A SANTÍSSIMA TRINDADE POR STANLEY M. HORTON


Categoria: Acervo
Imagem: Pai, Filho e Espírito Santo - Site da Paróquia de Tabuaço
Publicado: 14 de Julho de 2012, Sábado, 01h49

INTRODUÇÃO

O Pai incriado, o Filho incriado: o Espírito Santo incriado.
O Pai incomensurável, o Filho incomensurável: o Espírito Santo incomensurável.
O Pai eterno, o Filho eterno: o Espírito Santo eterno.
E, mesmo assim, não são três eternos: mas um só eterno.

A Trindade é um mistério. A aceitação reverente do que não é revelado nas Sagradas Escrituras faz-se necessário antes de se perguntar a respeito de sua natureza. A glória ilimitada de Deus deve ser uma forma de nos conscientizar com respeito à nossa insignificância em contraste com aquEle que é “sublime e exaltado”.

Nosso reconhecimento dos mistérios de Deus, especialmente da Trindade, exige que abandonemos a razão? Nada disso. Na Bíblia, de fato, há muitos mistérios, mas “o cristianismo, como ‘religião revelada’, centraliza-se na revelação e a revelação (segundo sua própria definição) torna manifesto em vez de ocultar“.

A razão se vê diante de uma pedra de tropeço quando confrontada pela natureza paradoxal da doutrina trinitariana. “Mas“, asseverou Martinho Lutero, de modo energético, “posso que se baseie claramente nas Escrituras, a razão precisa conservar-se em silêncio sobre o assunto; devemos tão-somente crer“.

Por isso, o papel da razão é o de auxiliar, e nunca de dominar (atitude racionalista), a entender as Escrituras, especialmente no tocante à formulação da doutrina da Trindade. Não estamos, pois, tentando explicar Deus, mas, sim, considerar as evidências históricas que estabelecem a identidade de Jesus como homem e também como Deus (em virtude dos seus atos milagrosos e do seu caráter divino) e, ainda, “incorporar a verdade que Jesus tornou válida no que diz respeito ao seu relacionamento eterno com Deus Pai e com Deus Espírito Santo“.

Históricamente, a Igreja formulou a doutrina da Trindade em razão do grande debate a respeito do relacionamento entre Jesus de Nazaré e o Pai. Três pessoas distintas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo – são manifestadas nas Escrituras como Deus, ao passo que a própria Bíblia sustenta com tenacidade o Shema judaico: “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR” (Dt 6.4).

A conclusão, baseada nas Escrituras, é que o Deus da Bíblia é (nas palavras do Credo Atanasiano) “um só Deus na Trindade, e a Trindade na Unidade“. Isso soa irracional? Semelhante acusação contra a doutrina da Trindade pode ser, por si mesma, classificada de irracional: “Irracional é suprimir a evidência bíblica em favor da Trindade para favorecer a Unidade, ou a evidência em favor da Unidade para favorecer a Trindade“. “Nossos dados devem ter precedência sobre nossos modelos – ou, melhor, nossos modelos devem refletir de modo sensível a gama inteira dos dados“. Por isso, nosso olhar metodológico deve estar baseado na Bíblia no que diz respeito à relação tênue entre a unidade e a trindade para não polarizarmos a doutrina da Trindade num dos dois extremos: a supressão das evidências em favor da unidade (o que resultaria no unitarianismo, ou seja: que reconhece em Deus somente uma única pessoa) ou o abuso das evidências em favor de triunidade (o que resultaria no triteísmo – três deuses paralelos).

Uma análise objetiva dos dados bíblicos no tocante ao relacionamento entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, revela que essa grandiosa doutrina não é uma noção abstrata, mas, na realidade, uma verdade revelada. Por isso, antes de considerarmos o desenvolvimento histórico e a formulação da teologia trinitariana, examinaremos as evidências bíblicas nas quais a doutrina se fundamenta.

EVIDÊNCIAS BÍBLICAS PARA A DOUTRINA

O Antigo Testamento
Deus, no Antigo Testamento, é um só Deus, que se revela pelos seus nomes, pelos seus atributos e pelos seus atos. Mesmo assim, o Antigo Testamento lança alguma luz sobre a pluralidade (uma distinção de Pessoas) na Deidade: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26). Que Deus não poderia estar conversando com os anjos, ou com outros seres não-identificados, fica evidente no versículo 27 que se refere à criação do homem “à imagem de Deus”. O contexto indica uma comunicação interpessoal divina, que requer uma unidade de Pessoas na Deidade.

