puni-los, como espíritos maus, tiranos, filhos desobedientes, patifes, mulheres pervertidas, bestas selvagens, vermes, doenças, etc. Agora, tudo isso não consegue fazer com que nos dobremos ou encurvemos.

Seria melhor se Deus ficasse irado conosco, do que nós com ele, pois ele pode logo estar novamente em união conosco, visto que ele é misericordioso. Todavia, se nós ficamos irados com ele, então o caso não tem solução.

LXXXVI.
Deus poderia ser sumamente rico em fortuna temporal, se assim o desejasse, mas ele não o quer. Se apenas ele viesse ao papa, ao imperador, a um rei, um príncipe, um rico mercador, um cidadão, um fazendeiro, e dissesse: “a menos que me dês cem mil coroas, morrerás imediatamente”, cada um diria: “eu o darei de todo o meu coração, desde que eu possa viver.” Contudo, somos tão ingratos e desleixados ao ponto de não lhe darmos ao menos um Deo gratias, embora recebamos dele, em rica medida, tão grandes benefícios, unicamente por sua bondade e misericórdia. Isso não é uma vergonha? No entanto, apesar de tanta ingratidão, o nosso Senhor Deus e misericordioso Pai não se importa de ser espantado, mas continuamente nos mostra toda sorte de benevolência. Se em seus dons e benefícios ele fosse mais econômico e mão fechada, aprenderíamos a ser agradecidos. Se ele fizesse cada criatura humana nascer com apenas uma perna ou pé, e sete anos após lhe desse outros, ou no décimo quarto ano lhe desse uma mão e, posteriormente, no trigésimo ano a outra, então reconheceríamos melhor os dons e benefícios de Deus e os valorizaríamos muito mais e lhe seríamos gratos. Ele nos deu todo um oceano cheio da sua Palavra, todos os tipos de línguas e artes liberais. Compramos, atualmente, a baixo custo, todo tipo de bons livros. Ele nos dá pessoas instruídas, que ensinam bem e com regularidade. De modo que um jovem, se não for completamente ignorante, pode, agora, aprender mais num ano, do que antes acontecia durante vários anos. As artes são, agora, tão baratas, que eles quase saem a pedir pão. Malditos sejamos por sermos tão preguiçosos, desleixados e ingratos.

LXXXVII.
Não somos dignos de nada com nossos dons e qualidades, por maiores que sejam, a menos que Deus ponha sua mão continuamente sobre nós. Se ele nos esquecer, então nossa sabedoria, arte, sentido e compreensão são fiteis. Se ele não os ajudar seguidamente, então nosso maior conhecimento e experiência sobre a divindade, ou seja o que for que obtenhamos, de nada servirão. Pois, quando chegam a hora da tentação e prova, seremos despachado num instante. Então, o diabo, sabedor de sua força e sutileza, [agirá] roubando-nos até mesmo aqueles textos da Escritura Sagrada pelos quais poderíamos nos confortar, e pondo diante de nossos olhos, em lugar deles, somente sentenças de ameaças terríveis.

Por conseguinte, que ninguém se gabe e se jacte de forma arrogante por sua própria justiça, sabedoria ou outros dons e qualidades, mas se humilhe e ore com os santos apóstolos e diga: “Oh! Senhor! Fortalece aumenta-nos a fé” [veja Lc 17.5].

LXXXVIII.
Quanto maiores os dons e obras de Deus, tanto menos são considerados. O maior e mais precioso tesouro que recebemos de Deus é podermos falar, ouvir, ver, etc. No entanto, quão poucos reconhecem isso como dons especiais de Deus, e ainda menos pessoas dão graças a Deus por eles. O mundo valoriza muito as riquezas, honra, poder e outras coisas de menor valor, que cedo passam. Um cego, porém, em seu reto juízo, prontamente os trocaria pela visão. A razão porque os dons corporais de Deus são tão desvalorizados é que eles são tão comuns que Deus os concede também às brutas bestas, que assim como nós, e melhor ainda, ouvem e vêem. Quando Cristo fez os cegos verem, expeliu demônios, ressuscitou mortos, etc., ele foi censurado pelos incrédulos hipócritas, que se entregavam a si mesmos pelo povo de Deus, e foi-lhe dito que ele era um samaritano endemoninhado. Ah! O mundo é do diabo, quer ele siga em frente ou pare. Como, então, as pessoas podem reconhecer os dons e os benefícios de Deus? Isso diz respeito a nós e a nossos filhos, que não valorizam tanto o seu pão diário, como uma maçã, uma pêra e outras bagatelas. Olhe para o gado indo aos pastos no campo, e veja nele nossos pregadores, nossos transportadores de leite, manteiga, queijo e lã que diariamente nos proclamam a fé em Deus, e que devemos confiar nele como nosso Pai amoroso que cuida de nós e nos manterá nutridos.

LXXXIX.
Ninguém consegue imaginar que grande fardo é [para] Deus apenas manter pássaros e tais criaturas, comparativamente sem valor. Estou convencido que lhe custa, anualmente, muito mais manter apenas os pardais, do que a soma dos rendimentos do rei da França. Que diremos, então, de todas as suas demais criaturas?

XC.
Deus se compraz em nossas tentações, mas também as odeia. Ele se compraz nelas quando essas nos levam a orar. Ele as odeia, quando elas nos levam ao desespero. O Salmo diz: “Um coração humilde e contrito é um sacrifício agradável a Deus”, etc. [veja Sl 51.17]. Portanto, quando a coisa vai bem com você, cante e louve a Deus com um hino. Se a coisa vai mal, isto é, veio a tentação, então ore: “Pois o Senhor se agrada daqueles que o temem”, e o que segue é ainda melhor: “e naqueles que esperam na sua bondade”,[veja Sl 33.18; 147.11] pois o Senhor ajuda o submisso e humilde, visto que ele diz: “Pensas que a minha mão está encolhida para que eu não possa auxiliar?”.[veja Is 59.1] Aquele que se julga fraco na fé, que tenha sempre o desejo de ser forte nela, porque isso é um alimento que Deus gosta em nós.

