CONVERSAS À MESA (TISCHREDEN) PT. 3/47 - DA PALAVRA DE DEUS


Categoria: Conversas à Mesa [Tischreden]
Imagem: Martinho Lutero (no centro) - eBiografia
Publicado: 19 de Janeiro de 2017, Quinta Feira, 19h20

I.
Que a Bíblia é a palavra de Deus e o seu Livro, eu o provo desta forma: Todas as coisas que existiram e existem no mundo e a forma sob a qual existem encontram-se descritas no primeiro livro de Moisés sobre a criação; exatamente como Deus criou e deu forma à terra, e assim a terra permanece até hoje. Potentados infinitos se iraram contra esse livro e tentaram destruí-lo e exterminá-lo – o rei Alexandre Magno, os príncipes do Egito e da Babilônia, os monarcas da Pérsia, da Grécia e de Roma, os imperadores Júlio e Augusto – porém eles não prevaleceram; estão todos liquidados e extintos, enquanto que o Livro permanece e permanecerá para sempre, perfeito e intacto, como foi dito primeiro. Quem o assim auxiliou – quem o assim protegeu contra tais forças poderosas? Com certeza ninguém, a não ser Deus mesmo que é o senhor de todas as coisas. E não se trata de um milagre pequeno Deus tem preservado e protegido esse Livro; pois o diabo e o mundo são-lhe inimigos furiosos. Acredito que o maligno tenha destruído muito bons livros da igreja, da mesma forma que outrora matou e destruiu muitas pessoas piedosas, cuja memória agora está esquecida, porém a Bíblia Deus de bom grado deixou subsistir. Da mesma forma, o batismo, o sacramento do altar, o verdadeiro corpo e sangue de Cristo e o ofício da pregação permaneceram até nós, a despeito de uma infinidade de tiranos e de perseguidores heréticos. Deus, pelo seu poder único, conservou tais coisas; vamos, então, sem medo de impedimento batizar, administrar o sacramento e pregar. Homero, Virgílio e outros escritores nobres, finos e profícuos legaram-nos livros de longa antiguidade, mas estes representam zero em relação à Bíblia.

Enquanto a igreja papista preponderava, a Bíblia nunca foi franqueada às pessoas em uma forma tal que pudesse ser lida de forma clara, inteligível, segura e fácil, como agora podem fazê-lo na versão em alemão que, graças a Deus, preparamos aqui em Wittenberg.

II.
As Escrituras Sagradas estão repletas de dádivas e de virtudes divinas. Os livros dos idólatras nada ensinam de fé, esperança ou caridade; não apresentam sequer uma idéia dessas coisas; contemplam apenas o presente e o que o homem, com o uso de sua razão material, pode depreender e entender. Não buscam aí nenhuma partícula de esperança ou confiança em Deus. Porém vejam como os Salmos e o Livro de Jó tratam a fé, a esperança, a resignação e a prece; em resumo, a Escritura Sagrada é o maior e o melhor dos livros, repleto de conforto em todas as situações de aflições e provações. Ela nos ensina a ver, a sentir, a entender e a compreender a fé, a esperança e a caridade de forma muito diferente que a mera razão humana pode fazê-lo; e quando o mal nos oprime, ela nos ensina como tais virtudes iluminam a escuridão e de como, após esta nossa mísera existência na terra, existe uma outra e eterna vida.

III.
São Jerônimo, após ter revisto e corrigido a Septuaginta (versão grega do Velho Testamento, geralmente denotada pelo símbolo LXX, feita para os judeus de fala grega de Alexandria, e dita como tendo sido trabalho de 70 tradutores empregados por Ptolomeu Filadelfo, rei do Egito, em cerca de 280 a.C), traduziu a Bíblia do hebreu para o latim. Sua versão ainda é utilizada em nossa igreja. Sem dúvida alguma, esse foi um trabalho suficiente e de sobra para um homem. Nulla enim privata persona tantum efficere potuisset. Caso tivesse ele chamado para ajudá-lo um ou dois homens eruditos, teria sido o mesmo, pois que o Espírito Santo teria assim se manifestado a ele de forma mais poderosa, conforme as palavras de Cristo: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, lá estarei eu entre eles”. Os intérpretes e os tradutores não devem trabalhar sozinhos, pois boa e propria verba nem sempre ocorrem a uma mente.

IV.
Não devemos criticar, explicar ou julgar as Escrituras por meio de nossa própria razão, mas devemos meditar sobre elas e buscar seu significado de forma diligente e com oração. O diabo e as tentações também nos oferecem oportunidade de aprender e de entender as Escrituras pela experiência e pela prática. Sem isso, nunca entenderíamos as Escrituras, ainda que de forma diligente as leiamos e as ouvimos. O Santo Espírito deve aqui ser nosso único mestre e educador e que a juventude não se acanhe de aprender com esse preceptor. Quando me sinto atacado por tentações, imediatamente pego algum texto da Bíblia que Jesus me concede, como este: porque ele morreu por mim, do que obtenho infinito conforto.

V.
Aquele que se fez mestre dos princípios e do texto das palavras, corre risco mínimo de cometer erros. Um teólogo deve ter pleno domínio da base e da fonte da fé – ou seja, das Escrituras Sagradas. Investido desse conhecimento é que eu confundi e silenciei todos os meus adversários; pois que eles não buscam se aprofundar a entender as Escrituras; eles as examinam brevemente, com negligência e displicência; eles falam, escrevem e ensinam de acordo com suas imaginações negligentes. Meu conselho é que retiremos água da verdadeira fonte e nascente, ou seja, que examinemos as Escrituras de forma diligente. Aquele que possui de forma completa o texto da Bíblia é um eclesiástico consumado. Um único versículo, uma sentença do texto, é muito mais instrutivo que uma gama completa de interpretações e comentários que não são nem enfaticamente penetrantes nem armadura de prova. Por exemplo, quando me defronto com o texto de São Paulo: “Tudo o que Deus criou é bom, e, recebido com ações de graças, nada é recusável”, esse texto mostra que o que Deus fez é bom. Agora Deus criou o comer, o beber, o casar-se, etc., conseqüentemente, isso é bom. No entanto, os intérpretes dos pais primitivos são contra esse texto: pois Bernardo, Basílio, Jerônimo e outros escreveram para finalidades bem diferentes. Mas eu prefiro o texto a todos eles, embora, no pontificado, as interpretações falsas eram consideradas de valor mais elevado que o texto transparente e claro.

VI.
Não sejamos privados da Bíblia, mas com diligência, em temor e na invocação a Deus, a leiamos e a preguemos. Enquanto isso permanece e floresce, tudo prospera com o estado; é a cabeça e a imperadora de todas as artes e faculdades. Deixemos apenas a divindade vir, e não darei importância alguma para o restante.

VII.
Os eclesiásticos da escola, com suas especulações sobre os escritos sagrados, tratam de puras vaidades, em meras imaginações derivadas da razão humana. Bonaventura, que está repleto delas, quase me ensurdeceu. Procurei aprender em seus livros como Deus e a minha alma se reconciliaram, mas não encontrei nenhuma informação dele. Eles falam muito da união do bem e do entendimento, mas isso é uma fantasia inútil. A divindade certa, prática é esta: Creia em Cristo e cumpra o seu dever naquele estado de vida ao qual Deus o chamou. Da mesma forma, o livro A divindade mística de Dionísio é mera fábula e mentira. Com Platão, ele diz o palavreado oco: Omnia sunt non ens, et omnia sunt ens – (tudo é algo e tudo é nada) – e, assim, deixa as coisas pendentes.

