Categoria: Conversas à Mesa [Tischreden]
Imagem: Martinho Lutero (no centro) - eBiografia
Publicado: 27 de Dezembro de 2022, Terça Feira, 09h59
CCLXXI.
Não devemos aceitar os seguidores fanáticos das leis de Moisés em relação aos assuntos temporais, pois nós temos as nossas leis imperiais e nacionais sob as quais vivemos e juramos. Nem Naamã, o assírio, nem Jó, nem José, nem Daniel e nem muitos outros judeus observaram as leis de Moisés dessa maneira estando fora do seu país. As leis dos gentios também foram observadas de onde eles viveram. A lei de Moisés foi imputada apenas para judeus no lugar onde Deus escolheu. Se fôssemos seguir a lei de Moisés em seus detalhes, então devemos ser circuncidados e aplicar as cerimônias mosaicas na nossa liturgia. Aquele que considera uma parte da lei de Moisés necessária, então deve considerar o resto também. Portanto, vamos deixar as leis de Moisés, exceto os Dez Mandamentos que Deus plantou na nossa natureza, pois é a verdadeira adoração há Deus em uma vida civilizada.
CCLXXII.
A lei foi imputada, como ensina São Paulo, para que os pecados sejam reconhecidos; elas foram acrescentadas por causa dos nossos pecados. São as palavras expressas e claras de São Paulo; portanto, não precisamos nos preocupar com esses papistas que tanto exaltam os aparentes mantenedores da lei de Moisés.
CCLXXIII.
Deus dá a espada ao imperador, o imperador entrega ao juiz e faz com que os ladrões e assassinos sejam punidos e executados. Em seguida, pela vontade de Deus, a espada do imperador é recolhida tirando-lhe a lei dando oportunidade ao diabo para amedrontar os pecadores.
CCLXXIV.
A lei é usada de duas maneiras: primeiro para esta vida mundana porque Deus ordenou todas as leis e estatutos temporais para impedir o avanço do pecado. Mas aqui você questiona: “Se a lei impede o pecado, então também justifica!”, e eu te respondo: Ah! Não, isso não procede; eu não devo matar, roubar ou adulterar não porque sou honesto, mas sim porque temo o carrasco que me ameace com a forca ou com a espada. É o carrasco que me impede de pecar, assim como as correntes, cordas e laços fortes que impedem ursos, leões e outros animais selvagens que surgem no seu caminho para te fazer em pedacinhos.
Portanto, podemos entender que a lei não pode ser vista como justiça realizada por medo de maldição; pois a lei nos obriga a não pecar, visto que faz parte da nossa natureza a iniquidade.
Este é o primeiro ponto relativo à lei que deve ser usado para dissuadir os ímpios de suas intenções malignas. Pois o diabo, sendo um príncipe desse mundo, seduz as pessoas a praticarem todo tipo de maldade; então Deus ordenou os magistrados, os anciãos, os mestres-escolas, as leis e estatutos numa tentativa de impedir o avanço das garras e da fúria do diabo em cima de nós.
Em segundo lugar, usamos a lei espiritual deste modo: Para fazer as transgressões serem maiores, como diz São Paulo, ou para revelar às pessoas seus pecados, suas cegueiras e atitudes ímpias, nos quais foram concebidos desde o nascimento; pois se são inimigos de Deus então merecem justamente a morte, o inferno, os julgamentos de Deus juntamente com sua ira e indignação eterna. Mas os sofistas hipócritas nas universidades nada sabem disso, nem aqueles que se acham justificados pela lei e pelas suas próprias obras.
Para que Deus possa silenciar, sufocar, suprimir e derrubar todo esse ritmo malicioso, ele designou um tipo de Hércules com uma clava para dominar tais animais, levá-los cativos e despachá-los do caminho; isto é, ele deu a lei sobre a colina do Sinai, com trovões e relâmpagos tenebrosos, que todas as pessoas que ali estavam ficaram maravilhadas e espantadas.