XCI.
Neste mundo, Deus tem apenas a décima parte das pessoas. Somente o menor número será salvo. O mundo é excessivamente incrédulo e mau. Quem acreditaria que o nosso povo seria tão ingrato contra o evangelho?

XCII.
É admirável como Deus colocou tão excelente medicamento em mero estrume. Sabemos por experiência que o esterco de porco estanca o sangue. O de cavalo serve para a pleurisia, o humano para úlceras e manchas escuras; o de burro é utilizado para o fluxo de sangue, o de vaca com rosas em conserva é usado para epilepsia ou para convulsões infantis.

XCIII.
Deus é visto como se ele tivesse agido imprudentemente ao ordenar que o mundo seja governado pela Palavra da Verdade, especialmente por ele a ter vestido e coberto com uma pobre, fraca e condenada Palavra da cruz. Pois o mundo não quer ter a verdade, mas mentiras: nem fazem eles voluntariamente algo que é correto e bom, a menos que sejam compelidos por grande força. O mundo tem aversão à cruz, e seguirá antes os prazeres do diabo, e ter dias agradáveis, do que tomar a cruz de nosso louvado Salvador Cristo Jesus. Aquele que melhor governa o mundo, como o mais digno dele, é Satanás, por meio de seu lugar-tenente, o papa. Ele pode agradar bem ao mundo, e sabe como fazê-lo dar-lhe ouvidos, pois o seu reino tem uma enorme exposição e reputação que é aceitável ao mundo e o beneficia. Tal e qual.

XCIV.
Pitágoras, o filósofo pagão, disse que o movimento das estrelas cria uma harmonia muito suave e concórdia celestial; mas que as pessoas, por meio de hábitos contínuos, tornaram-se fartas disso. Assim também ocorre conosco: nós temos excelentes belas criaturas para nosso uso, contudo, pelo fato de serem tão comuns, não as consideramos.

XCV.
Uma proporção bem pequena da terra produz trigo, e no entanto, somos todos mantidos e alimentados. Eu realmente acredito que não crescem tantos feixes de trigo como aumentam as pessoas no mundo, no entanto, estamos todos nutridos. E ainda fica uma boa sobra de trigo ao findar o ano. Isso é algo maravilhoso que nos deveria fazer ver e perceber a bênção de Deus.

XCVI.
A causa aparente porquê Deus lançou uma sentença tão aguda sobre Adão era que ele comeu da árvore proibida e foi desobediente a Deus. Por conseguinte, por sua culpa, a terra foi amaldiçoada e a humanidade foi sujeita a todo tipo de misérias, temores, privações, enfermidade, pragas e morte. A razão do sábio mundano, considerando apenas o comer da maçã, considera que por uma coisa tão fútil e trivial o procedimento sobre Adão foi muito cruel e duro, e toma rapé no nariz, e diz, ou pelo menos pensa: “Oh, será que é um assunto tão atroz e pecado alguém comer uma maçã?” As pessoas dizem a respeito de vários pecados que Deus expressamente proibiu em sua Palavra, tal como a embriaguez, etc.: “Que mal existe no fato de alguém estar feliz e tomar um copo com bons companheiros?” – concluindo segundo a sua cegueira, que Deus é muito duro e punitivo.

Ainda, esses mundanos estão ofendidos porque Cristo, conforme imaginam, rejeita pessoas boas, honestas e santas. Se ofendem porque ele não as conhecerá, é áspero com elas, as afasta de si e as chama de malfeitores; mesmo que alguns, em seu nome, tenham profetizado, expelido demônios, feito milagres, etc. Enquanto isso, por outro lado, ele recebe pecadores notórios, como prostitutas, ladrões, publicanos, assassinos. Esses, se ouvirem a sua Palavra e crerem em Cristo, ele os perdoa, mesmo que os seus pecados sejam tão grandes e numerosos. Ele os torna justos e santos, filhos de Deus e herdeiros da vida e salvação eterna, por pura graça e misericórdia, sem quaisquer de seus méritos, boas obras e virtudes. Isso, eles consideram totalmente injusto.

Quem pode, aqui, ser um árbitro, sendo as duas coisas tão contrárias uma à outra como fogo e água? Nisto a sabedoria humana, seu sentido, razão, entendimento é tornada louca. A Escritura diz: “se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus.” [Mt 18.3] Aqueles que investigarem essas coisas com inteligência e sabedoria humanas, entregam-se a uma tarefa bem fútil e à inquietação. Esses nunca aprenderão como Deus lhes é favorável. Também nesses que tão futilmente se angustiam se são predestinados ou eleitos, surge um fogo no coração, o qual não conseguem apagar. De modo que as suas consciências nunca estão em paz, mas no fim acabam em desespero. Portanto, aquele que quiser evitar esse mal permanente deve apegar-se à Palavra, onde descobrirá que nosso Deus gracioso lançou um fundamento seguro e firme, no qual podemos pisar com certeza – notadamente, Jesus Cristo, nosso Senhor por meio de quem, unicamente, podemos entrar no reino dos céus. Pois ele, e nenhum outro, é “o caminho, a verdade e a vida” [Jo 14.6].

Não podemos compreender melhor as pesadas tentações dessa predestinação eterna, que aterroriza muitas pessoas, do que pelas chagas do nosso Salvador, Cristo Jesus. A respeito dele, o Pai nos ordenou dizendo: “A ele ouvi” [Mt 17.5]. Mas os sábios do mundo, os poderosos, os instruídos, os grandes de maneira alguma prestam atenção a essas coisas, de modo que Deus permanece-lhes desconhecido, apesar de terem muito estudo e discutirem e falarem muito sobre Deus; pois a conclusão é pequena. Sem Cristo, Deus não será achado, conhecido ou compreendido.

Se agora você quiser saber porque tão poucos são salvos, e um número infinitamente maior é condenado, a causa é essa: o mundo não quer ouvir Cristo. Não se preocupam em nada por ele. Condenam aquilo que o Pai testifica a seu respeito: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo.”