VIII.
O Dr. Justus Jonas fez a seguinte observação à mesa de Lutero: Existe nas Escrituras Sagradas uma sabedoria tão profunda que nenhum homem pode estudá-la ou compreendê-la completamente. “Ah”, disse Lutero, “nós devemos sempre permanecer estudantes nisso; não podemos sondar a profundidade de um simples versículo das Escrituras, nós conhecemos apenas o A,B,C e isso de modo imperfeito. Quem pode se exaltar quanto à compreensão desta uma linha de São Pedro: “Alegrem-se por estarem tomando parte nos sofrimentos de Cristo” [1Pe 4.13]. Aqui São Pedro desejava que nos regozijássemos de nossa mais profunda miséria e tribulação, como uma criança que beija o açoite”.

IX.
As Escrituras Sagradas superam, em eficácia, todas as artes e todas as ciências dos filósofos e dos juristas; essas, embora boas e necessárias para a vida aqui embaixo, são vazias e de nenhum efeito no que concerne à vida eterna. A Bíblia deve ser considerada com olhos totalmente diferentes daqueles com os quais vemos outras produções. Aquele que a si se renuncia e não se fia na mera razão humana, fará bons avanços nas Escrituras; porém o mundo não os entende, pela ignorância de que a mortificação é que é a dádiva da Palavra de Deus. Pode aquele que não entende a Palavra de Deus entender as obras de Deus? Isso é manifesto em Adão. Ele chamou seu primogênito de Caim – ou seja, possuidor, senhorio. Adão e Eva pensaram que esse filho seria o homem de Deus, a semente abençoada que esmagaria a cabeça da serpente. Posteriormente, quando Eva estava novamente gestante, eles desejaram ter uma filha, para que seu filho amado, Caim, pudesse ter uma esposa, mas Eva que estava gestante novamente de um menino, pôs-lhe o nome de Abel – ou seja, vazio e nulidade, como se disesse: minha esperança se foi e eu estou desapontada. Essa foi uma imagem do mundo e da igreja de Deus, mostrando como as coisas sempre foram. O impiedoso Caim foi um grande senhor do mundo, enquanto Abel, esse homem correto e piedoso, foi um rejeitado, sujeito e oprimido. Mas diante de Deus o caso foi bem ao contrário: Caim foi o rejeitado por Deus; Abel foi aceito e recebido como a criança querida de Deus. A mesma situação existe diariamente aqui na terra; portanto, não vamos prestar atenção às suas atitudes. O nome Ismael também foi um nome justo – ouvinte de Deus – enquanto que Isaque era zero. O nome Esaú significa agente principal, o homem que deverá realizar o trabalho. Jacó era zero. O nome Absalão significa pai da paz. Essas cores tão justas e gloriosas fazem com que o ímpio sempre controle neste mundo, enquanto que na verdade e na ação são condenadores, zombadores e rebeldes à Palavra de Deus. Mas, por essa Palavra, louvado seja Deus, nós somos capazes de discernir e saber sobre tudo isso; portanto, vamos considerar a Bíblia em grande estima e lê-la de forma diligente.

Para a sabedoria mundana, parece não haver arte mais vívida ou mais fácil que a divindade e o entendimento da Palavra de Deus, de modo que as crianças do mundo serão consideradas totalmente versadas nas Escrituras e no catecismo, mas elas erram o alvo. Eu daria todos os meus dedos, com exceção dos três de que necessito para escrever, se eu pudesse considerar a divindade tão fácil e vívida como eles a consideram. A razão pela qual os homens julgam que ela assim o seja é que eles logo ficam enfadados e pensam que já sabem o bastante. Dessa forma, nós a edificamos no mundo e assim devemos conservá-la, porém in fine videbitur, cujus toni.

X.
Por muitas vezes fiz uma análise completa com a finalidade de investigar os mandamentos, porém, logo no início, ao deparar-me com “Eu sou o Senhor teu Deus”, refreou-me. Essa única palavra, Eu, levou-me ao non-plus. Aquele que tenha não mais que uma palavra de Deus diante de si, e não puder fazer um sermão com essa palavra, nunca poderá ser um pregador. Estou bastante satisfeito que eu sei, embora conheça pouco, o que é a Palavra de Deus, e estou atento para não murmurar em face de meu pequeno conhecimento.

XI.
Eu tenho fundamentado a minha pregação na palavra literal; aquele que quiser siga-me; aquele que não quiser que fique. Recorri a São Pedro, São Paulo, Moisés e a todos os santos para dizer se eles alguma vez entenderam, com fundamentos, uma só palavra de Deus, sem estudá-la de novo, de novo e de novo. O Salmo diz: Seu saber é infinito. Os Santos realmente conhecem a Palavra de Deus e podem sobre ela discursar, mas a prática é outra coisa; nela deveremos sempre permanecer aprendizes. Os teólogos da escola têm aqui uma grande semelhança, que é como se fosse uma esfera ou globo que, estando sobre uma mesa, toca-a em apenas um ponto; porém é a mesa toda que sustenta o globo. Embora eu seja um antigo doutor da divindade, até hoje ainda não fui além do aprendizado das crianças – Os Dez Mandamentos, o Credo e o Pai Nosso; e esses eu ainda não entendo tão bem como deveria, embora os estude diariamente ao orar com meu filho João e com minha filha Madalena. Se eu apreciasse completamente estas primeiras palavras do Pai Nosso: Pai nosso que estás nos Céus e cresse realmente que Deus – que fez os céus e a terra e todas as criaturas, que possui todas as coisas em suas mãos – é meu Pai, então eu certamente concluiria comigo mesmo que eu também sou um senhor dos céus e da terra e que Cristo é meu irmão, Gabriel meu servo, Rafael meu cocheiro e todos os anjos meus assistentes na necessidade, a mim dados por meu Pai celeste, para manter-me no caminho, para que eu não tropece inadvertidamente com meus pés numa pedra. Porém, para que nossa fé possa ser exercida e confirmada, nosso Pai celeste permite que sejamos jogados na masmorra, ou mergulhados n’água. Dessa forma, podemos ver quão claramente entendemos essas palavras, e como a crença se abala, e quão grande é a nossa fraqueza, de modo que começamos a pensar – Ah quem sabe até que ponto é verdade o que consta nas Escrituras?

XII.
Nenhum dano maior pode acontecer aos cristãos que o de lhes ser tirada ou falsificada a Palavra de Deus, de forma que eles já não a tenham de forma pura e clara. Deus nos conceda, e a nossos descendentes, que não sejamos testemunhas de tal calamidade.

XIII.
Quando temos a Palavra de Deus em sua forma pura e clara, então pensamos que estamos certos. Nos tornamos negligentes e nos repousamos em uma vã segurança, já não mais prestando a devida atenção, não vigiamos e oramos contra o diabo que está pronto para tirar a Palavra Divina de nossos corações. Acontece conosco como aos viajores que, conquanto estejam na estrada, estão tranqüilos e descuidados, mas se ficam perdidos na selva ou nas encruzilhadas, procuram, receosos, que caminho tomar, este ou aquele.

XIV.
Os grandes homens e os doutores não entendem a palavra de Deus, mas ela é revelada aos humildes e às crianças, como é afirmado pelo Salvador no Evangelho segundo Mateus 11.25: “Ó Pai, Senhor do céu e da terra, eu te agradeço porque tens mostrado às pessoas sem instrução aquilo que escondeste dos sábios e instruídos.” Gregório diz, bem e com propriedade, que a Escritura Sagrada é uma veio de água corrente onde tanto o elefante pode nadar e o cordeiro andar sem perder o pé.

XV.
A grande ingratidão, o desprezo pela Palavra de Deus e a teimosia do mundo fazem-me temer que a luz divina logo deixará de brilhar sobre o homem, pois a Palavra de Deus sempre teve seu trajeto certo.