Outras distinções pessoais na Deidade são reveladas nos textos que se referem ao “anjo do SENHOR” (hb. Yahweh). Esse anjo é distinguido de outros anjos. É pessoalmente identificado com Javé e, ao mesmo tempo, distinguido dEle (Gn 16.7-13; 18.1-21; 19.1-28; 32.24-30. Jacó diz: “Tenho visto a Deus face a face“, com referência ao anjo do Senhor). Em Isaías 48.16; 61.1; e 63.9,10, o Messias fala. Numa ocasião, Ele se identifica com Deus e o Espírito em união pessoal como os três membros da Deidade. Mas noutra ocasião, o Messias continua (ainda falando na primeira pessoa) a distinguir-se de Deus e do Espírito.

Zacarias lança muita luz sobre o assunto ao falar, em nome de Deus, a respeito da crucificação do Messias: “E sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém derramarei o Espírito de graça e de súplicas; e olharão para mim, a quem traspassaram; e o prantearão como quem pranteia por um unigênito; e chorarão amargamente por ele, como se chora amargamente pelo primogênito” (Zc 12.10). Fica claro que o único Deus verdadeiro está falando na primeira pessoa (“mim”) com referência a ter sido “traspassado”, mas Ele mesmo faz a mudança gramatical da primeira para a terceira pessoa (“ele”) com relação aos sofrimentos do Messias pelo fato de ter sido “traspassado”. A revelação da pluralidade na Deidade fica bem evidente nesse texto bíblico.

Assim saímos das sombras e prefigurações do Antigo Testamento para a luz maior da revelação no Novo Testamento.

O Novo Testamento
João começa o prólogo do seu Evangelho com a revelação do Verbo: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1.1). B. F. Westcott observa que, aqui, João leva nossos pensamentos para além do começo da Criação, no tempo, para a eternidade. O verbo “era” (gr. en, pretérito imperfeito de eimi, “ser”) aparece três vezes nesse versículo e, mediante todo o versículo, o apóstolo transmite a idéia de que nem Deus, nem o Verbo (gr. Logos), tem começo; sempre existiriam em conjunto, e assim continua.

A segunda parte do versículo continua: “E o Verbo estava com Deus [pros ton theon]”. O Logos existe com Deus, em perfeita comunhão, por toda a eternidade. A palavra pros (com) revela o relacionamento “face a face” que o Pai e o Filho sempre compartilharam. A frase final de João é uma declaração da divindade do Verbo: “E o Verbo era Deus“.

João continua a revelar-nos que o Verbo entrou na História (1.14) como Jesus de Nazaré, sendo Ele mesmo “o Único Deus, que está ao lado do Pai“. E o Verbo tornou o Pai conhecido (1.18). O Novo Testamento revela, ainda que, pelo fato de Jesus Cristo ter compartilhado da glória de Deus desde toda a eternidade (Jo 17.5), Ele é objeto da adoração reservada somente a Deus: “Para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus e na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus” (Fp 2.10,11; ver também Êx 20.3; Is 45.23; Hb 1.8).

Foi através do Verbo eterno, Jesus Cristo, que Deus Pai criou todas as coisas (Jo 1.3; Ap 3.14). Jesus se identifica como o soberano “Eu sou” (Jo 8.58; cf. Êx 3.14). Em João 8.59, os judeus sentiram-se impulsionados a pegar em pedras para matar a Jesus em virtude dessa reivindicação. Tentaram fazer a mesma coisa mais tarde depois de haver Ele declaro em João 10.30: “Eu e o Pai somos um“. Os judeus que o escutaram consideraram-no blasfemo: “Sendo tu homem, te fazes Deus a ti mesmo” (Jo 10.33; cf. Jo 5.18).

Paulo identifica Jesus como o Deus que provê todas as coisas: “Ele é antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem por ele” (Cl 1.17). Jesus é o “Deus Forte” que reinará como Rei no trono de Davi, e o tornará eterno (Is 9.6,7). Seu conhecimento é perfeito e completo. Pedro falou assim a nosso Senhor: “Senhor, tu sabes tudo” (Jo 21.17). O próprio Cristo disse: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27; cf. Jo 10.15).