Enquanto isso, todas as pessoas que buscam e laboram para chegar a Deus, por meio de quaisquer outros meios que não unicamente por meio de Cristo (judeus, turcos, papistas, falsos santos, hereges, etc.), andam em horrível escuridão e erro. E nada lhes aproveita o fato de levarem um tipo de vida honesta e sóbria, de se dedicarem a grande devoção, sofrerem muito, amarem e honrarem Deus, conforme se jactam, etc. Pois, visto que eles não quererem ouvir Cristo, ou crer nele (sem o qual ninguém conhece deus, ninguém obtém o perdão dos pecados, ninguém vem ao Pai), eles permanecem sempre em dúvida e incredulidade, não sabem como se encontram em relação com Deus e, finalmente, devem morrer e se perder em seus pecados. Pois, “quem não honra o Filho, não honra o Pai (1Jo 2). “Quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus.” [Jo 3.36]

XCVII.
Seguidamente é perguntado: por que pobres diabos têm dias tão bons, e vivem um longo tempo em regozijo e prazer, segundo o desejo de seu coração, com corpo são, filhos educados, etc., enquanto Deus permite aos fiéis permanecerem na calamidade, em perigo, angústia e privação por toda a sua vida? E por que ele permite que alguns morram também na miséria, como S. João Batista, que foi o maior dentre os santos na terra? Isso, sem falar de nosso único Salvador Jesus Cristo!

Os profetas todos escreveram muito a respeito disso, e mostraram como os cristãos teriam de passar por tais dúvidas e consolar-se nelas. Jeremias disse: “Por que prospera o caminho dos perversos, e vivem em paz todos os que procedem perfidamente?” [Jr 12.1] Mais adiante, porém, ele diz: “Tu os deixaste em liberdade, como ovelhas que serão mortas, e os preparaste para os dias da matança.”[Jr 12.3] [N. do T.: ARA tem o seguinte texto: “Arranca-os como as ovelhas para o matadouro e destina-os para o dia da matança.”]. Leia também os Salmos 37; 49 e 73.

Deus, portanto, não está irado com os seus filhos, embora os discipline e puna. Contudo, ele está irado com os incrédulos que não reconhecem Cristo como sendo o Filho de Deus e Salvador do mundo, mas blasfemam e condenam a Palavra. Esses não poderão esperar nenhuma graça e ajuda dele. E, realmente, ele mesmo não castiga nem bate em seu pequeno povo que depende de Cristo, mas permite que sejam corrigidos e punidos quando se tornam seguros e ingratos pelas suas indescritíveis graças e benefícios a eles revelados em Cristo, sendo desobedientes à sua Palavra. Então, Deus permite que o diabo machuque nossos calcanhares e nos envie pestilência e outras pragas. Também permite que tiranos nos persigam, e isso para o nosso bem, para que por esse modo sejamos movidos e, de certa forma, forçados a nos voltarmos para ele, invocá-lo e buscar auxílio e consolo dele, por meio de Cristo.

XCVIII.
“Deus é Deus de vivos, e não de mortos” [Mt 22.32]. Esse texto revela a ressurreição. Pois se não houvesse nenhuma esperança da ressurreição, ou de outro mundo melhor, após essa curta e miserável vida, como poderia Deus oferecer-se para ser o nosso Deus, e dizer que ele quer nos dar tudo o que é necessário e saudável para nós e, no fim, libertar-nos de toda tribulação, tanto temporal como espiritual? Com que finalidade ouviríamos a sua Palavra e creríamos nele? Em que fomos melhores quando gritamos e olhamos para ele em nossa angústia e necessidade, aguardamos com paciência o seu conforto e salvação, sua graça e benefícios, revelados em Cristo? Por que louvar e agradecer-lhe por eles? Por que estar diariamente em perigo, e permitir-nos que sejamos perseguidos e mortos por causa da Palavra de Cristo?

Considere que o eterno, misericordioso Deus, por meio de sua Palavra e Sacramento, nos fala e lida conosco, não de coisas temporais que pertencem a essa vida vã e que no princípio providenciou ricamente para nós. Nisso estão excluídas todas as outras criaturas. Considere, ainda, para onde iremos quando partirmos daqui. Deus nos dá o seu Filho para ser nosso Salvador, libertando-nos do pecado e da morte, e adquirindo-nos eterna justiça, vida e salvação. Portanto, está garantido que não morreremos assim como as bestas que não têm nenhuma compreensão. Muitos de nós, dormindo em Cristo, seremos ressuscitados por ele para a vida eterna no último dia, e os incrédulos para a destruição eterna (Jo 5; Dn 12).

XCIX.
O mais aceitável serviço que podemos prestar e oferecer a Deus, e que ele espera de nós, apenas, é que ele seja adorado. Contudo, ele não é adorado, a menos que seja primeiro amado. Ele não é amado, antes que primeiro seja generoso e faça o bem. Ele faz o bem quando é gracioso. Ele é gracioso quando perdoa pecados. Agora, onde estão aqueles que o amam? Esses são aquele pequeno rebanho dos fiéis, que reconhecem essas bênçãos, e sabem que por meio de Cristo têm o perdão dos seus pecados. Os filhos desse mundo, porém, não se preocupam com isso. Eles servem ao seu ídolo, aquele mau e maldito Mammon. No fim, ele os recompensará.

C.
Nosso amoroso Senhor Deus quer que nós comamos, bebamos e sejamos felizes fazendo uso de suas criaturas, pois para isso ele as criou. Ele não quer que nos queixemos como se ele não tivesse dado o suficiente, ou se ele não pudesse manter nossas pobres carcaças. Ele apenas requer de nós que o reconheçamos como nosso Deus e lhe sejamos gratos pelos seus dons.

CI.
Aquele que não tem Deus, tenha ele o que quiser, é mais miserável do que Lázaro que, deitado junto ao portão do rico, morria de fome. Acontecerá com esse tal assim como aconteceu com o glutão que teve de passar fome e privação eterna e não terá sob seu poder nem mesmo uma gota d’água.

