A TRADIÇÃO APOSTÓLICA: UMA PERSPECTIVA EVANGÉLICO-LUTERANA


Categoria: Acervo
Imagem: Montagem do autor - Tradição e Lutero
Publicado: 3 de Setembro de 2023, Domingo, 21h21

Por: Rudolf von Sinner – Faculdade EST, Pro-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Teologia. R. Amadeo Rossi, 467, Morro do Espelho, 93020-220, São Leopoldo, RS, Brasil. Email: r.vonsinner@est.edu.br[1]

RESUMO
O problema da tradição em sua relação com a escritura surgiu a partir de divergências específicas. Como é sabido, o momento despertador da Reforma foi a crítica de Lutero às indulgências. No entanto, ao combatê-las, introduziu algo mais fundamental: o uso da escritura como crítica contra o magistério eclesial e a soberania papal. Nos tempos mais recentes, foram objeto de controvérsia os dogmas marianos, decisões unilaterais do magistério papal. Por outro lado, vem sendo contestada a inovação ocorrida em consideráveis setores do protestantismo, do anglicanismo e do veterocatolicismo, a partir do século XIX: o ministério ordenado feminino. O cerne do debate, além da força dos costumes culturais (também conhecidos como “tradições”), é a interpretação correta da escritura e o peso atribuído à tradição. Quem decide, afinal, sobre a verdade evangélica – a escritura, a tradição, o magistério eclesiástico, o sensus fidelium, a academia, cada fiel por si ou um conjunto dessas instâncias? Parece que se chegou a certo consenso, concordando, a princípio, que o processo de tradição precisa ser compreendido numa visão “holística”, bem como sendo, essencialmente, a “tradição interpretativa da Escritura”. Isso significa que o princípio de sola scriptura não seria compreendido num sentido literalista nem estático, mas como referente à viva vox evangelii, que continua sendo ouvida até hoje pela força do Espírito Santo. Por outro lado, a compreensão concreta da convergência alcançada, em especial, o papel da igreja e do seu magistério, continua como profunda divergência. Parece que não há como resolver o problema genericamente, mas apenas testando-o em casos específicos.

INTRODUÇÃO
Ao se deparar com os quinhentos anos do início da Reforma Protestante, quando Martinho Lutero pregou as suas 95 teses contra as indulgências à porta da Igreja do Castelo em Wittenberg, cabe ao analista refletir sobre controvérsias teológicas que surgiram no decorrer da Reforma e que mostram diferenças de fundo na concepção da fé e da doutrina. Entrementes, muitas dessas diferenças perderam a força de outrora e precisam de uma nova avaliação.

Uma delas é a questão da tradição apostólica, que pergunta pela norma que deve reger a fé cristã ao longo dos tempos, em conexão com o Evangelho de Jesus Cristo conforme testemunhado pelos seus seguidores, os apóstolos. Essa questão se põe para todas as tradições cristãs, conquanto suas respostas possam diferir. O que segue quer contribuir para um diálogo crítico e construtivo e insere-se num diálogo católico-romano/evangélico-luterano, conforme promovido por uma comissão bilateral de diálogo estabelecida no Brasil. Assim, primeiro este estudo tentará explicitar uma compreensão luterana da tradição apostólica e sua continuidade, seguida por uma abordagem do princípio escriturístico. A seguir, para explicitar o desafio contemporâneo, serão apresentados dois breves estudos de caso: a introdução do ministério ordenado feminino e a Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação, firmada em 1999. O texto finalizará com algumas reflexões para um diálogo continuado no futuro.

O PROBLEMA E TENTATIVAS DE SUA RESOLUÇÃO
O problema da tradição em sua relação com a escritura não surgiu por si mesmo, mas a partir de divergências específicas. Como é sabido, o momento despertador da Reforma foi a crítica de Lutero às indulgências. No entanto, ao combatê-las, introduziu algo mais fundamental: o uso da escritura como crítica contra o magistério eclesial e a soberania papal.[2] Até então, as três instâncias – escritura, tradição e magistério – tinham sido entendidas como uma unidade, a tal ponto que a noção da traditio pouco ocorria até a Reforma, e pouca reflexão se dedicava a ela (EBELING, 1963, p.95s.). Embora não inédito – pessoas como Valdes, Francisco de Assis, Ockham, Wyclif e Hus já reivindicaram reformas a partir da escritura –, é com Lutero que o princípio escriturístico toma maior fôlego e começa a dividir a igreja ocidental. Não fora esse o propósito, mas a consequência talvez inevitável do princípio escriturístico na sua função crítica. Na dieta de Worms, em 1521, Lutero famosamente expressou esse princípio ao rejeitar a exigida retratação:

A não ser que seja convencido pelo testemunho da Escritura ou por argumentos evidentes (pois não acredito nem no papa nem nos concílios exclusivamente, visto que está claro que os mesmos erraram muitas vezes e se contradisseram a si mesmos) – a minha convicção vem das Escrituras a que me reporto, e minha consciência está presa à palavra de Deus – nada consigo nem quero retratar, porque é difícil, maléfico e perigoso agir contra a consciência. Deus que me ajude, Amém.