Nos tempos dos reis de Judá, Baal obscureceu o brilho da Palavra de Deus e tornou-se muito difícil destruir seu império sobre os corações dos homens. Mesmo no tempo dos apóstolos, havia heresias, erros e doutrinas más, espalhadas por falsos irmãos. Depois veio Ário e a palavra de Deus foi escondida sob densas nuvens, mas os santos pais, Ambrósio, Hilário, Agostinho, Atanásio e outros, dispersaram a obscuridade. A Grécia e muitos outros paises ouviram a Palavra de Deus, mas a abandonaram desde então, e deve-se temer ainda agora que ela poderá deixar a Alemanha e ir para outras terras. Espero que o último dia não demore a chegar. A escuridão cresce densamente ao nosso redor e os servos divinos do Altíssimo se tornam cada vez mais raros. A impiedade e a licenciosidade campeiam em todo o mundo e estão vivas como porcos, como bestas selvagens, desprovidas de qualquer raciocínio. Mas uma voz logo será ouvida como um trovão: Olhem, o noivo chegou. Deus não vai tolerar esse mundo mau por muito tempo, mas virá como dia derradeiro e castigará os escarnecedores deste mundo.

XVI.
Reis, príncipes, lordes, cada um deles deverá entender o evangelho muito melhor que eu, Martinho Lutero. Ah! talvez até melhor que São Paulo, porque julgam-se esclarecidos e cheios de políticas. Mas aqui eles zombam e condenam, não a nós, pobres pregadores e ministros, mas a Deus, o Governador de todos os pregadores e ministros, que nos enviou a pregar e ensinar e que os escarnecerá e condenará de tal modo que deverão sofrer. Foi Deus que disse: “Quem toca no meu povo toca na menina dos meus olhos. Portanto, eu mesmo lutarei contra vocês. E toda a sua riqueza será levada embora por aqueles que antes eram seus prisioneiros” [Zc 2.8-9]. Os grandes governarão, porém não sabem como.

XVII.
O Dr. Justus Jonas contou ao Dr. Martinho Lutero sobre um nobre e poderoso Misnian que, acima de tudo, se ocupava em amontoar ouro e prata, e estava tão imerso na escuridão que não deu atenção aos cinco livros de Moisés, tendo mesmo dito ao Dr. John Frederic que estava discorrendo com ele sobre o Evangelho: “Senhor, o Evangelho não rende juros”. “Você não possui cereais?” Interpôs Lutero e, então, contou-lhe esta fábula: — Um leão que fazia uma grande festa, convidou todos os bichos e junto com eles alguns porcos. Quando todas as iguarias finas estavam postas diante dos convidados, o porco perguntou: “Você não tem cereais?” “No entanto”, continuou o doutor, “no entanto”, nestes dias, isso ocorre com nossos epicuristas: nós pregadores colocamos diante deles, em nossas igrejas, os pratos mais caros das mais finas iguarias, como a salvação eterna, a remissão dos pecados, e a graça de Deus; mas eles, como os porcos, viram seus focinhos e pedem moedas: ofereça noz moscada a uma vaca e ela rejeitará o feno velho. Isso me recorda de uma resposta de determinados paroquianos ao seu ministro, Ambrose R. Ele os estivera exortando com veemência a virem e ouvirem a Palavra de Deus. “Bem”, disseram eles, “se você abrir um bom barril de cerveja para nós, viremos de todo o coração e o ouviremos”. O evangelho de Wittenberg é como a chuva que se cair sobre um rio, produzirá pouco efeito, mas se descer sobre um solo seco e sedento o tornará fértil”.

XVIII.
Alguém pediu a Lutero seus salmos que estavam velhos e em farrapos, prometendo dar-lhe um novo em troca, mas o doutor o recusou porque ele estava acostumado com sua própria cópia velha, e acrescentou: “Uma memória em mãos é muito útil e eu esgotei a minha traduzindo a Bíblia”.

XIX.
Nosso caso prosseguirá, contanto que seus advogados vivos, Melanchton e outras pessoas piedosas e esclarecidas, que se aplicam com zelo ao trabalho, estejam vivas; mas após a morte delas “será uma triste queda. Temos um exemplo diante de nós, em Juízes 2.10: “Todas as pessoas daquela geração também morreram e os seus filhos esqueceram o SENHOR e as coisas que ele havia feito pelo povo de Israel” [Jz 2.10]. Assim, após a morte dos apóstolos houve desistências temerosas; não, mesmo enquanto eles ainda viviam, como se queixa São Paulo” houve desistência entre os Gálatas, os Coríntios e na Ásia. Muito sofrimento e perdas nos serão infligidas pelos Sacramentais, pelos Anabatistas, pelos Antinomistas e por outros sectários.

XX.
Oh! Que fato grande e maravilhoso é termos diante de nós a Palavra de Deus! Com ela podemos sempre nos sentir alegres e seguros, nunca teremos falta de consolação, pois vemos diante de nós, em todo o seu esplendor, o caminho puro e correto. Aquele que perde a Palavra de Deus de vista cai em desespero; a voz dos céus já não o sustenta; ele segue apenas a tendência desordenada de seu coração e da vaidade mundana que o leva para a destruição.

XXI.
Cristo ensina esses pontos de forma breve em Mateus 5–7: primeiro, quanto às oito bem-aventuranças, como cada cristão deve particularmente viver no que a ele diz respeito; em segundo lugar, do ofício de ensinar, o quê e como um homem deve ensinar na igreja, como temperar com sal e esclarecer, reprovar, e confortar e exercer a fé; em terceiro, Ele rebate e se opõe à falsa exposição da lei; em quarto, Ele condena a forma de viver má e hipócrita; em quinto, Ele ensina o que é correto e boas obras; em sexto, Ele adverte os homens das falsas doutrinas; em sétimo, Ele esclarece e soluciona o que possa ser duvidoso e confuso; em oitavo, Ele condena os hipócritas e os falsos santos, que insultam a preciosa palavra da graça.

XXII.
São Lucas descreve a paixão de Cristo melhor que os demais; João é mais completo com relação às obras de Cristo; ele descreve o público, e como a causa foi tratada e como eles procederam diante do trono do julgamento e como Cristo foi interrogado e por que causa foi ele açoitado. Quando Pilatos perguntou a Ele: “És tu o rei dos judeus?” “Sim”, disse Jesus, “Eu sou, mas não um rei como o imperador o é, pois então os meus ministros se empenhariam por mim para que não fosse eu entregue aos judeus, mas eu sou um rei enviado para pregar o evangelho e dar testemunho da verdade que devo falar. “O quê!” disse Pilatos, “logo tu és rei e tens um reino que consiste da palavra e da verdade? Então certamente tu não podes causar-me nenhum mal”. Sem dúvida, Pilatos considerou nosso Salvador Jesus Cristo com sendo um homem simples, honesto, sem instrução, um homem por acaso saído do deserto, uma pessoa simples, honesta, um eremita que nada entendia do mundo ou do governo.

XXIII.
Nos escritos de São Paulo e São João existe uma certeza, um conhecimento e plerophoria insuperáveis. Eles escrevem como se tudo o que narram tivesse acontecido diante de seus olhos.

Cristo diz com razão que São Paulo será um instrumento eleito para si; portanto, ele se tornou doutor e, portanto, falou da causa com toda a certeza. Quem lê Paulo pode, com uma consciência segura, confiar em suas palavras. De minha parte, nunca li escritos mais sérios.