CII.
De Abraão nasceram Isaque e Ismael. Dos patriarcas e dos santos pais procedem aqueles que crucificaram Cristo. Dos apóstolos surgiu Judas, o traidor. Da cidade de Alexandria (onde havia uma escola bela, ilustre e famosa, e de onde surgiram muitos homens justos e piedosos) provêm Ário e Orígenes. Da igreja Romana, que produziu muitos santos mártires, surgiu o blasfemo Anticristo, o papa de Roma. Dos santos homens na Arábia, veio Maomé. De Constantinopla, onde haviam muitos excelentes imperadores, apareceram os turcos. De mulheres casadas, apareceram as adúlteras, de virgens, as prostitutas. Dos irmãos, filhos e amigos, surgiram os mais cruéis inimigos. De anjos vieram os demônios; de reis, os tiranos. Do evangelho e verdade divina surgiram mentiras horríveis. Da igreja verdadeira surgiram os hereges. De Lutero, vieram os fanáticos, rebeldes e entusiastas. Não admira que o diabo está entre nós, procede de nós e sai de nós. Devem haver, realmente, muitas coisas más que não podem permanecer com tal bondade. E devem haver também muitas coisas boas que podem suportar essas coisas más.

CIII.
Embora por causa do pecado original muitas bestas selvagens ferem a humanidade, como leões, lobos, ursos, cobras, víboras, etc., o misericordioso Deus, de tal maneira mitigou nossas bem merecidas punições, que existem muito mais bestas que nos servem para nosso bem e proveito, do que as que nos ferem. Há muito mais ovelhas do que lobos, mais bois do que leões, mais vacas do que ursos, mais cervos do que raposas, mais lagostas do que escorpiões, mais patos, gansos e galinhas do que corvos e papagaios, etc. Entre todas as criaturas, há mais boas do que más, mais benefícios do que feridas e empecilhos.

CIV.
Deus que ter seus servos como pecadores arrependidos que tenham medo da sua ira, do diabo, da morte, do inferno e creiam em Cristo. Davi diz: “Perto está o SENHOR dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito oprimido.” [Sl 34.18] E Isaías diz: “Onde repousará o meu Espírito, e onde habitará? Naqueles que são de espírito humilde e temem a minha Palavra”. Assim acontece com o pobre pecador na cruz. Assim aconteceu com Pedro, quando negou Cristo; com Maria Madalena; com Paulo, perseguidor, etc. Todos esses estavam tristes por seus pecados e terão o perdão dos mesmos e serão servos de Deus.

Os grandes prelados, os santos ufanados, os ricos agiotas, os criadores de bois que buscam o lucro excessivo, etc., esses não são servos de Deus, nem seria bom que fossem. Pois, então, nenhuma pessoa pobre teria acesso a Deus por causa deles. Nem seria para a honra de Deus que esses seriam seus servos, pois atribuiriam a honra e o louvor para si mesmos.

No Antigo Testamento, todos os primogênitos eram consagrados a Deus, tanto dos seres humanos como também dos animais. O primogênito tinha uma vantagem sobre os seus irmãos; ele era seu senhor, o primeiro nas ofertas e riquezas, isto é, no governo espiritual e temporal, pois detinha o direito ao sacerdócio e ao domínio, etc. Todavia, há muitos exemplos nas Escrituras Sagradas em que Deus rejeitou o primogênito e escolheu o irmão mais novo, como Caim, Ismael, Esaú, Rubem, etc., tornando-se [o mais novo] o primogênito. Deus lhes tirou o seu direito e o deu ao irmão mais novo, como a Abel, Isaque, Jacó, Judá, Davi, etc. Isso, pelo seguinte motivo: eles eram soberbos, presunçosos, vangloriosos de sua primogenitura e desprezavam aos seus irmãos que eram muito melhores e mais piedosos do que eles. Isso Deus não poderia suportar. Por isso eles foram destituídos de suas honras, de modo que não poderiam mais orgulhar-se por serem os primeiros nascidos, embora fossem altamente considerados no mundo e dominassem sobre terras e pessoas.

CV.
As Escrituras revelam dois tipos de sacrifícios agradáveis a Deus. O primeiro é o assim chamado sacrifício de ação de graças ou louvor. Este ocorre quando ensinamos e pregamos a Palavra de Deus puramente. Também, quando a ouvimos e recebemos com fé, quando a reconhecemos e fazemos tudo o que contribui para que seja amplamente semeada. Ainda, quando damos graças a Deus de coração por seus benefícios indescritíveis que por meio da sua Palavra são colocados diante de nós e nos são concedidos em Cristo. Igualmente, quando o louvamos e glorificamos, etc., “Oferece a Deus sacrifício de ações de graças” [Sl 50.14]. “O que me oferece sacrifício de ações de graças, esse me glorificará” [Sl 50.23]. “Rendei graças ao SENHOR, porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre.” [Sl 118.1]. “Bendize, ó minha alma, ao SENHOR, e tudo o que há em mim bendiga ao seu santo nome. Bendize, ó minha alma, ao SENHOR, e não te esqueças de nem um só de seus benefícios.” [Sl 103.1-2]

O segundo tipo de sacrifício agradável a Deus ocorre quando um coração triste e atribulado por todo tipo de tentações se refugia em Deus, o invoca com fé verdadeira e correta, busca o auxílio dele e pacientemente espera nele. Acerca disto, os Salmos dizem: “Na minha angústia, clamo ao SENHOR, e ele me ouve.” [Sl 120.1]. “Perto está o SENHOR dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito oprimido.” [Sl 34.18]. “Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus.” [Sl 51.17]. E ainda, “invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me glorificarás.” [Sl 50.15].

CVI.
Se Adão tivesse permanecido em sua pureza e não tivesse transgredido o mandamento de Deus, ainda assim teria gerado filhos. E também não teria permanecido nesse estado do Paraíso, mas teria sido levado para a eterna glória do céu. Não pela morte, mas transformado para outra vida.