LUTERO, 1984, p. 148s

Nos tempos mais recentes, momentos despertadores da controvérsia foram os dogmas marianos de 1854 e de 1950, decisões unilaterais do magistério papal, não aceitas pelas outras igrejas (MEYER, 1974, p.193s.). Por outro lado, a inovação ocorrida em consideráveis setores do protestantismo, do anglicanismo e do veterocatolicismo, a partir do século XIX – o ministério ordenado feminino – vem sendo contestada por católicos romanos e ortodoxos e também por setores das próprias igrejas citadas. O cerne do debate, além da força dos costumes culturais (também conhecidos como “tradições”), é a leitura correta da escritura e o peso atribuído à tradição. Portanto, são problemas concretos da dogmática material e da prática eclesiástica que fazem surgir o problema do critério ou dos critérios. É também a questão da autoridade. Quem decide, afinal, sobre a verdade evangélica – a escritura, a tradição, o magistério eclesiástico, o sensus fidelium, a academia, cada fiel por si ou um conjunto dessas instâncias? Onde é que o Espírito Santo desenvolve seu trabalho? A lembrança da célebre palavra de Jesus a Nicodemus: “O vento [pneuma] sopra onde quer, e tu ouves a sua voz, mas não sabes nem de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito [ek tou pneumatos]” (Jo 3,8) não é de muita ajuda para resolver o problema, mas ensina humildade e cautela na identificação da atuação do Espírito. No mesmo Evangelho de João, Jesus inspira confiança ao afirmar que “o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará recordar tudo o que eu vos disse” (Jo 14,26).

Os anos 50 e 60 do século XX viram um intenso debate sobre a relação entre escritura e tradição, tanto do lado católico-romano, quanto do lado protestante (CONGAR, 1967; CULLMANN, 1954). O Concílio Vaticano II, na sua constituição Dei Verbum (1965), não chegou a superar totalmente a ambiguidade presente desde o Concílio de Trento, que é de uma possível justaposição de escritura e tradição como duas fontes distintas (KÜNG, 1999; LIBÂNIO,2003). De qualquer forma, confirmou a indissolúvel tríade, afirmando que a

Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja estão de tal maneira entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem os outros, e que juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas.

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No mesmo período, em 1963, a Comissão de Fé e Ordem do Conselho Mundial de Igrejas tentou aliviar o problema pela introdução de uma distinção entre Tradição, tradição e tradições. Afirmou-se que:

Pela Tradição, que é o próprio Evangelho, transmitido de geração em geração pela Igreja, o próprio Cristo se encontra na vida da Igreja. Por tradição se entende o processo de tradição. O termo ‘tradições’ é usado para indicar não só a diversidade de formas de expressão, como também tradições confessionais, como, por exemplo, a tradição Luterana […].

Usa-se ainda “tradição/tradições” num sentido amplo, ao falar de “tradições culturais” (CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS; FÉ E CONSTITUIÇÃO; CONIC, 2000). A ênfase está, evidentemente, na Tradição, sendo o próprio Evangelho, o próprio Cristo e, portanto, jamais uma segunda fonte da revelação. Parece que se chegou a um consenso bastante amplo sobre a questão, concordando, a princípio, que o processo de tradição precisa ser compreendido numa visão “holística”, bem como sendo, essencialmente, a “tradição interpretativa da Escritura” [4]. Isso significa que oprincípio de sola scriptura não seria compreendido num sentido literalista nem estático, mas como referente à viva vox evangelii, que continua sendo ouvida até hoje pela força do Espírito Santo. Ao mesmo tempo, a tradição não seria uma segunda fonte da revelação, à parte da escritura, mas a tradição da revelação, da qual a escritura é testemunha[5]. Não por último, é preciso ressaltar a fundamental importância desse processo interpretativo dar-se na comunhão da igreja, que funciona como comunidade hermenêutica (HOUTEPEN, 1990, p.279; CONSELHOMUNDIAL DAS IGREJAS; FÉ E CONSTITUIÇÃO; CONIC, 2000).

Seria o problema resolvido, então? Por um lado, houve uma considerável aproximação ecumênica. Por outro lado, a compreensão concreta da convergência alcançada, em especial, o papel da igreja e do seu magistério, continua como profunda divergência, impedindo um avanço significativo na comunhão ecumênica. O Papa João Paulo II nomeou, na sua Encíclica Ut unum sint (1995), o tema como o primeiro entre cinco que precisam ser resolvidos para realizar a unidade visível da Igreja[6]. O Conselho Mundial de Igrejas (CMI), por sua vez, vem retomando a temática a partir da V Conferência Mundial de Fé e Ordem realizada em Santiago de Compostela, em 1993 e dedicou a maior parte de um novo estudo sobre a chamada hermenêutica ecumênica ao problema, sem, contudo, mostrar um avanço significativo nessa temática[7]. Uma consulta sobre chaves hermenêuticas confessionais realizada em Estrasburgo, em 2002, tema já mencionado em Montreal, mostrou que o desafio contextual é, pelo menos, tão urgente quanto o confessional, e que não há como identificar, nitidamente, chaves hermenêuticas únicas a uma confissão e não a outra, embora haja, evidentemente, diferentes ênfases[8]. Parece que não há como resolver o problema genericamente, mas apenas testando-o em casos específicos.

A TRADIÇÃO APOSTÓLICA E SUA CONTINUIDADE
“A tradição cristã é sempre e essencialmente ‘ab Apostolis traditio’”, disse Ireneu (MEYER,1974, p.188). Os apóstolos foram os testemunhos diretos da vida, morte e ressurreição de Jesus, o Cristo; portanto, têm um privilégio de originalidade sobre qualquer outro testemunho. Conforme Meyer (1974, p.188), a

[…] ‘apostolicidade’ é o critério por excelência para [garantir] o caráter cristão da fé, proclamação, vida e doutrina. Portanto, o problema da tradição ou transmissão [Traditions- oder Überlieferungsproblem] é, largamente, idêntico com a questão da apostolicidade.