É extremamente necessário que saibamos o uso da lei. Pois aquele que é anonimamente assassino ou adúltero pode ser visto como um homem justo e piedoso; assim como os fariseus que são cegos e possuídos pelo diabo, não enxergam seus próprios pecados e se exaltam em suas boas obras. Tais hipócritas, em nome de Deus, não podem suavizar seus pecados através da lei; pois essa é a clave ou o martelo justo, o trovão do céu, o machado da ira de Deus que golpeia e derruba tais hipócritas com suas cegueiras. Por esta causa é que precisamos entender melhor a lei, para que ela serve e qual o seu ofício apropriado. Não podemos rejeitar a lei e suas obras, pelo contrário, devemos confirmá-las e ensinar que devemos fazer boas obras; a lei é muito boa e proveitosa se abraçarmos o seu próprio ofício.
A lei não se manifesta na graça e na misericórdia de Deus, ou na justiça pela qual obtemos a vida eterna e a salvação; mas sim nos nossos pecados, na nossa fraqueza, na morte, na ira e julgamento de Deus.
A luz do evangelho carrega um brilho diferente das outras “luzes”, iluminando corações amedrontados, quebrantados e angustiados, revivendo-os, confortando-os e revigorando-os. Pois a luz do evangelho declara que Deus é misericordioso para os pecadores miseráveis, através do amor de Cristo; uma bênção assim é apresentada aos que creem; isto é, graça, remissão de pecados, justiça e vida eterna.
Quando distinguimos a lei e o evangelho, conseguimos atribuir corretamente a função de cada um. Então eu oro e admoesto todos os seguidores da religião pura, especialmente aqueles que tornarão professores de outros que, com a maior diligência, estudem a respeito desse assunto. Pois eu temo o tempo futuro que poderá ser obscurecido ou até mesmo totalmente extinto.
CCLXXV.
Nunca um sermão mais pesado e forte foi pregado no mundo do que aquele onde São Paulo aboliu a lei de Moisés como insuficiente para a salvação de um pecador.
Daí surge o grande conflito entre esse apóstolo com os judeus. E se Moisés não tivesse se retirado de sua posição com estas palavras: “O Senhor teu Deus te levantará outro profeta dentre teus irmãos, ele estará aqui”; quem então teria acreditado no evangelho e abandonado Moisés?
Em seguida foram levantadas as acusações dos judeus que alcançaram certos homens como o amado Estevão dizendo: “Nós o ouvimos falar palavras blasfemas contra Moisés e contra Deus”. Da mesma forma, “Este homem não cessa de falar palavras blasfemas contra o lugar santo e a lei”, etc. Pois pregar e ensinar que a observância da lei não era necessária para a salvação era algo desprezível para os judeus; era como se alguém dentre nós, cristãos, se levantasse e pregasse que Cristo não é o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. São Paulo poderia ter se conformado por eles terem observado a lei, se não tivessem afirmado que era necessário para a salvação. Mas os judeus não aceitaram isso mais do que os tolos papistas com as nossas cerimônias que fornecem a liberdade de observá-las ou não, conforme a ocasião, e para que a consciência não seja aprisionada, e que a Palavra de Deus seja livremente pregada e ensinada. Mas os judeus e papistas são ímpios miseráveis como se fossem duas meias feitas com apenas um pedaço de pano.
CCLXXVI.
As leis de Moisés eram as mais pesadas; nunca houve ninguém igual a ele para amedrontar, tiranizar, ameaçar e trovejar; ele se apegava fortemente à consciência e a operava com grande temor, mas tudo por ordem expressa de Deus. Quando estamos amedrontados debaixo dos nossos pecados, da ira e dos julgamentos de Deus, certamente não encontraremos na lei a justificação; nas leis não há nada celestial, pois são totalmente para o mundo, mundo esse que é reinado pelo diabo. Portanto, é claro que a lei não pode fazer nada que seja vivificante, salvífico ou celestial; o que ela faz é totalmente temporal; isto é, nos traz discernimento do que é certo e do que é errado nesse mundo. Além disso, o Espírito Santo surge sobre a lei e guia os nossos corações; Deus não quer que morramos de medo, apenas para que, por meio da lei, conheçamos nossas misérias e, no entanto, não nos desesperamos, mas creiamos em Cristo que cumpre a lei para a justiça.