CVII.
Deus despreza e também zomba do diabo, colocando sob seu próprio nariz uma criatura pobre, fraca, humana, mero pó e cinzas, mas dotado das primícias do Espírito contra quem o diabo não pode fazer nada, embora seja um espírito tão orgulhoso, sutil e poderoso. Lemos nas histórias que um poderoso rei da Pérsia, ao sitiar a cidade de Edessa, o bispo viu que toda a ajuda humana era ineficaz, e que a cidade não poderia por si só resistir. Então, ele subiu as muralhas e orou a Deus fazendo, ao mesmo tempo, o sinal da cruz. E um maravilhoso anfitrião enviado por Deus cheio de moscas e pernilongos, tapou os olhos dos cavalos e dispersou todo o exército. Podemos ver que Deus tem prazer em triunfar não por meio do poder, mas pela fraqueza.

CVIII.
Os falsos mestres e sectários são como um castigo divino pelos maus tempos, a maior raiva e desgosto de Deus. Já os mestres piedosos são como testemunhas gloriosas, a graça e a misericórdia de Deus. Por isso que São Paulo é chamado de apóstolo, profeta, pastor, mestre, etc.. são dádivas e presentes do nosso Salvador Jesus Cristo, sentados a direita do Pai. E o profeta Miquéias compara os mestres do evangelho como uma árvore frutífera.

CIX.
Melancthon perguntou a Luther se essa palavra “endurecer”, “endurece quem ele quer”, deveria ser entendida diretamente como ela soava, ou em um sentido figurado? Luther então respondeu: Temos de compreendê-la especialmente e não operativamente: porque Deus não opera o mal. Através de seu grande poder, ele trabalha em tudo e em todos. E assim como ele encontra um homem, da mesma maneira irá operar nele, como foi feito com o Faraó que era mal por natureza, que não era de Deus, mas foi a sua própria culpa que continuou com a sua maldade. Ele se endureceu porque Deus, com seu Espírito e a sua graça, não impediu os seus atos ímpios, mas lhe permitiu continuar e seguir o seu caminho. Por que Deus não o impediu ou restringiu, não cabe a nós questionar.

CX.
Deus designa a si mesmo, em todas as Sagradas Escrituras, como o Deus da vida, da paz, do conforto e da alegria por causa de Cristo. Eu me odeio tanto que não consigo acreditar tão profundamente como deveria. Mas, também, nenhuma criatura humana pode justamente saber o quão misericordioso é o nosso Deus com a sua disposição para com aqueles que crêem firmemente em Cristo.

CXI.
O segundo Salmo é um dos melhores Salmos. Eu amo esse salmo com todo meu coração, pois ele atinge os reis, os príncipes, os conselheiros, os juízes, etc. Se o que este Salmo diz é verdade, então as alegações e as intenções dos papistas são bem mentirosas e estúpidas. Se eu fosse como nosso Deus e tivesse confiado o governo ao meu filho, como Ele fez a Cristo, e ver esses povos na desobediência como são agora, eu quebraria o mundo em pedaços.

CXII.
Se um homem não serve somente a Deus, então ele certamente serve ao diabo. Porque nenhum homem pode servir a Deus, a menos que ele tenha a sua Palavra e domínio. Portanto, se a Palavra e o mandamento não estiverem em seu coração, então não serves a Deus, mas à tua própria vontade. Porque isso é servo justo de Deus, quando um homem faz o que em sua Palavra, Deus ordenou o que seja feito, cada um em sua vocação, não o que ele pensa bom de seu próprio julgamento.

CXIII.
Isso incomoda um pouco o coração das pessoas, de que Deus parece ser mutável ou inconstante. Porque ele deu a Adão as promessas e cerimônias, e depois mudou com o arco-íris e a arca de Noé. Ele deu a Abraão a circuncisão, a Moisés deu milagres, a seu povo deu a lei. Mas a Cristo, e através de Cristo, deu o Evangelho. O que leva à abolição de todos os precedentes. Daí que os turcos se aproveitam desses procedimentos de Deus, dizendo: As leis dos cristãos podem ser estabelecidas e durar por um tempo, mas finalmente serão alteradas.

CXIV.
Certa vez fui repreendido por um sacerdote papista que, com tanta paixão e veemência, reprovava o povo. Respondi-lhe: Nosso Senhor Deus deve primeiro enviar uma chuva forte, derramando com trovões e relâmpagos, e, em seguida, fazer com que chova suavemente e delicadamente. Eu posso facilmente cortar um salgueiro ou uma varinha de aveleira com a minha faca afiada, mas para um carvalho duro, um homem deve usar o machado. É um pouco o suficiente para derrubar e abrir caminho.

CXV.
Platão, o pagão, disse de Deus: Deus é nada e, ao mesmo tempo, é tudo. Ele foi seguido por Eck e os sofistas que nada entenderam, como mostram suas palavras. Mas devemos entender e falar disto da seguinte maneira: Deus é incompreensível e invisível. Então, o que pode ser visto e compreendido, não é Deus. De outra maneira podemos dizer que Deus é visível e invisível: visível em sua Palavra e obras. E onde não há sua Palavra e obras, ali um homem não deve desejá-lo. Ele, ao invés de Deus, acaba tomando a posse do diabo. Não subamos alto demais, mas permaneçamos na manjedoura e nos panos de Cristo, “em quem habita corporalmente toda a plenitude da divindade”. Lá um homem não pode falhar por Deus, mas alcançá-lo com toda a certeza. O conforto humano e o conforto divino são naturezas diferentes: o conforto humano consiste na ajuda externa, visível, que um homem pode ver, segurar e sentir. Já o conforto divino é apenas em palavras e promessas, onde não há visão, nem audição, nem sentimento.

CXVI.
Quando não vemos uma maneira ou um meio, por conselho ou auxílio, através do qual podemos ser ajudados em nossas misérias, concluímos imediatamente, de acordo com a nossa razão humana: agora nossa condição é desesperadora. Mas quando cremos fielmente em Deus, inicia a nossa libertação. O médico diz: Quando a filosofia termina, a física começa. Assim dizemos: Onde a ajuda humana está no fim, a ajuda de Deus começa através da fé na Palavra de Deus. Provações e tentações surgem antes da libertação, após a libertação vem alegria. Estar sufocado e aflito, é para se levantar, crescer e progredir.