São João, em seu evangelho, descreve Cristo que é um homem verdadeiro e natural, a priori, de tempos idos: “Antes de ser criado o mundo aquele que é a Palavra já existia” [Jo 1.1]; e “que todos respeitem o Filho, assim como respeitam o Pai” [Jo 5.23]. Mas Paulo descreve Cristo, a posteriori et effectu, do que se segue, e conforme as ações ou palavras, como, “Não devemos pôr à prova a paciência de Cristo…”, “Examinem-se para descobrir se vocês estão firmes na fé”, etc.

XXIV.
O Livro dos Provérbios de Salomão é um ótimo livro que os dirigentes e governantes deveriam ler diligentemente, pois contém lições que tratam da ira de Deus, em que os governantes e os dirigentes deveriam se exercitar.

O autor do Livro de Eclesiastes prega bem a lei, mas ele não é profeta. Não é obra de Salomão, não mais que o livro de Provérbios de Salomão. São ambas coleções feitas por outras pessoas.

O terceiro livro de Esdras, eu lanço no rio Elba; no quarto livro, já existem habilidades suficientes, como: “O vinho é forte, o rei é mais forte, a mulher é a mais forte de todos, mas a verdade é mais forte que tudo isso”.

O livro de Judite não é uma história. Ele não concorda com a geografia. Eu creio que seja um poema, como as legendas dos santos, composto por um determinado homem bom, com o propósito de ele poder demonstrar como Judite, uma personificação dos judeus, como povo temente a Deus, por quem Deus é conhecido e confessado, venceu e derrotou Holofernes, ou seja, todos os reinos do mundo. Esse é um trabalho figurativo, como aquele de Homero sobre Tróia e o de Virgílio sobre Enéas, onde se demonstra como um grande príncipe deve ser adornado com valor insuperável, como um bravo campeão, com sabedoria e entendimento, grande coragem e entusiasmo, sorte, honra e justiça. Estabelecer como será o fim dos tiranos é uma tragédia. Considero o livro de Tobite uma comédia a respeito das mulheres, um exemplo de gerenciamento da casa. Sou tão averso ao segundo livro de Macabeus e de Ester que gostaria que eles não tivessem chegado a nós, porque eles contêm muitas não-naturalidades idólatras. Os judeus apreciaram muito mais o livro de Ester que qualquer um dos profetas; embora eles fossem proibidos de lê-lo até que atingissem a idade de trinta anos, em face dos assuntos místicos que ele contém. Eles condenam Daniel e Isaías, aqueles dois profetas santos e gloriosos, dos quais o primeiro prega a Cristo da maneira mais clara, enquanto que o outro descreve e retrata o reino de Cristo, bem como as monarquias e os impérios do mundo que o precederam. Jeremias vem, porém após eles.

Os discursos dos profetas não foram nenhum deles à época anotados por escrito; seus discípulos e ouvintes os colecionaram e posteriormente, um, uma peça, uma outra e assim se formou a coleção completa.

Quando o doutor Justus Jonas havia traduzido o livro de Tobias, ele escutou Lutero nisso e disse: “Existem muitas coisas ridículas neste livro, especialmente sobre as três noites e o fígado grelhado do peixe, com o que o diabo ficou temeroso e foi afugentado”. Ao que Lutero disse: “Isso é uma imaginação (pensamento) dos judeus; o diabo, um inimigo feroz e poderoso, não seria afugentado dessa maneira, pois ele tem a lança de Golias, mas Deus lhe deu essas armas para que elas, quando ele for vencido pelos devotos, serão o maior terror e vergonha para ele. Daniel e Isaías são excelentes profetas. Eu sou Isaías — seja isso falado com humildade — para propagação da honra de Deus, cujo trabalho é sozinho e para ofender o diabo. Filipe Melancthon é Jeremias; esse profeta sempre estava temeroso, mas mesmo assim Deus está com Melancthon”.

XXV.
No livro de Juízes são descritos os destemidos campeões e libertadores que foram enviados por Deus. Acreditando e confiando totalmente nele, conforme o Primeiro Mandamento: eles se comprometeram em suas ações e empreendimentos a Deus e deram graças a ele; eles confiaram apenas no Deus dos céus e disseram: Senhor Deus, tu tens feito essas coisas e não nós; somente a ti seja a glória. O livro dos Reis é excelente — cem vezes melhor que o de Crônicas, que constantemente omite os fatos mais importantes, sem quaisquer detalhes que sejam.

O livro de Jó é admirável; ele não é escrito apenas com relação a si próprio, mas também para o conforto e consolo de todos os corações entristecidos, atormentados e perplexos que resistem ao diabo. Quando ele percebeu que Deus começara a ficar zangado com ele, ele se tornou impaciente e ficou muito ofendido; fazia-lhe vergonha e trazia-lhe tristeza que os ímpios prosperassem tanto. Conseqüentemente, deve servir de consolo aos pobres cristãos que são perseguidos e que sofrem, que, na vida do porvir, Deus lhes concederá grandes e gloriosos benefícios e riqueza e honra que duram para sempre.

XXVI.
Não precisamos nos admirar que Moisés descreveu, de forma tão sucinta, a história dos antigos patriarcas quando vemos que os Evangelistas, em modo mais sucinto, descrevem os sermões do Novo Testamento, discorrendo resumidamente sobre eles, dando senão um detalhe das pregações de João Batista que foram, sem dúvida, das mais belas.

XXVII.
São João, o Evangelista, fala de forma majestosa, porém com palavras bem claras e simples, como onde diz: “Antes de ser criado o mundo, aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e era Deus. Desde o princípio, a Palavra estava com Deus. Por meio da Palavra, Deus fez todas as coisas, e nada do que existe foi feito sem ela. A Palavra era a fonte da vida, e essa vida trouxe a luz para todas as pessoas. A luz brilha na escuridão, e a escuridão não conseguiu apagá-la” [Jo 1.1-5]

Veja como ele descreve Deus, o Criador, e também suas criaturas, em linguagem simples e clara, como um raio de sol. Se um de nossos filósofos ou homens eruditos o tivessem escrito que palavras bombásticas e habilmente alegadas teriam eles ostentado, de ente et es senti, de modo que nenhum homem poderia entender o que queriam dizer. “Isso é uma grande lição, como a poderosa verdade divina é, que inculca, embora se encerre sempre tão próxima; quanto mais ela for lida, mais ela age e domina o coração”.

XXVIII.
Os Salmos de Davi são de várias espécies — didáticos, proféticos, eucarísticos, catequéticos. Dentre os proféticos, devemos ressaltar em especial o 110, Dixit Dominus; e dentre os didáticos o Miserere Mei, o De profundis e o Domine, exaudi orationem. O 110 é muito bom. Ele descreve o reino e o sacerdócio de Jesus Cristo e o declara Rei sobre todas as coisas e o intercessor para todos os homens, a quem todas as coisas foram entregues por seu Pai e que tem compaixão de todos nós. “Esse é um Salmo nobre; se eu estivesse bem, iria esforçar-me para tecer um comentário sobre ele”.

XXIX.
O Dr. Lutero foi interrogado se a história do homem rico e de Lázaro era uma parábola ou um fato real. Ele respondeu: A parte inicial da é, evidentemente, histórica: as pessoas, as circunstâncias, a existência dos cinco irmãos, tudo isso é fornecido em detalhes. A referência à Abraão é alegórica e digna de grande observação. Aprendemos por ela que existem domicílios a nós desconhecidos, onde as almas dos homens se encontram, cujos segredos não devemos inquirir. Nenhuma referência é feita sobre a sepultura de Lázaro, daí podemos julgar que, aos olhos de Deus, a alma ocupa muito mais lugar que o corpo. O pensamento de Abraão é a promessa e a garantia da salvação e a esperança de Jesus Cristo, não os céus propriamente, mas a esperança dos céus.