CCLXXVII.
São Paulo de vez em quando falava das leis com menosprezo, mas isso não quer dizer que devemos condenar a lei; ele quer que nós tratemos as leis com afeto. Mas quando ele ensinava sobre a justificação diante de Deus, era necessário falar dessa maneira; pois há uma diferença quando falamos sobre como podemos ser justificados diante de Deus, e quando falamos sobre as leis. Quando temos em mãos a justiça que justifica diante de Deus, não podemos desprezar ou subestimar demais as leis.
A consciência não deve considerar nada além de Cristo; portanto, devemos com toda diligência, nos esforçar para afastar Moisés com suas leis de nós quando pretendermos permanecer justificados diante de Deus.
CCLXXVIII.
É impossível, através da nossa própria força, sem a ajuda de Deus, quando Moisés nos impõe as leis nos acusando e nos ameaçando com a ira de Deus e a morte, possuir tal paz de uma maneira que nenhuma lei ou pecado tivesse existido.
Quando sentires o terror da lei, podes dizer assim: Madame Law! Não tenho tempo para te ouvir; sua linguagem é muito rude e hostil; Eu quero que você saiba que seu reinado acabou, portanto agora estou livre e não suportarei mais a sua escravidão. Quando abordamos a lei dessa maneira, encontramos a diferença entre a lei da graça e a lei fulminante de Moisés; e quão maravilhoso é o dom divino de esperar contra a esperança, quando parece não haver mais nada para esperar; e quão verdadeiro é o discurso de São Paulo, onde diz: “Pela fé em Cristo somos justificados, e não pelas obras da lei”. Quando, de fato, a justificação não é o assunto em questão, devemos estimar a lei, exaltá-la, e, assim como São Paulo, tratá-la como boa, verdadeira, espiritual e divina, como na verdade é.
Deus manterá sua Palavra por meio da escrita aqui na terra; os teólogos são as cabeças das canetas, já os juristas e advogados são os tocos. Se o mundo não quiser essas cabeças, isto é, os teólogos, eles devem ficar com os tocos, ou seja, ouvir os advogados ou juristas que lhes ensinarão boas maneiras.
CCLXXIX.
Não gostaria de ter Moisés com suas leis, pois é um inimigo de meu Senhor e Salvador Jesus Cristo. Se Moisés entrar em juízo comigo, eu o despacharei dizendo: Aqui está Cristo.
No dia do julgamento, com certeza Moisés chegará até a mim e dirá: Você me entendeu corretamente e distinguiu muito bem entre mim e a lei da fé; portanto, agora somos amigos.
Precisamos rejeitar a lei enquanto ela procura amedrontar a consciência, e quando sentimos a ira de Deus contra os nossos pecados então comeremos, beberemos e nos alegraremos para ofender o diabo. Mas a sabedoria humana prefere entender a lei de Moisés do que a lei do Evangelho. O velho Adão persiste.
Juntamente com a lei, Satanás atormenta a consciência ao retratar Cristo diante dos nossos olhos, como um juiz irado e severo, dizendo: Deus é inimigo dos pecadores, pois ele é um Deus justo; tu és um pecador, portanto Deus é teu inimigo. Aqui está a consciência abatida e levada cativa. Agora aquele que pode fazer uma verdadeira diferença neste caso dirá: Diabo! Você está enganado, não é assim que você pretende; pois Deus não é inimigo de todos os pecadores, mas apenas dos pecadores ímpios que perseguem ferozmente a sua Palavra. Pois assim como o pecado é duplo, assim também a justiça é dupla.
CCLXXX.