A igreja primitiva, constituída pelos apóstolos movidos pelo Espírito Santo, já demonstrava considerável diversidade, o que se reflete no processo de escrever, compor e escolher os textos que farão parte do cânon, processo definitivamente encerrado em meados do século IV, com a 39ª carta pascal de Atanásio (367), que lista em definitivo os 27 escritos do Novo Testamento. Conforme disse o biblista protestante de Heidelberg, Gerd Theissen, certamente com um sorriso no rosto: “já no protocristianismo, o modo de agir dos cristãos era muito protestante. Onde dois ou três estavam reunidos, eles constituíam uma minoria desviante” (THEISSEN, 2004, p.87). Tornou-se famosa a constatação de Ernst Käsemann de que “o cânon neotestamentário como tal não fundamenta a unidade da Igreja. Pelo contrário, fundamenta como tal, isto é, em sua apresentação factual, acessível ao historiador, a multiplicidade das confissões” [9].

Como avaliar o processo de constituição do cânon? A posição católico-romana mantém que é preciso uma instância externa à escritura para garantir a autoridade desta, e aponta para o processo da constituição do cânon, que se deu na igreja[10]. Já a posição luterana é que a própria escritura contém o critério de sua apostolicidade e, portanto, sua canonicidade. Reconhece, isso sim, que a escritura faz parte de um processo de tradição, sendo precedida pelo testemunho oral e escrito ao longo de várias décadas. O método histórico-crítico – aliás, hoje uma ferramenta exegética ecumênica como poucas outras – demonstrou isso claramente. Consequentemente, o problema de escritura e tradição não é bem a questão de uma fonte oral e outra escrita, mas de um processo que fixou o testemunho da revelação por escrito. É difícil imaginar por que conteúdos fundamentais da tradição oral não teriam sido escritos, mas transmitidos apenas oralmente e se tornado acessíveis por meio da sucessão apostólica pessoal[11].

Não é a letra que é decisiva, mas o conteúdo, conforme afirmou Lutero: “O que não ensina Cristo ainda não é apostólico, mesmo que S. Pedro ou Paulo o ensinem. Por outro lado, o que prega Cristo seria apostólico, mesmo que fosse feito por Judas, Anás, Pilatos e Herodes” (LUTERO, 2003, p.154).

Com base nesse princípio, Lutero inclusive criticou escritos bíblicos e julgou, por exemplo, a carta de Tiago como não sendo apostólica, pois promoveria apenas a lei e não o Cristo[12]. Segundo a compreensão luterana, é precisamente esse o “cânon no cânon”, ou seja, o princípio hermenêutico fundamental: o que promove o Cristo. É esse princípio que regeu e rege o processo da canonização e a posterior interpretação, sob influência do Espírito Santo. É essa Boa Nova (euanggelion) que autentica o cânon, e não é preciso ter uma instância externa para atribuir-lhe sua autoridade. É a partir desse princípio que se pode dizer que a escritura é sui ipsius interpres.

É importante ressaltar que a Confissão de Augsburgo (CA) insiste na continuidade da igreja, à qual as igrejas oriundas da Reforma de Lutero se compreendem como pertencentes (COMISSÃO INTERLUTERANA DE LITERATURA, 2005, p.13): “Ensina-se também que sempre haverá e permanecerá uma única santa igreja cristã, que é a congregação de todos os crentes, entre os quais o evangelho é pregado puramente e os santos sacramentos são administrados de acordo com o evangelho” (CA VII, A Confissão de Augsburgo). Além do Evangelho e dos sacramentos do Batismo e da Santa Ceia, é subentendido também o ministério ordenado para garantir sua reta pregação e administração (MEYER, 2003, p.170). As “tradições”, sempre usadas no plural, são entendidas como “ordenações eclesiásticas estabelecidas por homens” (CA XV)[13]. Não são simplesmente rechaçadas. Bem ao contrário, “se ensina observar aquelas que possam ser observadas sem pecado e contribuam para a paz e a boa ordem na igreja, como, por exemplo, certos dias santos, festas e coisas semelhantes”. O problema surge, porém, quando são entendidas como necessárias para a salvação:

Ensina-se […] que todas as ordenanças e tradições feitas pelo homem com o propósito de por elas reconciliar-se a Deus e merecer a graça são contrárias ao evangelho e à doutrina da fé em Cristo. Razão por que votos monásticos e outras tradições concernentes a distinção de alimentos, dias, etc. pelas quais se pensa merecer graça e satisfazer por pecados, são inúteis e contrários ao evangelho.[14]

A reforma luterana não tem efetuado uma total ruptura com as tradições. Nos capítulos XXI a XXVIII da CA, percebe-se um tratamento positivo das tradições, porém com modificações. Os santos, por exemplo, devem ser lembrados para o fortalecimento da fé e como exemplos de boas obras, porém, havendo um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo (1Tm2,5), não devem ser invocados ou procurados para auxílio (CA XXI). Ao falar da comunhão sob ambas as espécies (CA XXII) e do matrimônio dos sacerdotes (CA XXIII), a CA refere-se também à tradição eclesiástica, embora esses argumentos sirvam apenas para reforçar o argumento escriturístico. Nisso, conforme Wolf-Dieter Hauschild, “a práxis protestante reclama para si sua correspondência com a tradição eclesiástica mais velha contra a novidade católico romana” (HAUSCHILD, 1992, p.222).

Aqui como em outros momentos da história, percebe-se que a Reforma, no intuito de garantir o reto caminho para o futuro, volta às origens. De modo especial, a religião cristã é herdeira do judaísmo na sua caminhada entre “memória e esperança”, na formulação de Dietrich Ritschl, sendo que o Christus praesens garante que essa caminhada possa ser compreendida como acompanhada por Deus (RITSCHL, 1967, p.17). Assim, o testemunho dos apóstolos, firmado na escritura, continua vivo na grande corrente da tradição, na qual se caminha rumo ao eschaton. A apostolicidade olha para trás, para o testemunho dos apóstolos, mas também para frente, inserindo-se na missão dos apóstolos da qual a igreja faz parte. A tradição, apostólica nesse duplo direcionamento, é um constante processo, com crescimento e desenvolvimento ao confrontar a mensagem do mesmo Evangelho com os novos tempos e localidades[15]. Dentro das tradições confessionais, há elementos que orientam na caminhada e dão coerência a ela, em especial os credos e os escritos confessionais (ALTMANN, 2004; WACHHOLZ, 2004).