CXVII.
O diabo também tem a sua diversão e prazer, que consiste em suprimir a obra de Deus e atormentar aqueles que amam a Palavra de Deus, e manter-se dessa maneira. Assim, os verdadeiros cristãos, sendo o reino de Deus, devem ser atormentados e oprimidos.

Um cristão verdadeiro deve ter dias maus e sofrer muito. Nossa carne e sangue de Adão devem ter dias bons e fáceis, e de nada sofrer. Como podem concordarem juntos? A nossa carne é entregue à morte e ao inferno: se a nossa carne deve ser libertada da morte, do inferno e do diabo, então ela deve manter e guardar os mandamentos de Deus – ou seja, deve se apegar à Sua Palavra, crendo que não nos permitirá sermos atormentados eternamente, e nos livrará desta vida para a vida eterna. Dando-nos, ao mesmo tempo, paciência debaixo da cruz, e suportar a fraqueza do próximo que também está debaixo da cruz, e manter-se em Cristo.

Portanto, aquele que se vangloriar em ser discípulo de Cristo, verdadeiro cristão, e salvo, não deve esperar bons dias. Mas toda a sua fé, segurança e amor devem ser dirigidos a Deus e ao seu próximo, de modo que toda a sua vida não seja de outra maneira senão a cruz, a perseguição, a adversidade e a tribulação.

CXVIII.
Qual deve ser para nós, pessoas pobres e miseráveis, o nosso alvo? Nós que ainda não conseguimos compreender com a nossa fé, as mais simples promessas de Deus, o brilho dos seus mandamentos e obras – ambos os quais, apesar de ele ter confirmado com palavras e milagres, – fracos, impuros e corrompidos como nós somos, – presunçosamente procuramos entender a luz incompreensível das maravilhas de Deus.

Devemos saber que Ele habita na luz onde criaturas humanas não podem vir, e ainda assim continuamos na tentativa de alcançá-la. Nós sabemos. Sabemos que seus julgamentos são incompreensíveis e que suas maneiras não foram descobertas (Romanos XI), mas nos comprometemos a descobri-los. Nós olhamos com os olhos cegos, como uma toupeira, sobre a majestade de Deus e, em seguida, aquela luz que não é mostrada em palavras e nem em milagres, mas é apenas exprimida. Por curiosidade e obstinação, contemplaríamos a maior e melhor luz do sol celestial antes de vermos a estrela da manhã. Que a estrela da manhã, como diz São Pedro, alcance primeiro os nossos corações, e então veremos o sol em seu esplendor de meio-dia.

É verdade que podemos ensinar, como podemos, a incompreensível e insondável vontade de Deus. Mas o objetivo de sua perfeita compreensão é o trabalho perigoso em que tropeçamos, caímos e quebramos nossos pescoços. Eu me controlo com essas palavras de nosso Salvador Cristo a São Pedro: “Sigam-me: o que é para ti?” etc., porque Pedro ocupou-se também sobre as obras de Deus. A saber, como Ele faria com outro, como ele faria com João? E como ele respondeu a Filipe, que disse: “Mostra-nos o Pai” – “O que”, disse Cristo. “Não creiais que o Pai está em mim, e eu no Pai? Aquele que me vê, vê o Pai também”, etc., porque Filipe também teria de bom grado visto a majestade e a comunhão do Pai. Salomão, o sábio rei, diz: “O que é alto demais para ti, depois disso não perguntas tu”. E até conhecermos todos os juízos secretos de Deus, que bem e lucro nos traria, mais do que as promessas e mandamentos de Deus?

Abstenhamo-nos de tais cogitações, visto que sabemos com certeza que elas são incompreensíveis. Não nos permitamos sermos tão atormentados pelo diabo com o que é impossível. Um homem poderia também ocupar-se como o reino da terra suportará sobre as águas, e não vai mais abaixo tão profundo delas. Acima de tudo, exerçamos a fé nas promessas de Deus e nas obras dos seus mandamentos. Quando tivermos feito isto, podemos bem considerar se é oportuno se preocupar com coisas impossíveis, embora seja algo complicado expulsar tais pensamentos, que tão ferozmente o diabo impulsiona. Um homem deve esforça-se veementemente contra essas cogitações, contra a incredulidade, o desespero, as heresias e outras tentações semelhantes. Pois a maioria de nós é enganada, não acreditando que procedem do diabo, que mesmo assim caiu por aquelas mesmas cogitações, assumindo ser igual ao Altíssimo, e conhecer tudo o que Deus sabe, desprezando saber o que deveria saber, e o que era necessário para ele.

CXIX.
Os altos mistérios nas Escrituras são difíceis de serem entendidos, e confundem as mentes não instruídas e mentes ligeiras também, de modo a produzir muitos erros e heresias, a condenação deles próprios e a dos outros. Portanto, Moisés descreveu a criação de modo tão brevemente que gastou todo um capítulo narrando sobre a compra do campo e da caverna de frente a Hebrom, que Abraão comprou de Efron, o heteu, para sepultar Sara, sua mulher. Ele também descreve, através de muitos capítulos, sobre vários tipos de sacrifícios e cerimônias, pois bem sabia que tais costumes não produziam heresias. Muitas coisas foram escritas e descritas antes mesmo de Moisés nascer. Indubitavelmente, Adão observou brevemente a história da criação, de sua queda, da semente prometida, etc. Os outros patriarcas que vieram em seguida, sem dúvida, estabeleceram o que foi feito cada um em seu devido tempo, especialmente Noé. Em seguida Moisés, como eu concebo, conduziu todos para um processo justo e ordenado, diminuindo e acrescentando as coisas como Deus ordenou: como, especialmente, tocar a semente que deve esmagar a cabeça da serpente, a história da criação, etc.; Tudo o que, sem dúvida, ele tinha fora dos sermões dos patriarcas, sempre haverá um herdeiro do outro. Porque eu realmente creio que o sermão da semente da mulher prometida a Adão e Eva, o qual tiveram um desejo e anseio tão ardentes, foi pregado mais poderosamente antes do dilúvio do que agora nestes tempos perigosos, com os sermões de Cristo nos nossos dias.