Dois homens eruditos vieram até a mim e perguntaram se a lei de Deus revelava o pecado às pessoas sem a ação do Espírito Santo. Um respondia que sim, já o outro dizia que não. O primeiro defendia a sua opinião em São Paulo onde diz: “Pela lei vem o conhecimento do pecado”; mas o outro alegava que esta era a obra do Espírito Santo por meio da lei; pois muitos ouviram a pregação da lei, mas não reconheceram seus pecados.
Eu respondi dizendo que ambos têm razão e a diferença consiste apenas em palavras; pois a lei deve ser entendida de duas maneiras; primeiro, como uma lei descrita e ouvida; quando não revela a força ou o aguilhão do pecado, entra por um ouvido e sai pelo outro; não toca e nem atinge o coração de forma alguma.
Em segundo lugar, quando a lei é ensinada e o Espírito Santo vem com ela, o coração é atingido e dá força à Palavra, e o coração confessa o pecado, sente a ira de Deus e diz: Ah! Isso me preocupa; Pequei contra Deus e O ofendi. Então a lei realizou seu trabalho bem e corretamente.
E depois veio um terceiro erudito e disse: “uma questão é ser simplesmente uma lei, e outra ser a lei de Deus; pois a lei de Deus sempre deve ter sua operação e força, o que a lei do homem não tem”. A ele dei a seguinte resposta:
A lei deve ser compreendida e distinguida em 3 partes: primeiro, uma lei escrita, segundo, verbal e terceiro espiritual. A lei escrita, que está escrita no livro, é como um bloco sem movimento; essa lei não faz nada se caso não a lermos. A lei verbal mostra o pecado; sim, dos ímpios; pois quando os adúlteros ouvem o sétimo mandamento: “Não cometerás adultério”, então eles entendem que isso os reprova; então eles o condenam e perseguem aqueles por quem são repreendidos. Mas a lei espiritual não pode existir sem a ação do Espírito Santo que toca o coração de modo que faz com que o homem abandona a perseguição, sente tristeza pelos pecados cometidos e deseja ser melhor.
A mesma pessoa instou: São Paulo diz que a palavra opera nos ouvintes; eu respondi que a palavra dita por São Paulo deve ser entendida como evangelho; pois mesmo essa Palavra, escrita ou verbal, ensinada ou pregada, de nada tem efeito sem a ação do Espírito Santo, que deve estimular em seus corações, reavivando-os e fortalecendo-os.
CCLXXXI.
Toda lei ou mandamento apresenta dois pontos interessantes: primeiro, uma promessa; segundo, uma ameaça; pois toda lei é, ou deveria ser, santa, Romanos VII. Ele comanda o que é bom e proíbe o que é mau: recompensa e defende aquele que é bom e piedoso, mas pune e detém o ímpio; como diz São Paulo: “Os governantes não são um terror para as boas obras, mas para as más. Você não terá de temer o poder? Faça o que é bom.” E São Pedro: “Para o castigo dos malfeitores e para louvor dos que fazem o bem.” E as leis imperiais ensinam o mesmo. Ora, visto que há promessas e ameaças nas leis temporais, quanto mais cabem nas leis de Deus, que requerem fé. As leis do imperador, de fato, exigem fé, verdadeira ou fingida; pois aqueles que não temem ou acreditam que o imperador irá punir ou proteger, não observam as suas leis, como vemos, mas os observam que temem e acreditam, seja de coração ou não. Agora, onde nas Escrituras há uma promessa sem a lei, somente a fé é necessária: como, quando foi prometido a Abraão que sua semente se multiplicaria como as estrelas do céu; ele não foi ordenado naquele momento a realizar nenhum trabalho, mas ouviu falar de um trabalho que Deus realizaria e que ele mesmo não era capaz de fazer. Assim, Cristo nos é prometido e é descrito como tendo feito uma obra que não podemos fazer; portanto, neste caso, a fé é necessária para nós, porque pelas obras não podemos alcançá-la.
CCLXXXII.
A lei, com a sua justiça, é como uma nuvem sem chuva, que promete chuva, mas não dá; mesmo assim a lei promete a salvação, mas não a dá, pois a lei não foi designada para esse fim, como diz São Paulo, Gálatas III.