O PRINCÍPIO ESCRITURÍSTICO DA REFORMA
Retoma-se agora o princípio escriturístico da Reforma que norteia toda sua teologia. É importante lembrar que o Cristo, o logos encarnado, é a Palavra viva de Deus[16]. É Dele que os apóstolos ouviram o que constitui a viva vox evangelii. O testemunho deles deu origem aos escritos do Novo Testamento. O Evangelho nele contido não é, em primeiro lugar, informação, mas interpelação (Anrede), cujo conteúdo principal, para a Reforma e, em especial, para sua vertente luterana, é o anúncio da justificação[17].

Portanto, os quatro solus da Reforma não estão todos no mesmo patamar. A ordem teologicamente correta seria solus Christus, sola gratia, sola fide, sola scriptura. O Cristo efetua a justificação, que vem ao homem mediante a graça e é abraçada pela fé, sendo orientada pela escritura. É o evangelho, o Cristo pro nobis que confere normatividade à escritura. Ela mesma é lida a partir do princípio hermenêutico do “o que promove o Cristo”, que constitui o já citado “cânon no cânon”. A escritura é tida como suficiente: Tudo que é preciso saber para a salvação, para a fé e a vida cristã, está nela contida. Nesse sentido, ela também é clara, pois como diz Lutero em seu escrito sobre o livro hipercristão, hiperespiritual e hipererudito de Goat Emser: “o Espírito Santo é o escritor e orador mais claro que existe no céu e na terra, e, por esta razão, suas palavras não podem ter mais de um sentido: o mais simples, que chamamos de sentido literal, ordinário, natural” (BRAATEN, 2002, p.86).

Contudo, o sola scriptura não constitui um fundamentalismo escriturístico, não entroniza um “papa de papel”, substituindo o magistério da igreja por um “magistério da letra” (KÜNG,1999, p.71). Na verdade é, essencialmente, o solo verbo, o Cristo pregado que dá sentido ao sola scriptura (EBELING, 1963; JÜNGEL, 1999). Ao identificar o Cristo como chave hermenêutica, não se constitui um princípio apenas formal, mas, em primeiro lugar, um princípio material, pois nada outro pode ser considerado autêntico que não seja expressão desse Evangelho contido na escritura. A autoridade da escritura vem, exclusivamente, desse Evangelho, e o Espírito Santo garante sua compreensão, que não depende de nenhum e nada outro. Nisso, o princípio escriturístico funciona como instância crítica frente a qualquer outra autoridade, seja ela assumida pela igreja e seu magistério, seja ela assumida por inspirações diretas como Lutero as identificava entre os “entusiastas”. É nessa função crítica que reside a novidade trazida por Lutero, uma vez que a escritura sempre fora usada como fundamento da teologia.

A escritura é a norma normans, conforme Lutero formula nos artigos de Esmalcalde (1536): “A norma é: a palavra de Deus, e mais ninguém, nem mesmo um anjo, estabelecerá artigos de fé”[18]. Numa fase bem mais posterior, a Fórmula de Concórdia (1577) insiste que “cremos, ensinamos e confessamos que somente os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento são a única regra e norma segundo a qual devem ser ajuizadas e julgadas igualmente todas as doutrinas e todos os mestres…”[19]. Toda outra formulação da fé, inclusive os escritos confessionais, depende dessa norma primária e é, portanto, norma normata. Embora os escritos confessionais tenham autoridade porque (quia) correspondem ao Evangelho, isso é verdade apenas na medida em que (quatenus) correspondem ao Evangelho, o que pode e deve ser verificado por qualquer fiel, razão pela qual importa tanto a ampla divulgação e leitura da escritura, traduzida para o vernáculo. Se não se pode justapor escritura, tradição e magistério, também não se pode partir apenas dos escritos confessionais. Não se pode advogar um estreito confessionalismo, pois também os escritos confessionais derivam sua autoridade do Evangelho e não têm valor em si mesmos (BRAKEMEIER, 2004).

Afinal, quer-se preservar o evangelho, de origem divina, da sua distorção ao ser usurpado por seres humanos que se arroguem ser detentores da leitura correta[20]. Evidentemente, a hermenêutica moderna e a exegese histórico-crítica têm dinamizado essa concepção, insistindo no papel do autor e do leitor nos seus contextos específicos, visando, como diria Gadamer(1997, p.457), uma “fusão de horizontes”. Ou, numa formulação feliz do biblista ecumênico Weber (1998) enquanto eu leio a Bíblia, esta também é “o livro que me lê”. Nessa dinâmica de leitura mútua, que acontece num âmbito comunitário e ecumênico, como com muito êxito demonstrou o movimento bíblico no Brasil e na América Latina, acredita-se que seja o Espírito Santo que mostra o caminho[21]. A tarefa da igreja como creatura verbi é facilitar esse processo e zelar pela continuidade do testemunho apostólico, compreendido na contemporaneidade.

A INTRODUÇÃO DO MINISTÉRIO ORDENADO FEMININO
Numa carta ao então arcebispo de Cantuária, o Papa Paulo VI escreveu:

Ela [sc. a Igreja] defende que não é admissível ordenar mulheres para o sacerdócio, por razões verdadeiramente fundamentais. Estas razões compreendem: o exemplo – registado [sic] na Sagrada Escritura – de Cristo, que escolheu os seus Apóstolos só de entre os homens; a prática constante da Igreja que imitou Cristo ao escolher só homens; e seu magistério vivo o qual coerentemente estabeleceu, que a exclusão das mulheres do sacerdócio está em harmonia com o plano de Deus para a sua Igreja[22].