CXX.
Eu daria um mundo para obter os atos e os contos dos patriarcas que viveram antes do dilúvio. Pois ali o homem poderia ver como viviam, pregavam e sofriam. Mas agradou a nosso Senhor Deus em esmagar todos os seus atos e contos no dilúvio, porque sabia que aqueles que viriam depois, não os aceitariam e muito menos os entenderiam. Portanto, Deus os manteria e os preservaria até que se reunissem novamente na vida futura. Mas então, eu tenho certeza, os patriarcas amorosos que viveram após o dilúvio, Abraão, Isaque, Jacó, etc. Os profetas, os apóstolos, a sua posteridade e outros santos, que nesta vida o diabo não deixaria sem tentação, cederão aos patriarcas que viveram antes do dilúvio e lhes darão preeminência em honra divina e espiritual, dizendo: Amados e veneráveis patriarcas! Eu preguei apenas alguns anos, espalhando a Palavra de Deus no exterior, e, portanto, sofri na cruz. Mas o que é isso em comparação com o grande, tedioso, intolerável trabalho e dores, angústias, tormentos e pragas que vós, santos pais, suportaram antes do dilúvio, alguns de vocês, setecentos e oitocentos anos, do diabo e do mundo ímpio.

CXXI.
Como ultimamente eu estava muito doente, tão doente que pensei ter deixado este mundo, muitas cogitações e meditações surgiram em minha fraqueza. Ah! Penso eu, o que poderia ser a eternidade? Que alegrias poderiam ter? Contudo, sei com certeza que essa eternidade é nossa. Por meio de Cristo é dado e preparado para nós, se caso crermos nEle. Lá será aberto e revelado. Aqui não saberemos quando será uma segunda criação do mundo, visto que não entendemos a primeira. Se eu estivesse com Deus antes da criação do mundo, eu não poderia ter aconselhado para fazer este globo do nada, o firmamento e aquele sol glorioso, que em seu curso rápido ilumina toda a terra. Assim como a criação do homem e da mulher, etc., tudo o que ele fez por nós, sem o nosso conselho. Portanto, devemos justamente prestar-lhe a honra, e deixar seu divino poder e bondade para a nova criação da vida futura, e não presumir especulações sobre ela.

CXXII.
Presumo que o nome Paraíso se aplica ao mundo inteiro. Moisés descreve mais particularmente o que caiu dentro da visão de Adão antes de sua queda, – um lugar doce e agradável, água por quatro rios. Depois que ele pecou, ele dirigiu seus passos para a Síria, e a terra perdeu sua fertilidade. Samaria e Judeia foram terras frutíferas, merecedoras de ser Paraíso, mas agora são areias áridas, porque Deus as amaldiçoou.

Mesmo assim, no nosso tempo, Deus amaldiçoou terras férteis, e as fez estéreis e infrutíferas por causa dos nossos pecados. Pois onde Deus não dá a sua bênção, não cresce nada que seja bom e proveitoso, mas onde ele abençoa, lá todas as coisas crescem em abundância e são frutíferas.

CXXIII.
Dr. Jonas, convidando Luther para jantar, fez com que um monte de cerejas maduras fossem penduradas sobre a mesa onde jantavam, em lembrança da criação, e como uma sugestão a seus convidados para louvar a Deus por criar tais frutos. Mas Luther disse: Por que não lembrar dos filhos, que são frutos do próprio corpo? Pois estas são criaturas muito mais excelentes do que todos os frutos das árvores. Neles vemos o poder, a sabedoria e a arte de Deus, que os fizeram tudo do nada, e lhes deram vida e membros, esquisitamente construídos, e os manterão e preservarão. No entanto, quão pouco consideramos isso. Quando as pessoas têm filhos, todo o efeito é fazê-los ávidos – juntando todos eles e deixá-los para trás. Eles não sabem, que antes que uma criança venha ao mundo, ela tem a sua sorte já designada, e que já é determinada e ordenada o que e quanto ela terá. No casamento, encontramos que a concepção de crianças não depende da nossa vontade e prazer. Nunca sabemos se seremos frutíferos ou não, ou se Deus nos dará um filho ou uma filha. Tudo isso continua sem o nosso conselho. Meus pais não imaginavam que iriam trazer um supervisor espiritual para o mundo. È apenas a obra de Deus, e isso não podemos entrar. Acredito que, na vida futura, não teremos nada a fazer senão meditar e admirar nosso Criador e suas criaturas.

CXXIV.
Um cometa é uma estrela que corre, não é fixada como um planeta, mas um degenerado entre os planetas. É uma estrela arrogante e orgulhosa, absorvendo e carregando todo o elemento, como se estivesse lá sozinha. É da natureza dos hereges, singular e sozinho, vangloriando-se acima dos outros e pensando que eles são os únicos dotados de entendimento.

CXXV.
Para servir ou lucrar com superabundância, com tal exposição e ostentação, uma vida tão extraordinária e luxuosa como a que agora nos sobrevém. Se Adão voltasse à terra e visse nosso modo de viver, nossa comida, bebida e vestido, ele se maravilharia. Ele diria: Certamente este não é o mundo onde eu estava. Era, sem dúvida, outro Adão como eu, que apareceu entre os homens até agora. Pois Adão bebia água, comia fruto das árvores, e se tinha alguma casa, era uma cabana, sustentada por quatro forquilhas de madeira. Não tinha faca, nem ferro. E ele usava simplesmente um casaco de pele. Agora gastamos imensas contas no comer e no beber. Agora levantamos palácios suntuosos, e os decoramos com um luxo além de toda a comparação. Os antigos israelitas viviam em grande moderação e quietude. Boaz dizia: “Mergulhe o seu pão no vinagre, e refresque-se com ele.” Judéia estava cheia de gente, como lemos no livro de Josué. E uma grande multidão de pessoa nos dá uma lição para viver com moderação.