CCLXXXIII.
O Evangelho não prega sobre o mérito das obras; aquele que diz que o Evangelho requer obras para a salvação, eu digo, direto e claro, é um mentiroso.
Nada que seja propriamente bom procede das obras da lei, a menos que a graça esteja presente; pois o que somos forçados a fazer não provém do coração, nem é aceitável. A grande maioria das pessoas murmuram e, com razão, o teria apedrejado e seriam mais seus inimigos do que seus amigos.
CCLXXXIV.
Aquele que disputar com o diabo fora da lei, será vencido e levado cativo; mas aquele que disputa com ele fora do Evangelho, o vence. O diabo tem uma ligação escrita contra nós; portanto, que ninguém presuma disputar com ele sobre a lei ou o pecado. Quando o diabo me diz: eis que tua doutrina procede muito mal, então eu lhe digo: coisas boas e proveitosas saem dela. Ó! Responde o diabo, isso não tem propósito algum. O diabo é um orador astuto; ele pode fazer de um cisco uma grande viga, e falsificar tudo aquilo que é bom; ele nunca esteve em toda a sua vida tão zangado e irritado como agora; Eu vejo isso bem.
Se o batismo, o sacramento e o Evangelho forem falsos, e se Cristo não estiver no céu governando, então, de fato, eu estou errado; mas se estes são da ordenação de Deus, e se Cristo estiver no céu governando, então estou certo de que a causa que tenho em mãos é boa; pois o que ensino e faço abertamente na igreja é totalmente do Evangelho, do batismo, da Ceia do Senhor, da oração, etc. Cristo e seu Evangelho estão aqui presentes; nisso creio e continuarei crendo.
CCLXXXV.
Se observássemos diligentemente o mundo, descobriremos que ele é governado com opiniões pretensiosas, com sofisma, hipocrisia e tirania; a Palavra divina que é reta, pura, clara e passa a ser sua serva, e por eles controladas. Portanto, tenhamos cuidado com o sofisma que consiste não apenas em uma língua dupla, com palavras distorcidas, onde há interpretações de diferentes maneiras, mas também nasce e floresce em todas as artes e vocações podendo criar espaço na religião.
Nada é mais pernicioso do que o sofisma; somos, pela nossa própria natureza, propensos a acreditar mais nas mentiras do que nas verdades. Poucas pessoas sabem o que é um sofisma maligno; Platão, um escritor pagão, transformou essa definição em algo maravilhoso. Já de minha parte, comparo-a em uma mentira como uma bola de neve, ou seja, quanto mais rola maior se torna.
Portanto, rejeito os que pervertem tudo, subestimando e criticando as opiniões de outros homens, embora sejam boas e sólidas. Não gosto de cérebros que disputam de ambos os lados e, no entanto, não concluem nada certo. Tais sofisticações são meras invenções e artifícios astutos e sutis para persuadir e enganar as pessoas.
Mas eu amo uma mente honesta e bem aprimorada que busca a verdade simples e clara, e não anda com fantasias e truques de trapaça.
CCLXXXVI.
São Paulo diz: O que a lei não podia fazer, visto que era fraca pela carne, Deus enviou seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa, e pelo pecado condenou o pecado da carne; para que a justiça da lei fosse cumprida em nós. Isto é, Cristo é a soma de tudo; ele é o direito, o puro significado e conteúdo da lei. Quem segue a Cristo, cumpre corretamente a lei. Mas remover completamente a lei que permanece na natureza e em nossos corações, é algo impossível e contra a Deus. E enquanto a lei da natureza é um pouco mais sombria e se apresenta apenas por meio de obras, Moises e o Espírito Santo a declaram e expõem mais claramente, nomeando aquelas obras que Deus deseja que façamos ou não. Por isso que Cristo também diz: Não vim destruir a lei. Os mundanos de bom grado dariam a ele entretenimento que pudesse fazer com que Moisés, por meio de Cristo, fosse levado embora. Oh, então veríamos rapidamente que tipo de vida excelente haveria no mundo! Mas Deus nos livre e nos guarde de tais erros, e permita que não vivamos para testemunhar o mesmo.