Na sua argumentação, o papa recorre às três instâncias interligadas: à escritura, à tradição (a prática constante da igreja) e ao magistério, que estariam em perfeita harmonia. Essa posição foi reforçada pelo Papa João Paulo II, em 1994, na sua carta apostólica Ordinatio Sacerdotalis, quando declarou

[…] para que seja excluída qualquer dúvida em assunto da máxima importância, que pertence à própria constituição divina da Igreja, em virtude do meu ministério de confirmar os irmãos (cf. Lc 22,32), declaro que a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres, e que esta sentença deve ser considerada como definitiva por todos os fiéis da Igreja (JOÃO PAULO II,1994, n.4).

Embora a base dessa decisão seja a falta de “faculdade”, é com o poder do seu ministério e magistério que o papa proclama uma decisão definitiva. É preciso encerrar um assunto pelo poder do magistério. Este se sabe em correspondência com a escritura e a tradição, mas reage diante de pressões de considerável número de fiéis e de opiniões de teólogos católico–romanos que o questionam, não por último a partir de uma outra leitura da escritura[23].

É sabido que, também nas igrejas protestantes, demoraram séculos para que fosse introduzido o ministério ordenado feminino[24]. Tal possiblidade não estava na visão de Lutero, embora tenha previsto a substituição de homens ordenados por mulheres “em caso de necessidade”[25]. Nisso, em princípio, foi mantida a tradição antiga. Esta conhecer a apenas diáconas ordenadas, porém tal ministério caiu em desuso no século V (BEHR-SIGEL; WARE,1998, FITZGERALD, 1998). De fato, não houve ordenações presbiterais ou episcopais femininas.

Contudo, releituras do testemunho bíblico mostraram um papel muito mais forte das mulheres do que em geral se assume. Também emergiu uma nova visão sobre a suposta subordinação da mulher na criação e na vida cristã. Por fim, questionou-se a continuidade entre os Doze e o ministério ordenado da igreja e a necessidade de uma representação física do Cristo enquanto homem na celebração eucarística. Não por último, a partir da pressão do ambiente secular, onde a igualdade da mulher fora mais e mais claramente afirmada, efetivou-se uma mudança fundamental na prática e teologia de muitas igrejas.

Na lógica de Lutero, embora não vislumbrado por ele, o princípio escriturístico chegou a superar uma antiga tradição, mantida pela própria Reforma. Houve e ainda há fortes debates em muitas igrejas sobre o assunto. Na igreja luterana da Suécia, por exemplo (que manteve a sucessão apostólica no seu sentido histórico e pessoal), houve uma forte discussão sobre a interpretação do testemunho bíblico em torno da decisão de ordenar mulheres ao ministério sacerdotal, tomada em 1958 (BERTINETTI, 1965; STENDHAL, 1985). Além da releitura da escritura, pesou a reflexão sobre a própria natureza do ministério, fundamentada no princípio do sacerdócio de todos os crentes. Não havia, portanto, razão para continuar excluindo mulheres do ministério ordenado. Resumindo, pode-se dizer que uma volta às fontes, a partir do contexto atual, permitiu um novo caminho para o futuro.

A DECLARAÇÃO CONJUNTA SOBRE A DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO
Em 1999, um acordo muito significativo foi firmado entre o Pontifício Conselho pela Unidade dos Cristãos e a Federação Luterana Mundial: a “Declaração Conjunta sobre a doutrina da justificação” (DC) (DECLARAÇÃO CONJUNTA SOBRE A DOUTRINA DA JUSTIFICAÇÃO, 1999). Em preparação desde 1972, quando o relatório de Malta sobre “O Evangelho e a Igreja”, da Comissão Mista Internacional Católico-Romana/Evangélico-Luterana constatou que “se esboça sobre este assunto um amplo consenso” (MEYER et al., 1991, p.255) sua aprovação final foi complicada por um forte protesto de teólogos alemães, que viram a Reforma abandonar-se a si mesma ao abrir mão, por exemplo, da unicidade da justificação como critério. Um ponto de debate foi precisamente se esta seria um critério, ainda que “indispensável, que visa orientar toda a doutrina e prática da Igreja incessantemente para Cristo” (DC, 18), ou critério. Parecia uma luta do magistério acadêmico contra o magistério eclesial, pois a aprovação da Declaração cabia às igrejas, e o protesto veio dos professores.

O conflito, portanto, não se deu sobre o conteúdo da doutrina da justificação, mas antes sobre sua função como critério principal. Viu-se que o princípio escriturístico não significa um biblicismo, mas é regido pelo Cristo vivo e presente. O Evangelho pode ser resumido na boa nova da justificação do pecador mediante graça e fé. Nos artigos de Esmalcalde, Lutero disse: “Desse artigo a gente não se pode afastar ou fazer alguma concessão, ainda que se desmoronem céu e terra ou qualquer outra coisa. […] Sobre esse artigo fundamenta-se tudo o que ensinamos e vivemos contra o papa, o diabo e o mundo” (LIVRO DE CONCÓRDIA, 1997,p.313). É esse princípio que quer salvaguardar o Evangelho de qualquer poder humano que queira dele apropriar-se.

Porém, não se pode esquecer que a defesa desse princípio só faz sentido quando se tem certeza do seu significado nos dias de hoje. No âmbito da América Latina, procurou-se dar nova expressão à justificação por meio da libertação, sendo este o tema central numa situação de cativeiro (ALTMANN, 1994). Decorridos 31 anos do final da ditadura militar, diminuiu a exclusão política, mas ainda permanece, apesar de certos avanços, a exclusão social. Para milhões de brasileiros, latino-americanos e muitos outros povos, a questão principal é a sobrevivência e não o medo diante do pecado, como fora para Lutero[26].