XXX.
Antes de o Evangelho chegar a nós, os homens costumavam se submeter a infindáveis trabalhos e custos e a fazer perigosas jornadas a São Tiago de Compostela para buscar o favor de Deus. Mas, agora que Deus, em sua Palavra, traz-nos seu favor gratuitamente, confirmando-os com seus sacramentos, dizendo, A não ser que tu creias, certamente perecerás, nada teremos de seu favor.

XXXI.
Eu vivi para assistir à maior praga da terra: a condenação da Palavra de Deus, uma coisa temerosa, que suplanta todas as demais pragas do mundo; pois por isso, com toda a certeza, seguem todas as formas de punição, eterna e corporal. Se eu desejasse a um homem todas as pragas e maldições mais amargas, eu desejaria a ele a condenação da Palavra de Deus, pois então ele teria todas elas de imediato, vindas sobre ele, tanto infortúnios internos quanto externos. A condenação da Palavra de Deus é o presságio dos castigos de Deus, como os exemplos testemunhados nos tempos de Ló, de Noé e de nosso Salvador.

XXXII.
Quem quer que reconheça que os escritos dos Evangelistas são a Palavra de Deus, com eles queremos discutir. Quem quer que negue isso; com eles não queremos trocar uma só palavra; nós não podemos conversar com aqueles que rejeitam os primeiros princípios.

XXXIII.
Em todas as ciências, os mestres mais hábeis são aqueles que dominam completamente os textos. Um homem, para ser um bom advogado, deve conhecer todos os textos das leis nas pontas dos dedos, mas em nossa época, ao contrário, a atenção é dirigida a glossários e a comentários. Quando eu era jovem, eu li a Bíblia de novo, de novo e de novo e estava familiarizado com ela de forma tão perfeita que eu podia, em um instante, indicar qualquer versículo que pudesse ser mencionado. Depois, eu li os comentaristas, mas eu logo os descartei, pois encontrei aí muitas coisas que minha consciência não poderia aprovar, como ser contrário ao texto sagrado. É sempre preferível enxergar com os próprios olhos do que com os olhos dos outros.

As palavras do idioma Hebraico possuem uma energia peculiar. É impossível transmitir tanto, de forma tão sucinta, em qualquer outro idioma. Para torná-las compreensíveis, não devemos tentar confrontar palavra com palavra, mas ter por objetivo apenas o sentido e a idéia. Na tradução de Moisés, eu fiz um esforço para evitar o Hebraismo; esse é um trabalho árduo. Os intelectuais que aparentam maior conhecimento que eu sobre o assunto, levam-me a censurar uma palavra aqui e ali. Se eles tentassem fazer o trabalho que eu completei, eu encontraria mil erros graves deles contra um meu.

XXXV.
Bullinger me disse que ele era contra os sectários como condenadores da Palavra de Deus e também contra aqueles que insistiam muito na Palavra literal que, dizia ele, pecavam contra Deus e contra seu poder, como os judeus o fizeram ao nomear o arco, Deus. Mas aquele que mantém uma média entre ambos, entende o uso correto dos sacramentos. Ao que eu respondi: Por esse erro, você separa a Palavra do espírito; aqueles que pregam e ensinam a Palavra, de Deus que comanda o batismo. Você assegura que o Espírito Santo é dado e opera sem a Palavra, cuja Palavra, você diz, é um sinal e uma marca eterna para encontrar o espírito que já possui o coração; segundo você, se a Palavra não encontrar o espírito, mas para uma pessoa ímpia, então ela não é a Palavra de Deus; definindo e fixando, dessa forma, a Palavra, não de acordo com Deus, que a fala, mas conforme as pessoas a cogitam e a recebem. Você aceita como verdadeiro que, para ser a Palavra de Deus, que purifica e traz paz e vida, mas quando ela não opera para os ímpios, ela não é a Palavra de Deus. Você ensina que a Palavra em seu exterior é um objeto ou pintura, significando e representando algo; você mensura seu uso apenas conforme o assunto, como uma criatura humana fala de si própria; você não aceita como verdadeiro que a Palavra de Deus é um instrumento pelo qual o Espírito Santo opera e realiza sua obra e prepara um início à retidão ou justificação.

Um cristão verdadeiro deve acreditar que a Palavra que é proferida e pregada aos iníquos, aos hipócritas e aos ímpios é a mesma Palavra de Deus, aquela que é pregada aos cristãos piedosos, corretos, e que a verdadeira igreja Cristã se encontra entre os pecadores, onde o bom e o mau se encontram misturados. E que a Palavra, quer ela produza frutos ou não, é, contudo, o poder de Deus que salva todo aquele crê. É certo que também julgará os ímpios, (São João, c.v.), de outra forma, esses poderiam dar uma boa desculpa para Deus, de que eles não deveriam ser condenados, visto que não tiveram a Palavra de Deus e, dessa forma, não a receberam. Eu, porém, ensino que as palavras dos pregadores, a absolvição e os sacramentos não são as suas palavras ou obras, mas a lavagem, a absolvição e a união, etc. de Deus; somos apenas instrumentos ou auxiliares por meio dos quais Deus opera. Vocês dizem que é o homem quem prega, reprova, absolve, conforta etc., no entanto é Deus que limpa os corações e perdoa; mas eu digo, que Deus mesmo prega, intimida, reprova, assusta, conforta, absolve, administra os sacramentos, etc. Como o Nosso Senhor Jesus Cristo diz “Qualquer que o ouvir a mim me ouve e o que você desligar na terra será desligado no céu” etc. E novamente: Não é você que fala, mas o Espírito de seu Pai que fala por ti”.

Tenho convicção e certeza que quando eu subo ao púlpito para pregar ou para ler, não é a minha Palavra que eu falo, mas que a minha língua é a pena de um escritor consumado, como o Salmista a tem. Deus fala pelos profetas e pelos homens de Deus, como diz São Pedro em sua epístola: “Os homens de Deus falavam como que se movidos pelo Espírito Santo”. Assim, não devemos separar ou apartar Deus e homem, conforme nossa razão e entendimento natural. De forma semelhante, cada ouvinte deve dizer: Eu não estou ouvindo São Paulo, São Pedro ou a um homem falando, mas sim a Deus mesmo. “Se eu fosse devotado à Palavra de Deus durante todo o tempo indiferentemente, e sempre tivesse esse amor e desejo por Ela, com às vezes tenho, então eu me consideraria o mais abençoado homem sobre a terra. Mas o querido apóstolo Paulo também falhou nesse aspecto, quando se queixa, entre suspiros, dizendo: “Eu vejo outra lei em meus membros contrária à lei em minha alma.” A Palavra deve ser falsa porque Ela nem sempre dá frutos? A busca pela Palavra tem sido, desde o começo do mundo, fonte de grande perigo; poucas pessoas podem compreendê-la, a menos que Deus, através de seu Santo Espírito, a ensine em seus corações”.

Bullinger, tendo ouvido atentamente a esse discurso, ajoelhou-se e expressou estas apalavras: “Oh! feliz hora que me permitiu ouvir a esse homem de Deus, o eleito escolhido do Senhor, declarando sua verdade! Eu repudio e de forma veemente renuncio a meus erros do passado, assim abatido pela Palavra infalível de Deus”. Ele então se levantou e colocou os braços em volta do pescoço de Lutero e ambos choraram lágrimas de alegria.

XXXVI.
Frosheim disse que o primeiro dos cinco livros de Moisés não fora escrito pelo próprio Moisés. O Dr. Lutero respondeu: O que importa, mesmo que Moisés não o tenha escrito? De qualquer forma, é o livro de Moisés onde é relatada de forma exata a criação da Palavra. Não se deve dar atenção a objeções fúteis como essas.