CCLXXXVII.
Devemos pregar a lei por causa do mal e do ímpio, mas na maior parte ela incide sobre os bons e piedosos que, embora não precisam dela, exceto na questão do velho Adão, da carne e sangue, ainda é aceitável. A pregação do Evangelho devemos ter por causa dos bons e dos piedosos, mas ela cai entre os ímpios e perversos, que a tomam para si mesmos, embora não os beneficiem; pois eles abusam e ficam confiantes. É como quando chove no rio ou no deserto e, enquanto isso, os pastos e terrenos ficam ressecados. Os ímpios sugam apenas liberdade carnal do evangelho e se tornam piores com isso; portanto, a lei lhes pertence, não o Evangelho. Assim como quando meu filhinho John causar ofensas, se eu ao invés de puni-lo, chamá-lo a mesa e oferecer-lhe ameixas açucaradas, assim eu o deixaria pior, sim, o estragaria completamente.
O Evangelho é como um ar fresco e suave em meio a um calor extremo do verão, um consolo, um alívio no meio da angústia da consciência. Mas, como esse calor procede dos raios do sol, da mesma forma o terror da consciência deve proceder da pregação da lei, até o fim, pois saberemos se ofendemos as leis de Deus.
Agora quando a mente é revigorada e despertada novamente pelo ar fresco do Evangelho, não devemos ficar ociosos, deitar e adormecer. Isto é, quando a nossa consciência está em paz e confortada pelo Espírito Santo, devemos provar nossa fé pelas boas obras que Deus ordenou. Mas, enquanto vivermos nesse vale de miséria, seremos atormentados por moscas, besouros e vermes, isto é, o diabo, o mundo e a nossa própria carne; ainda assim devemos prosseguir sem recuar.
CCLXXXVIII.
Em que escuridão, incredulidade, tradições e ordenanças dos homens vivemos, e em quantos conflitos de consciência fomos enlaçados, confundidos e cativados sob o papado, é testemunhado pelos livros dos papistas e por muitas pessoas que ainda vivem. De todas essas armadilhas, somos libertos por Jesus Cristo e seu Evangelho, e somos chamados à verdadeira justiça da fé; de modo que, com consciência boa e pacífica, agora cremos em Deus Pai, confiamos nele e temos justo motivo para nos gloriar de que temos a remissão segura e certa de nossos pecados pela morte de Cristo Jesus, comprado por um preço muito caro. Quem pode exaltar conscientemente esses tesouros da consciência, que estão espalhados por toda parte, oferecidos e apresentados apenas pela graça? Agora somos vencedores do pecado, da lei, da morte e do diabo; libertos de todas as tradições humanas. Se apenas considerássemos a tirania da confissão auricular, uma das coisas de que menos escapamos, não poderíamos nos mostrar suficientemente gratos a Deus por nos livrar dessa armadilha. Quando o papado passou a existir e florescer entre nós, então cada rei teria fornecido de bom grado dez mil florins, um príncipe cem mil, um nobre mil, um cavalheiro cem, um cidadão ou compatriota vinte ou dez, para ser libertado daquela tirania. Mas agora, visto que tal liberdade é fornecido de graça e pela graça, não é muito considerada, nem damos graças a Deus por isso.
CCLXXXIX.
O Antigo Testamento é principalmente um livro de leis, ensinando o que devemos ou não fazer e mostrando exemplos e atos de como tais leis são observadas e transgredidas. Mas, além da lei, existem certas promessas e sentenças da Graça, pelas quais os santos patriarcas e profetas foram preservados então, como o somos agora. Mas o Novo Testamento é um livro onde está escrito o evangelho das promessas de Deus, e os atos daqueles que acreditaram e daqueles que não acreditaram. E é uma pregação e declaração aberta e pública de Cristo, conforme estabelecido nas sentenças do Antigo Testamento e realizado por ele. E assim a graça e a paz é a principal doutrina do Novo Testamento, por meio do perdão dos pecados declarado em Cristo, também é a doutrina principal e adequada do Antigo Testamento é, por meio da lei, descobrir o pecado e exigir boas obras e obediência.