Por outro lado, existe uma “coação à justificação” de si mesmo diante do mundo; eu preciso “lutar pelo meu lugar na sociedade” (BRAKEMEIER, 2002. p.83). O programa de televisão Big Brother pode ser lido assim: As pessoas se apresentam 24 horas por dia ao público, que julga sobre sua permanência ou não na casa, assim decidindo sobre quem “presta” ou não[27]. Outro aspecto nesse contexto é a “coação à heresia”, como formulado pelo sociólogo Peter Berger: as pessoas hoje não têm apenas a liberdade para sua autorrealização, mas também a obrigação (BERGER, 1979).

Voltando à questão da exclusão social, as pessoas excluídas, aparentemente, não têm nada a oferecer – não têm dinheiro, nem inteligência comprovada por ótimas notas na escola, nem a cor preferida (branca), nem ligação a uma pessoa ou família de renome. Essa situação é uma explicação para o fato de, mesmo com toda informação sobre planejamento familiar, tantas meninas jovens tornarem-se mães quando ainda não têm maturidade para tal: parece o único jeito para conseguir certo reconhecimento e respeito na sociedade.

Portanto, não é pela simples repetição de princípios historicamente defendidos que se dá continuidade ao Evangelho. Antes, este deve ser compreendido no contexto atual, e seu testemunho principal (a escritura) deve ser relido com os olhos de hoje, sendo que essa leitura pode e deve desafiar o leitor, numa situação de leitura mútua: leio a Bíblia, e sou lido por ela. O diálogo ecumênico sobre a doutrina da justificação, além de significativo avanço ecumênico, trouxe de volta a necessidade de tal releitura do próprio princípio escriturístico.

Este articulista entende que um dos avanços da DC está em conceder uma mudança de posição sem querer corrigir o passado. As condenações mútuas referentes à doutrina da justificação não foram simplesmente consideradas falsas ou inúteis[28]. Refletiam posições mutuamente exclusivas, e cada lado teve que manter sua posição diante do que viu como mal-entendido do Evangelho e da tradição por parte do outro. O que acontece na DC é uma releitura dessas condenações, à luz das posições atuais das igrejas implicadas, que não são mais aquelas que se queria atingir. Assim se podem remover pedras do caminho do ecumenismo, modificando a leitura da escritura e da tradição, de modo a chegar a um “consenso nas verdades básicas” que facilite a superação da mútua exclusão. É um novo olhar sobre a escritura, sobre a tradição e sobre o irmão e a irmã em Cristo na contemporaneidade. O que falta, por enquanto, são desdobramentos concretos desse novo olhar, na facilitação de uma maior comunhão ecumênica.

CONCLUSÃO
Em termos de conclusão, sugerem-se as seguintes teses para debate:

1) A igreja é uma igreja a caminho, norteada pela memória de sua origem e pela esperança do seu futuro. No início, no centro e no final dessa caminhada está o Cristo, Filho do Pai, o Verbo que se tornou carne. Seu testemunho foi, pela ajuda do Espírito Santo, colecionado na escritura do chamado Novo Testamento, que se tornou a suprema referência da fé cristã, junto com os textos que Jesus de Nazaré, sendo judeu, conheceu como escritura e que hoje se denomina de Antigo Testamento.

2) Os que foram renovados pela justificação e inseridos no rebanho do Cristo pelo batismo, pertencem à comunidade hermenêutica da igreja. Nesta, são lidos e relidos os textos da escritura, criando-se uma tradição de sua compreensão. Assim, a tradição não é uma fonte ao lado da escritura, mas seu conteúdo interpretado ao longo dos séculos.

3) A leitura da escritura procura manter a continuidade com os apóstolos, os testemunhos que presenciaram o caminho de Jesus de Nazaré enquanto Cristo, que foram enviados ao mundo pela força do Espírito Santo para proclamar a boa nova. A igreja é, assim, creatura verbi et spiritus[29]. Sua apostolicidade não se restringe a olhar para o passado, mas inclui sua missão no presente contexto.

4) O princípio sola scriptura é um derivado do solo verbo, partindo do Evangelho de Cristo que interpela ao ser proclamado. Enquanto tal, é um princípio material crítico que serve para avaliar a validade de qualquer doutrina e prática. Toda autoridade é sujeita à escritura a partir desse princípio. Contudo, fica a pergunta quanto às formas concretas do exercício da autoridade na igreja cristã, necessário para manter a coerência da fé.

5) Enquanto a Palavra de Deus é viva, presente no Cristo pela força do Espírito Santo, a tradição é também viva, garantindo a continuidade das origens, a orientação para o futuro escatológico e a contextualidade no tempo presente. Assim, é um processo contínuo e dinâmico. Não significa a petrificação de um denominado corpo de proposições, nem no sentido de um fundamentalismo bíblico, nem de um tradicionalismo eclesiástico ou de um autoritarismomagisterial.

6) A volta às fontes tem como finalidade a caminhada para frente. Assim sendo, salva guardados a origem e o fim, uma mudança de caminhada deve ser possível. Precisa ter respaldo primeiramente na Palavra e, portanto, recorrer ao testemunho da escritura. Porém, é também necessária a recepção, pela igreja, do consensus fidelium, considerando sua dimensão ecumênica no tempo e no espaço.

7) O Evangelho é adequadamente resumido na boa nova da justificação por graça e fé. Como Palavra viva de Deus, proclamado para todo o mundo, procura estabelecer um relacionamento do ser humano com Deus a partir da salvação em Cristo. Contudo, é necessário um debate sobre o sentido da justificação na contemporaneidade, pois não tem a mesma plausibilidade hoje que tinha para Lutero. O diálogo ecumênico ajuda nessa releitura do conteúdo central do Evangelho.