XXXVII.
Em casos de religião e que dizem respeito à Palavra de Deus, devemos estar certos e seguros, sem vacilar, para que em tempos de provação e tentação seu reconhecimento deve ser distinto e não possamos depois dizer, Non putarem; um caminho que em assuntos temporais sempre envolve bastante perigo, porém na divindade, é duplamente enganoso. Assim, os canônicos, os hipócritas do papado, e outros heréticos, são apenas quimeras; na face tendo a aparência de uma virgem justa, mas o corpo sendo como um leão, e a cauda como uma cobra. Mesmo assim, está com sua doutrina; ela brilha e tem um aspecto justo e o que ensina é agradável à inteligência e à apreciação mortal e ganha reputação. Depois, à maneira do leão, ela arrebenta pela força, pois todos os falsos ensinadores comumente usam o braço secular, mas ao final, ela se mostra uma doutrina escorregadia, tendo, como uma cobra, uma pele lisa, escorregando entre as mãos.

Uma vez certos de que a doutrina que pregamos é a Palavra de Deus, uma vez que temos certeza disso, podemos sobre isso construir, e saber que essa causa irá e deverá continuar; o maligno não será capaz de derrubá-la, muito menos o mundo será capaz de arrancá-la, por maior que seja sua fúria. Eu, graças a Deus, tenho certeza de que a doutrina que eu ensino é a Palavra de Deus e retirei de meu coração todas as doutrinas e crenças, ou qualquer que seja o nome, que não concordem com a Palavra de Deus. Eu assim venci as grandes tentações que às vezes me atormentam: É você, perguntou-me o pensamento interior diabólico, o único homem que possui a Palavra de Deus pura e clara, tendo todos os outros falhado nisso? Pois assim Satanás nos envergonha e investe contra nós, sob o nome e o título da igreja de Deus; porque, diz ele, aquela doutrina que a igreja Cristã manteve por tantos anos e estabeleceu como correta, você pretende rejeitar e derrubar como sua nova doutrina, como se aquela fosse falsa e errônea, e assim criar problemas, alteração e confusão, tanto no governo espiritual como temporal?

Eu encontro esse argumento do diabo em todos os profetas, a quem os governantes, tanto na igreja como no estado, sempre censuraram, dizendo: Somos o povo de Deus, colocados e ordenados por Deus em um governo estabelecido, o que fixamos e reconhecemos como correto, que precisa e deve ser observado. Que tolos são vocês que pretendem nos ensinar, da maior e melhor parte, tendo vocês senão uma mão cheia? Certamente, neste caso, não devemos estar apenas bem armados com a Palavra de Deus e versados Nela, mas devemos também ter certeza da doutrina, ou não resistiremos ao combate. Um homem deve estar apto a afirmar, eu tenho certeza de que o que ensino é apenas a Palavra da altíssima majestade de Deus nos céus, sua verdade de conclusão final, eterna, imutável e qualquer coisa que não corrobore ou não concorde com essa doutrina é totalmente falsa e engendrada pelo diabo. Eu tenho diante de mim a Palavra de Deus que não pode falhar e nem as portas do inferno prevalecem sobre Ela; e assim continuarei, a despeito de o mundo todo estar contra mim. E, além disso, tenho este conforto que Deus diz: Eu lhe darei pessoas e ouvintes que a receberão; lance suas preocupações sobre mim; eu te defenderei, apenas continues tu firme e constante na minha Palavra.

Não devemos considerar o que ou como o mundo nos estima, assim temos o mundo puro e estamos certos de nossa doutrina. Dessa forma, Cristo, em João 8. “Quem dentre vós me convence de pecado?” Todos os apóstolos estavam certos de sua doutrina e São Paulo, de forma especial, insiste na Plerophoria quando diz a Timóteo: “É uma querida e preciosa Palavra que Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores”. A fé com relação a Deus em Cristo precisa ser certa e constante, de forma que possa consolar e alegrar a consciência e deixá-la descansar. Quando um homem possui essa certeza, ele venceu a serpente, porém se ele tiver dúvida sobre a doutrina, é-lhe muito perigoso disputar com o maligno.

XXVIII.
A palavra de Deus é uma couraça de fogo; de mais substância e mais pura que o ouro, que testada no fogo, nada perde de sua substância, mas resiste e vence toda a fúria do calor ardente; de forma que aquele que acredita na Palavra de Deus sobrepuja tudo e permanece seguro para sempre, contra todos os infortúnios, pois sua couraça nada teme, nem o inferno nem o diabo.

XXXIX.
Eu nunca pensei que o mundo houvera sido tão mau quando o Evangelho começou, como eu agora o vejo; pelo contrário, desejei que cada um pulasse de alegria por encontrar-se livre da poluição do papa, de seus lamentáveis incômodos das pobres consciências aflitas de que, por meio de Cristo, elas obteriam pela fé o tesouro celestial que procuravam anteriormente com tanto custo e trabalho, embora em vão. E pensei em especial que os bispos e as universidades iriam, com regozijo de coração receber as doutrinas puras, mas fiquei lamentavelmente decepcionado. Moisés e Jeremias também se queixaram que haviam ficado decepcionados.

XL.
Os agradecimentos que o mundo agora oferece à doutrina do evangelho são os mesmos que deu a Cristo, ou seja, a cruz; isso é o que devemos esperar. Este ano é o ano da ingratidão do homem: o próximo será o ano do castigo de Deus; pois Deus precisa da punição, embora isso seja contra sua natureza, assim o teremos.

XLI.
Ah! Quão ímpio e ingrato é o mundo, assim a condenar e a perseguir a graça inefável de Deus.! E nós – nós mesmos – que nos vangloriamos do evangelho e sabemos ser ele a Palavra de Deus e reconhecemo-la como tal, ainda não a matemos em maior estima e respeito que o fazemos com Virgílio ou Terêncio. Na verdade, estou menos temeroso do papa e de seus tiranos do que estou com nossa ingratidão com relação à Palavra de Deus: é isso que colocará o papa novamente no comando. Mas, primeiro, espero que o dia do julgamento venha.

XLII.
Deus possui suas fitas de medição e seus cânones, chamados os Dez Mandamentos; eles estão escritos em nossa carne e sangue: a sua soma é esta: O mesmo que farias a ti, faça-o ao outro”. Deus insiste nesse ponto, dizendo: “Com a medida que medires, serás medido”. Com essa fita de medição, Deus marcou o mundo todo. Aqueles que viverem e agirem dessa forma, bem isso é com eles, pois Deus os recompensa ricamente nesta vida.

XLIII.
É verdade que Deus fala conosco através das Sagradas Escrituras? Se você duvida disso, então deve pensar em seu coração que Deus é um mentiroso, aquele que diz uma coisa e não a executa; mas você pode ter certeza quando Ele abre a boca, é tanto quanto três mundos. Deus, com uma única palavra, moldou o mundo inteiro. No Salmo XXXIII diz: “Quando ele fala, isto é feito, quando ele comanda, está pronto”.

XLIV.
Devemos fazer uma grande diferença entre a Palavra de Deus e a palavra do homem. A palavra do homem é um som pequeno, que voa para o ar, e logo desaparece. Mas, a Palavra de Deus é maior do que o céu e a terra, sim, maior do que a morte e o inferno, pois faz parte do poder de Deus e permanece eternamente. Devemos, portanto, estudar diligentemente a Palavra de Deus, conhecer e ter a certeza que o próprio Deus nos fala. Isto foi o que Davi viu e creu, e disse: “Deus falou em sua santidade; Devemos também estar contentes. Mas esta alegria é muitas vezes misturada com tristeza e dor, de que, novamente, Davi é um exemplo, que sofreu várias provações e tribulações em conexão com o assassinato e adultério que tinha cometido. Não foi uma lua de mel para ele, quando foi caçado de um lugar para o outro, mas ele permaneceu até o fim no temor de Deus. No segundo Salmo, ele diz: “Servi ao Senhor com temor, e regozijai-vos com tremor”.