Devemos tomar cuidado para não fazer de Cristo um Moisés, nem de Cristo como Moisés, como muitas vezes tem sido feito. Mas onde Cristo e seus apóstolos, no Evangelho, fornecem mandamentos e doutrinas expondo a lei, estes são tão importantes quanto as outras obras e benefícios de Cristo. No entanto, conhecer apenas os preceitos do Evangelho não é conhecer o Evangelho; mas quando soa a voz que diz: Cristo é teu, com vida e obras, com morte e ressurreição, com tudo o que é, e tudo o que tem, com isso vemos que ele não força, mas ensina amigavelmente, dizendo: “Bem aventurados os pobres”, etc., “Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados”, etc., e os apóstolos usam as palavras: “Admoesto”, “exorto”, “rezo”, etc.; para que possamos ver em todos os lugares que o Evangelho não é um livro de leis, mas uma pregação branda dos méritos de Cristo, dados para serem nossos, se acreditarmos.
Daí resulta que nenhuma lei é dada aos fieis pela qual eles sejam justificados diante de Deus, como diz São Paulo, porque eles já são justificados e salvos pela fé; mas eles mostram e provam sua fé por suas obras, eles confessam e ensinam o evangelho diante das pessoas livremente e destemidamente, e então arriscam suas vidas; e tudo o que eles tomam em mãos, eles direcionam para o bem do seu próximo, e assim seguem o exemplo de Cristo. Pois, onde as obras e o amor não rompem e aparecem, não há fé.
Devemos fazer uma distinção clara; devemos colocar o Evangelho no céu e deixar a lei na terra; devemos receber do Evangelho uma justiça celestial e divina; enquanto valorizamos a lei como uma justiça terrena e humana, e assim separamos direta e diligentemente a justiça do evangelho da justiça da lei, assim como Deus separou o céu e a terra, a luz e as trevas, o dia da noite, etc., para que a justiça do Evangelho seja luz e o dia, mas a justiça da lei, as trevas e a noite. Portanto, todos os cristãos devem aprender a discernir corretamente a lei e a graça em seus corações, e saber como guardar uma da outra, em ação e em verdade, não apenas em palavras, como fazem o papa e outros hereges, que as misturam, e, por assim dizer, faça um bolo impróprio para comer.
CCXC.
Agostinho retratou a força o ofício da lei por uma semelhança muito adequada para mostrar que a lei descobre nossos pecados e a ira de Deus contra o pecado, e os coloca à nossa vista. “A lei”, diz ele, “não está em falta, mas a nossa natureza perversa e pecaminosa; assim como um monte de cal está parado e quieto, até que a água seja derramada sobre ele, e então começa a fumegar e a queimar, não por causa da água, mas sim por causa da natureza do cal que não suporta a água; ao passo que, se o óleo for derramado sobre ele, ele ficará imóvel e não queimará; assim é a lei e o Evangelho.”
CCXCI.
A respeito da justiça da lei, São Paulo se direcionou contra o povo que professa a Deus como mostra em Romanos IX, X e XI, ele se esforça com argumentos poderosos e bem fundamentados; isso lhe produziu muita tristeza no coração.
O argumento dos judeus era este: Paulo guardava a lei em Jerusalém, portanto, disseram eles, nós também devemos guardá-la. Resposta: É verdade que Paulo por certo tempo guardou a lei, mas foi por causa dos fracos para poder ganhá-los; mas, neste tempo, não é assim e não concorda de forma alguma com isso; como bem diz o antigo pai: Distingam os tempos, e podemos reconciliar facilmente as Escrituras.
Fonte: CRTA - Center for Reformed Theology and Apologetics - reformed.org
Tradução: Marcell de Oliveira