8) Embora o Evangelho do Cristo que justifica o pecador seja o centro da escritura, ele não a esgota na sua integralidade. Foram transmitidos mais livros do que seriam necessários para tal mensagem. Existem outros motivos regulativos que constituem a mensagem bíblica e sua interpretação. Gerd Theissen cita quinze deles, dentre os quais o motivo da criação, da encarnação, da vicariedade e da troca de posições (“o primeiro será o último” e vice-versa), do ágape e do juízo (THEISSEN, 2004, p.92). Estes regem, como uma gramática, o conteúdo evangélico, base para o mito, rito e ética próprios do cristianismo, razão pela qual se formou uma religião distinta do judaísmo (THEISSEN, 2009). Numa linha parecida, aplicando um modelo linguístico à teologia, Robert Schreiter sugeriu que a tradição fornece o vocabulário; a fé, a competência; a expressão concreta da fé, a performance; e as instâncias normativas (a escritura, os credos, os concílios e o magistério), a gramática (1985). Este estudo propõe que um modelo linguístico da fé, onde não interessam tanto as proposições, mas a gramática que rege o uso dessa linguagem, tem um grande potencial ecumênico[30].

9) Por fim, é fundamental afirmar que o fazer teológico, a atuação nas igrejas e a procura ecumênica não fazem sentido sem a fé no Deus trino, Pai, Filho e Espírito Santo, pois é a partir da confiança nele que se pode continuar a caminhada. Volta-se, portanto, mais uma vez às palavras do Evangelho de João: “Disse, pois, Jesus aos judeus que haviam crido nele: Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,31s.).

NOTAS
1. Este texto foi, originalmente, apresentado durante o Seminário Bilateral Católico Romano – Evangélico Luterano sobre “Sucessão apostólica e tradição apostólica”, em novembro de 2004 e levemente revisado para a publicação.

2. Os debatedores de Roma contra Lutero – Tetzel, Eck, Prierias e Cajetan – logo descobriram essa implicação fundamental. Ao destacar o poder absoluto do papa e exigir a submissão de Lutero, firmaram nele a crescente convicção da necessidade do princípio sola scriptura contra esse poder que se cria “acima do concílio, acima da Escritura e acima de toda a igreja” (KIRCHNER, 1998, p.26)

3. Dei Verbum 10. Os textos do Concílio Vaticano II são citados segundo Vier (2000). Cf. a abordagem crítica do que é chamado de “fraco compromisso” por Küng, (1999, p.69s). O Catecismo da Igreja Católica (2000) mantém a ambiguidade, baseando–se, principalmente, em Dei Verbum.

4. Kirchner (1998, p.152); Cf. Libânio (2003, p.121); Meyer (1974, p.194): “A maneira como a letra da Escritura permanece ‘espírito’, ‘vida’ está em ser transmitida, lida, interpretada, experimentada dentro da Tradição da Igreja. Estabelece-se assim uma relação única entre ambas, de modo que se supera definitivamente uma divisão que dominou as relações entre católicos e protestantes”.

5. O caráter da escritura como testemunho da revelação é apresentado como solução ecumênica por Küng, (1999, p.75-77). Para os autores patrísticos, conforme Ware (2002, p.1143-1148, p.1144), tradição significara “simplesmente a forma pela qual a escritura é interpretada e vivida por sucessivas gerações por dentro da igreja”.

6. João Paulo II (1995, n.79): “Já desde agora é possível individuar os argumentos que ocorre aprofundar para se alcançar um verdadeiro consenso de fé: 1) as relações entre Sagrada Escritura, suprema autoridade em matéria de fé, e a Sagrada Tradição, indispensável interpretação da palavra de Deus”. Nota-se que o Papa afirma a suprema autoridade da Escritura e entende Tradição como interpretação, e não como fonte à parte.

7. Conselho Mundial das Igrejas (2000, n.14-37). O maior avanço, não por último para a teologia no continente sul-americano, parece estar no menor capítulo do documento, que versa sobre “um Evangelho em muitos contextos” (Conselho Mundial das Igrejas, 2000, 38-48; Sinner, 2003. p.9-33, 331-340; 2007, p.89-118).

8. Diante do desafio pastoral de confeccionar uma prédica, exercício virtual que se fez num grupo de discussão na Consulta da Comissão de Fé e Constituição do Conselho Mundial de Igrejas em Estrasburgo, no ano de 2002, mostrou-se uma semelhança surpreendentemente ampla nas referências e métodos aos quais se recorre, sem, contudo, facilitar o processo de identificar divergências e convergências, pois não foi possível traduzir esse consenso “pastoral” em posições nitidamente confessionais e/ou contextuais. Outra consulta, realizada em Viena no ano de 2004, ao tentar explorar tais convergências e divergências referentes a “símbolos, ritos e práticas”, principalmente no âmbito litúrgico, mostrou mais claramente ainda a perplexidade que perpassa as posições confessionais e contextuais.

9. “Käsemann (1960, p.221); tradução conforme Brakemeier (1997, p.212). Käsemann (1984, p.90) conclui que “é necessário definir o que significa Evangelho de Jesus Cristo, para identificar o cerne do cânon e o caminho da solidariedade ecumênica que nele se aponta”. Afirma ainda que “uma herança ‘apostólica’ no sentido estrito só nos tenha sido legada por Paulo e seus discípulos, ainda que encoberta por pseudoepígrafes”, ibid., p.80. Cf. ainda Dunn (2009).