XLV.
O estudante de teologia possui muito mais vantagem hoje em dia do que antigamente. Primeiro, ele tem a Bíblia que traduzi do hebraico para o alemão de uma forma clara e distinta, que qualquer um pode compreendê-la prontamente. Em seguida, o estudante tem o livro Commonplaces: Loci Communes de Melancthon, que deve ser lido várias vezes até ser decorado. Quando tornar mestre destes dois volumes, o estudante pode ser considerado um bom teólogo que nem o diabo e nem o herege irá superá-lo. Pois ele tem toda a divindade no final dos seus dedos, e pode ler compreensivamente qualquer coisa que lhe agrada. Em seguida, ele pode estudar o Comentário de Melancthon sobre Romanos e o meu sobre Deuteronômio e sobre os Gálatas, além de praticar a retórica.

Nós não possuímos um trabalho de um corpo inteiro da teologia, onde a religião é mais completamente resumida do que no livro Commonplaces: Loci Communes de Melancthon. Todos os padres e compiladores de sentenças não devem ser comparados com este livro. É, depois das Escrituras, a obra mais perfeita. Melancthon é um lógico melhor do que eu. Ele possui o melhor argumento. Minha superioridade está mais na maneira retórica. Se os impressores me ouvissem, imprimiriam esses meus livros sobre doutrina, como meus comentários sobre Deuteronômio, sobre Gálatas e os sermões sobre os quatro livros de São João. Meus outros escritos raramente serviriam a um propósito melhor do que para marcar o progresso da revelação do evangelho.

XLVI.
Em São Lucas VIII, Cristo diz: “A vós é dado conhecer os mistérios do reino de Deus”. Aqui um homem poderia perguntar: Que mistério é esse? Se é um mistério, então por que pregá-lo? Nisto respondo: Um mistério é algo escondido e secreto. Os mistérios do reino de Deus pertencem ao reino de Deus. Mas aqueles que seguem fielmente a Cristo, sabem o que é o reino de Deus, e o que está lá para ser encontrado. São mistérios porque são segredos no sentido humano e da razão, quando o Espírito Santo não os revela. Embora muitos os ouçam, não os concebem e nem os entendem. Agora há muitos de nós que pregam sobre Cristo, que pregam muito sobre a sua morte por nós, mas tais palavras estão somente na língua, e não no coração. Porque não crêem na Palavra, e nem são sensíveis. Como diz São Paulo: “O homem natural não percebe as coisas do Espírito de Deus”.

Portanto, não há nenhum mistério ou segredo para aqueles que recebem o Espírito de Deus dentro de seus corações.

XLVII.
Foi um dom especial de Deus que o discurso foi dado à humanidade. Porque através da Palavra, e não pela força, que a sabedoria governa. Através da Palavra, as pessoas são ensinadas e consoladas, e assim toda a tristeza se torna leve, especialmente nos caso da consciência. Portanto, Deus deu à sua Igreja uma Palavra eterna para ouvir, e os sacramentos para por em prática. Mas este santo trabalho de pregar a Palavra é, por Satanás, ferozmente resistida. Ele teria de bom grado que fosse totalmente suprimido, pois assim o seu reino é destruído.

Verdadeiramente o discurso possui uma força e um poder maravilhoso, que por uma simples palavra, saindo da boca de uma criatura humana pobre, o diabo, esse espírito tão orgulhoso e poderoso, deve ser afastado, envergonhado e amaldiçoado.

Os sectários são tão descarados, que se atrevem a rejeitar a palavra da boca; E para suavizar suas opiniões condenáveis, dizem: Nenhuma ação externa faz alguém ser salvo. A palavra da boca e os sacramentos são algo externo. Portanto, eles nos enganam para não sermos salvos. Mas eu respondo: Devemos discriminar completamente entre as coisas externas de Deus e as coisas externas do homem. As coisas externas de Deus são poderosas e salvadoras. Já as coisas externas do homem, não.

XLVIII.
Somente Deus, por meio de sua Palavra, instrui o coração de um modo que possa vir ao conhecimento sério em mostrar que o homem é mau, corrupto e hostil a Deus. Em seguida, Deus leva o homem ao conhecimento de Deus, e o mostra como deve ser liberto do pecado e, também, como obter a vida eterna após este mundo miserável e evanescente. A razão humana, com toda a sua sabedoria, não pode ir mais longe do que instruir as pessoas a viver honestamente no mundo, construir e manter sua casa, etc., essas coisas que são aprendidas com filosofias e livros pagãos. Mas, a maneira que os homens devem aprender a conhecer a Deus e de seu querido Filho, Jesus Cristo, e serem salvos, isso somente o Espírito Santo ensina através da Palavra de Deus. Pois a filosofia não entende nada das coisas divinas. Não digo que os homens não podem ensinar e aprender filosofia. Eu a aprovo com razão e moderação. Que a filosofia permaneça dentro dos seus limites, como Deus designou, e façamos o uso dela como de um personagem em uma comédia. Mas misturá-la com as coisas divinas, isso é intolerável. Também não é tolerável fazer da fé algo acidental ou uma simples qualidade, que acontece por acaso. Pois tais palavras são meramente filosóficas – usadas nas escolas ou em assuntos temporais, onde o sentido e a razão humana podem compreender. Mas a fé é algo do coração, tendo o seu ser e substância por si mesma, dado por Deus como seu próprio trabalho, não é algo corporal, que pode ser visto, sentido ou tocado.

XLIX.
Devemos saber ensinar a Palavra de Deus corretamente e com discernimento, pois há vários tipos de ouvintes. Alguns são atingidos com medo na consciência, ficam perplexos e espantados com seus pecados, e, na apreensão da ira de Deus, são penitentes. Estes devem ser confortados com as consolações do Evangelho. Outros são endurecidos, obstinados, teimosos, rebeldes de coração. Estes devem ser assustados pela lei, por exemplo, da ira de Deus: como o fogo de Elias, o dilúvio, a destruição de Sodoma e Gomorra, a queda de Jerusalém. Esses cabeças duras precisam de batidas de som (sound knocks?).

L.
O evangelho da remissão dos pecados por meio da fé em Cristo é recebido por poucas pessoas. A maioria dos homens pouco consideram a doce e confortável notícia do evangelho. Alguns ouvem apenas a missa no papado. A maioria ouve a Palavra de Deus fora do costume, e, quando ouvem, acha que tudo está bem. Se caso um doente precisar de médico, é necessário recebê-lo. Mas aquele que está bem, não precisa se importar, como vemos a mulher cananéia em Mateux XV que sentiu as necessidades de sua própria filha e, portanto, correu atrás de Cristo, e lutava para ser atendida por Ele. Da mesma maneira, Moisés estava com vontade de ir antes e reconhecer os pecados, jáque a graça é algo encantador. Portanto, é um trabalho perdido (por mais familiar e amoroso seja Cristo), a não ser que primeiro sejamos humilhados para reconhecer os nossos pecados, e assim sejamos atraídos por Cristo, como diz o Magnificat: “Encheu o faminto com boas coisas, e os ricos foram enviados para longe”, palavras ditas para o conforto de todos, e para instruir os miseráveis, os pobres e necessitados pecadores e condenados, com o fim de que em todas as suas mais profundas tristezas e necessidades possam saber a quem deve refugiar para buscar ajuda e consolo.