CXXVI.
Adão, nosso pai, foi, sem dúvida, um homem muito miserável e atormentado. Foi uma pesada solidão para ele estar sozinho em um mundo tão vasto e grandioso. Mas quando ele conheceu Eva, sua única companheira e amante, nasceu Caim, e então houve grande alegria. Mas, quando Abel nasceu, logo seguiu uma grande tribulação, miséria e tristeza de coração. Um irmão matou o outro, Adão perdeu um filho e o outro foi banido de sua vista. Esta foi certamente uma grande cruz e tristeza, de modo que o assassinato casou-lhe mais sofrimento do que a queda. Mas ele, com a sua amorosa Eva, foi reduzido novamente a um tipo de vida solitária. Depois, quando tinha cento e trinta anos, nasceu Seth. Miserável foi a sua queda, pois durante novecentos anos viu a ira de Deus na morte de cada criatura humana. Ah! Nenhuma criatura humana pode conceber as suas perplexidades: os nossos sofrimentos, em comparação com os dele, são inteiramente brinquedos de crianças. Mas depois foi confortado e renovado com a promessa, pela fé, através da semente da mulher.

CXXVII.
Todos os animais selvagens são bestas da lei, pois vivem em temor e tremor. Eles têm toda a carne morena e negra, por causa do seu temor. Mas os animais domesticados possuem carne branca, porque eles são animais bondosos. Eles vivem em segurança com a humanidade.

CXXVIII.
Depois que Adão perdeu a justiça em que Deus o criou, ele estava, sem dúvida, muito deteriorado em força corporal, por causa de sua angústia e tristeza de coração. Creio que antes da queda ele poderia ver objetos a cem milhas de distância, melhor do que podemos vê-los em meia milha, e assim em proporção com todos os outros sentidos. Sem dúvida, depois da queda, ele disse: “Ah, Deus, o que aconteceu comigo, sou cego e surdo.” Foi uma queda horrível. Porque, antes, todas as criaturas lhes eram obedientes, para que pudesse brincar até mesmo com uma serpente.

CXXIX.
Vinte anos é apenas um curto período de tempo, contudo, nesse curto espaço de tempo, o mundo estava vazio, não havia casamento ou produção de crianças. Deus reúne para si uma igreja cristã a partir de crianças pequenas. Pois eu creio que, quando uma criança de um ano morre, sempre um, sim, dois mil morrem com ele, daquela idade ou mais jovem ainda. Mas quando eu, Luther, morrer, tenho sessenta e três anos, creio que daqui entre os sessenta e cem anos, morrerão mais pessoas na mesma idade ou mais. Porque agora as pessoas não envelhecem. São poucas pessoas que vivem para os meus anos. A humanidade não é outra coisa senão um caos de ovelhas, onde somos mortos e abatidos pelo diabo. Quantos tipos de mortes estão em nossos corpos? Não há nada além da morte.

CXXX.
É no poder do pai deserdar uma criança desobediente. Deus ordenou, por meio de Moisés, que os filhos desobedientes fossem apedrejados até a morte, de modo que um pai possa claramente deserdar um filho, contudo, com esta ressalva, que, após melhoramento e emenda, ele o restabeleça.

CXXXI.
Quais necessidades tinham nossos antepassados sobre os alimentos além de frutas e ervas, vendo estes provados tão bem e dando mais trabalho? As romãs e as laranjas, sem dúvida, deram um cheiro tão doce e agradável, que só com o cheiro ficaria satisfeito. Estou certo de que Adão, antes de sua queda, nunca quis comer uma perdiz. Mas o dilúvio estragou tudo. Não podemos comer todas as coisas só porque Deus criou todas as coisas. Os frutos foram criados principalmente como alimento para as pessoas e animais. Estes últimos foram criados para louvarmos a Deus. Para onde servem as estrelas o seu Criador? Para onde servem os corvos e invocam o Senhor para os alimentarem?

CXXXII.
Não há dúvida de que todas as coisas criadas têm degenerado por causa do pecado original. A serpente era um animal alto, nobre, comendo sem medo da mão de Eva, mas depois que foi amaldiçoado, perdeu seus pés, e passou a rastejar e comer na terra. Foi algo preciso porque a serpente, naquela época, era a mais bela das criaturas que Satanás selecionou para o seu trabalho, pois o diabo gosta de beleza, sabendo que a beleza atrai os homens para o mal. O tolo não provoca heresia, nem serva deformada ao libertino, nem de água à embriaguez, nem os trapos à vaidade. Considere que o corpo de uma criança é mais puro e belo do que de uma pessoa adulta. É porque a infância se aproxima mais do estado de inocência em que Adão viveu antes de sua queda. Em nossa triste condição, nosso único consolo é a expectativa de uma outra vida. Aqui em baixo tudo é incompreensível.

CXXXIII.
O Dr. Lutero, segurando uma rosa na mão, disse: “É uma obra magnífica de Deus: um homem poderia fazer uma tal rosa como essa, ele seria considerado digno de toda honra, mas os dons de Deus perderiam seu valor diante dos nossos olhos, desde o seu infinito. Quão maravilhoso é a semelhança entre as crianças e seus pais. Um homem terá uma meia dúzia de filhos, todos como ele assim como tantas ervilhas são como os outros, e estes filhos com igual exatidão de semelhança, e assim por diante. Os pagãos perceberam essas semelhanças. Dido diz para Enéias:

“Si mihi parvulus Aeneas luderet in aula. Qui te tantum ore referret”

Era uma forma de maldição entre os gregos, para um homem desejar que o filho de um inimigo pudesse ser diferente da cara dele.

CXXXIV.
É maravilhoso saber como a terra é fertilizada por correntes de água indo em todas as direções e constantemente reabastecida pela neve, chuva e orvalho.

 

Fonte: CRTA - Center for Reformed Theology and Apologetics - reformed.org
Tradução: Marcell de Oliveira sendo que os comentários do XLIII ao CV foram traduzidos pelo Portal Luterano - luteranos.com.br

 


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