10. Assim, por exemplo, Karl Rahner, que estava disposto a aceitar o sola scriptura
também por parte da teologia católico-romana, desde que se entenda que “exista um testemunho autêntico e uma interpretação da Sagrada Escritura pela palavra viva da Igreja e de sua autoridade magistral, e que esse testemunho da Escritura em si e sua interpretação autêntica não podem ser substituídos pela própria Escritura”. Rahner (1965, p.121-138, p.132), tradução nossa. O problema, portanto, não estaria numa suposta insuficiência da escritura quanto a seu conteúdo, mas na autoridade atribuída a ela e sua interpretação autêntica, que caberia apenas à igreja. Sobre Rahner e a tradição numa perspectiva luterana, veja-se Altmann (1974).

11. Rahner (1965, p.135), afirmou que não seria possível encontrar, nos primeiros três séculos, em outras fontes materiais o que faltaria na escritura; portanto, a suposição de uma fonte oral não facilitaria de modo algum a fundamentação de algo que carece de embasamento bíblico.

12. Esse é um julgamento passível de revisão, conforme mostra, por exemplo, Altmann (1994. p.112).

13. Para o uso da palavra nos escritos confessionais luteranos, vide Wenz (2004, p.9-28,10-14).

14. Confissão de Augsburgo XV (COMISSÃO INTERLUTERANA DE LITERATURA, 2005, p.16); Cf. também CA XXVI, ibid., p.33-36, sobre a “distinção de comidas”, que, dentre outros aspectos, rejeita a ideia do jejum como “satisfação pelos pecados”, citada por Tomás de Aquino como uma das suas finalidades, ST II, 2, q. 147 art. 1, apud Livro de Concórdia (1997, p.48s., n.134).

15. Cf. Schreiter (1985, p.75-121). Schreiter define tradição como “série de teologias locais” que se alimentam da tradição e, ao mesmo tempo, contribuem para ela.

16. Esse aspecto recebeu destaque fundamental na teologia da Palavra de Deus de Karl Barth, para quem a Palavra é, em primeiro lugar, o próprio Cristo, testemunhado pela palavra escrita e proclamado na palavra pregada. Barth (1986, p.89-128).

17. Nisso insiste, na sua polêmica contra a Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação (vide a seção “a declaração conjunta sobre a doutrina da justificação”), Jüngel (1999).

18. Artigos de Esmalcalde, parte II, artigo II, 15, Livro de Concórdia, (1997. p.316); Cf . Gl 1,8: “Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema.”

19. Fórmula de Concórdia – Epítome, introdução, Livro de Concórdia (1997, p.499).

20. Nas palavras de Brakemeier (2003, p.29): “… o primado da Escritura é a única barreira eficaz contra os desvios da Igreja e o arbítrio dos intérpretes”.

21. Cf., dentre outras, as publicações do CEBI e os livros seminais de Carlos Mesters. Parece que, nisso, as comunidades católico-romanas ultrapassaram os protestantes, conforme insinua Altmann (1994, p.100s).

22. PAULO VI, Papa. Rescrito à carta de Sua Graça o Rev.mo Dr. F.D. Coggan, Arcebispo de Cantuária, sobre o ministério sacerdotal das mulheres, 30 de novembro de 1975: AAS 68 (1976), 599-600 (apud JOÃO PAULO II, 1994, n.1).

23. Do lado católico-romano, veja-se o livro de Soberal (1989). Dentre outros pontos, destaca que a Pontifícia Comissão Bíblica mostrou-se bastante favorável à possibilidade da ordenação feminina, enquanto a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé teria desconsiderado essa posição e confeccionado um documento claramente contrário a ela, ibid., p.18s. O próprio autor chega a um posicionamento favorável ao percorrer o testemunho bíblico. De sua parte, o bispo ortodoxo Kallistos (Timothy) Ware julga necessário promover, ao menos, uma investigação teológica maior sobre o assunto. Embora haja poucos que admitam, hoje, a ordenação feminina, “existe um grupo bem maior que julga os argumentos até agora proferidos, tanto contra quanto a favor de tal ordenação, serem profundamente inadequados” Ware (1997, p.293).

24. Cf., numa visão histórica, Reily (1989). Para a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), numa visão prática, Cf. Freiberg (1997).

25. “É verdade, porém, que nesse artigo o Espírito Santo excetuou as mulheres, as crianças e pessoas ineptas e que escolheu para isso somente homens aptos (exceto em caso de necessidade)…”. Lutero (1992, p.413). Assim já em: Kirchenpostille (1522), EA 12, 376, apud Bertinetti (1965, p.169), obra em que há mais referências.

26. A categoria da exclusão é central para o desenvolvimento da questão por Tamez (1995).

27. Assim constata Develey (2004). Develey compara a casa do Big Brother a um mosteiro beneditino, cujas regras de entrada e comportamento são, em muitos aspectos, parecidas. Existe certa renúncia (restrição de objetos a serem trazidos), isolamento do mundo, necessidade do trabalho próprio (cada qual tem que fazer suas comidas, lavar roupa etc.), frequência da confissão (há um “confessionário” no Big Brother), dentre outros aspectos.

28. Do lado luterano houve apenas uma condenação explícita, na Fórmula de Concórdia, mas o teor dos escritos confessionais implica tal condenação num sentido mais amplo.

29. Cf. a proposta da Comissão de Fé e Constituição do CMI, no seu documento FO 2004:32: The Nature and Mission of the Church. A stage on the way to a common statement, n. 10-14 (mímeo).

30. Cf. Lindbeck (1984); Ritschl (1990, p.608-621); Wiedenhofer (1994, p.64ss).

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* Recebido em 05/09/2016, reapresentado em 18/10/2016 e aprovado para publicação em 13/12/2016. - Reflexão, Campinas, 41 (2): 139-153, jul./dez., 2016. Retirado da Academia.Edu.



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