Mas devemos nos aferrar à Palavra de Deus, e crermos em toda a verdade que diz de Deus. Embora Deus e todas as suas criaturas nos pareçam diferentes de como a Palavra fala, como foi o caso da mulher cananéia. A Palavra é verdadeira e não falha, passem o céu e a terra. Até o momento, oh! Como é difícil para o sentido natural e a razão, que ela deve se despir e abandonar tudo o que ela compreende e sente, dependendo apenas da Palavra descoberta. O Senhor, com a sua misericórdia, nos ajuda com fé em nossas necessidades até nos últimos suspiros, quando lutamos com a morte.

LI.
O céu e a terra, todos os imperadores, reis e príncipes do mundo, não poderiam fundar uma habitação adequada para Deus. No entanto, em uma alma humana que mantém a sua Palavra, Ele voluntariamente reside. Isaías chama o céu o assento do Senhor, e a terra o escabelo de seus pés. Ele não os chama de sua morada. Quando buscamos a Deus, o encontraremos com aqueles que guardam a sua Palavra. Cristo diz: “Se alguém me ama, guardará as minhas palavras, e meu pai o amará, e iremos até ele e faremos com ele a nossa morada”. Nada poderia ser mais simples ou mais claro do que estas palavras do Salvador e, contudo, aqui se confunde toda a sabedoria dos sábios deste mundo. Ele procurou falar non in sublimi sed humili genere. Se eu tivesse que ensinar uma criança, iria ensiná-lo da mesma maneira.

LII.
Grande é a força do Verbo Divino. Na epístola aos Hebreus, ele é chamado de “uma espada de dois gumes”. Mas negligenciamos e condenamos a Palavra pura e clara, e não bebemos da fonte fresca e fria. Nós saímos da fonte clara para o charco sujo, e bebemos sua água imunda. Isto é, temos lido os escritos sedutores desses mestres que andavam com raciocínios especulativos, como os monges e frades.

As palavras do nosso Salvador Cristo são muito poderosas. Elas tem mãos e pés. Elas superam as sutilezas supremas dos sábios deste mundo, como vemos no evangelho, onde Cristo confunde a sabedoria dos fariseus com palavras claras e simples, de modo que não sabiam pra qual lado se virar e acabaram se enrolando. Era um silogismo afiado: “Dê a César o que é de César”. Com o qual Ele não ordenou e nem proibiu, mas enganou-os em sua própria casuística.

LIII.
Aonde a Palavra de Deus pura e verdadeira é ensinada, há também a pobreza, como Cristo diz: “Eu sou enviado para pregar o Evangelho aos pobres”. Foi mais do que suficiente dado às pessoas inúteis, preguiçosas e ímpias em mosteiros e celas, que nos conduz ao perigo de corpo e alma. Mas nenhuma moeda é dada, de boa vontade, a um professor cristão. Superstição, idolatria e hipocrisia têm salários amplos, mas a verdade é uma mendicância.

LIV.
Quando Deus prega a sua Palavra, então segue a cruz para cristãos piedosos. Como atesta São Paulo: “Todos os que viverem uma vida piedosa em Cristo Jesus, devem sofrer perseguição”. E nosso Salvador: “O discípulo não é maior do que o mestre: eles me perseguiram? Eles também o perseguirão.” A obra corretamente expõe e declara a Palavra, como o profeta Isaías: Dor e tristeza ensinam como marcar a Palavra. Nenhum homem entende as Escrituras, a menos que esteja familiarizado com a cruz.

LV.
No tempo de Cristo e dos apóstolos, a Palavra de Deus era uma palavra de doutrina que foi pregada em todo o mundo. Depois, no papado, era uma Palavra de leitura que só liam, mas não entendiam. Nesse nosso tempo, é feito uma Palavra de contenda que luta e se esforça. Os inimigos não mais suportarão, e logo serão removidos do caminho.

LVI.
Assim como no mundo, uma criança é herdeira só porque nasce para herdar, assim também é a fé que faz com que sejamos filhos de Deus como nascidos da Palavra, que é o útero em que somos concebidos, nascidos e nutridos, como diz o profeta Isaías. Agora, através deste nascimento, nos tornamos filhos de Deus, (operados por Deus sem a nossa ajuda ou feitos), mesmo assim, também somos herdeiros e, sendo herdeiros, somos libertos do pecado, da morte e do demônio, e herdaremos a vida eterna.

LVII.
Eu aconselho todo cristão piedoso para não se ofender da maneira simples e sincera ao falar da Bíblia. Deixe refletir o que pode parecer trivial e vulgar, pois emana da alta majestade, do poder e sabedoria de Deus. A Bíblia faz com que os sábios deste mundo tornam-se tolos. Só é compreendida pelo coração puro e simples. Considere este livro como uma fonte preciosa que nunca se esgota. Nele encontrais as vestes e a manjedoura para onde os anjos dirigiam os pobres e simples pastores. Eles parecem pobres e maldosos, mas querido e precioso é o tesouro que neles reside.

LVIII.
Os papistas ímpios preferem a autoridade da igreja muito acima da Palavra de Deus. Uma blasfêmia abominável e intolerável. Por meio do qual, sem vergonha e piedade, cospem na face de Deus. Verdadeiramente, a paciência de Deus é muito grande para que não sejam destruídos. Mas, por isso sempre foi.

LIX.
Em tempos passados, como em parte do nosso, era perigoso estudar teologia e todas as outras boas artes que eram condenadas, e os especialistas eram atormentados por sofismas. Aristóteles, o pagão, foi mantido com boa reputação e honra, e quem o subestimou foi mantido como herege. Enquanto que eles próprios não compreenderam Aristóteles.

LX.
No tempo dos apóstolos, e no nosso próprio tempo também, o evangelho foi e ainda é pregado mais poderosamente e se espalhou mais do que era no tempo de Cristo. Porque Cristo não tinha uma boa reputação, e também não tinha tantos ouvintes como os apóstolos, e como agora temos. O próprio Cristo disse aos seus discípulos: Vós fareis obras maiores do que eu. Eu sou apenas um pequeno grão de mostarda. Mas vós sereis como a videira, e como os galhos e os ramos onde os pássaros construirão seus ninhos.

LXI.
Agora todos os homens presumem criticar o evangelho. Quase todo velho idiota e tagarela devem se achar doutores em teologia. Todas as outras artes e ciências possuem seus mestres, dos quais as pessoas devem aprender, além de regras e normas que devem ser observados e obedecidos. Apenas as Sagradas Escrituras, a Palavra de Deus, deve estar sujeita ao orgulho e à presunção de cada homem. Nesse momento há tantas seitas, seduções e transgressões.

LXII.
Eu não aprendi minha teologia de uma só vez, mas fui forçado pelas minhas tentações a procurar algo bem mais profundo. Pois nenhum homem pode alcançar a verdadeira compreensão das Sagradas Escrituras sem passar por provações e tentações. São Paulo tinha um demônio que o golpeava com os punhos, e com as tentações o empurrava diligentemente para estudar a Sagrada Escritura. Eu tinha pendurado no meu pescoço o papa, as universidades, todos os profundamente instruídos e o diabo. Estes me perseguiram para dentro da Bíblia, onde eu pude ler apaixonadamente e, assim, Deus seja louvado, consegui uma verdadeira compreensão da Palavra. Sem o tal diabo, somos apenas especuladores da teologia de acordo com o nosso vaidoso raciocínio. E se assim sonhamos, então assim que deve ser, como fazem os monges e frades nos mosteiros. A Sagrada Escritura é justa e verdadeira. Deus conceda-me graça para apoderar-me de seu uso de uma maneira justa.

 

Fonte: CRTA - Center for Reformed Theology and Apologetics - reformed.org
Tradução: Marcell de Oliveira sendo que os comentários do I ao XLII foram traduzidos pelo Portal Luterano - luteranos.com.br

 


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