Jesus agora está presente em todos os lugares (Mt 18.20), e é imutável (Hb 13.8). Ele compartilha este título com o Pai: “o Primeiro e o Último” (Ap 1.17; 22.13). Jesus é o nosso Redentor e Salvador (Jo 3.16,17; Hb 9.28; 1 Jo 2.2), nossa Vida e Luz (Jo 1.4), nosso Pastor (Jo 10.14; 1 Pe 5.4), aquele que nos justifica (Rm 5.1), e que virá em breve como “REI DOS REIS E SENHOR DOS SENHORES” (Ap 19.16). Jesus é a Verdade (Jo 14.6) e o Consolador, cujo conforto e ajuda transbordam em nossa vida (2 Co 1.5). Isaías também o chama nosso “Conselheiro” (Is 9.6), e Ele é a Rocha (Rm 9.33; 1 Co 10.4). Ele é santo (Lc 1.35) e habita naqueles que lhe invocam o nome (Rm 10.9,10; Ef 3.17).

Tudo quanto se pode dizer a respeito de Deus Pai, também pode ser dito a respeito de Jesus Cristo. “Em Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9). “Cristo… é sobre todos, Deus bendito eternamente” (Rm 9.5). Jesus falou de sua plena igualdade com o Pai: “Quem me vê a mim vê o Pai… estou no Pai, e o Pai, em mim” (Jo 14.9-11).

Jesus reivindicava plena divindade para o Espírito Santo: “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre” (Jo 14.16). Ao chamar o Espírito Santo allon parakleton (“outro ajudador do mesmo tipo que Ele mesmo“), Jesus afirmou que tudo quanto pode ser afirmado a respeito de sua natureza pode ser dito a respeito do Espírito Santo. Por isso, a Bìblia dá testemunho da divindade do Espírito Santo como a Terceira Pessoa da Trindade.

O Salmo 104.30 revela o Espírito Santo como o Criador: “Envias o teu Espírito, e são criados, e assim renovas a face da terra“. Pedro se refere a Ele como Deus (At 5.3,4), e o autor da Epístola aos Hebreus chama-o “Espírito eterno” (Hb 9.14).

A exemplo de Deus, o Espírito Santo possui os atributos da Deidade. Ele tem conhecimento de todas as coisas: “O Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus… Ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus” (1 Co 2.10,11). Ele está presente em todos os lugares (Sl 139.7,8). Embora o Espírito Santo distribua dons entre os cristãos, Ele mesmo permanece sendo “um só” (1 Co 12.11); Ele é constante na sua natureza. Ele é a Verdade (Jo 15.26; 16.13; 1 Jo 5.6). Ele é o Autor da Vida (Jo 3.3-6; Rm 8.10) mediante o renascimento e a renovação (Tt 3.5) e nos sela para o dia da redenção (Ef 4.30).

O Pai é nosso Santificador (1 Ts 5.23), Jesus Cristo é nosso Santificador (1 Co 1.2), e o Espírito Santo é nosso Santificador (Rm 15.16). O Espírito Santo é nosso “Conselheiro” (Jo 14.16,26; 15.26), e habita naqueles que o temem (Jo 14.17; 1 Co 3.16,17; 6.19; 2 Co 6.16). Em Isaías 6.8-10, o profeta indica que Deus está falando, e Paulo atribui a mesma passagem ao Espírito Santo (At 28.25,26). No que tange a isso, João Calvino observa: “Realmente, onde os profetas usualmente dizem que as palavras que pronunciam são as do Senhor dos Exércitos, Cristo e os apóstolos as atribuem ao Espírito Santo [cf. 2 Pe 1.21]“. Calvino conclui: “Segue-se, portanto, que quem é o autor preeminente das profecias é verdadeiramente Jeová [Yahweh]“.

O conceito do Deus Trino e Uno acha-se somente na tradição judaico-cristã“. Esse conceito não surgiu mediante a especulação dos sábios deste mundo, mas através da revelação outorgada passo a passo na Palavra de Deus. Em todos os escritos dos apóstolos, a Trindade é implícita e tomada como certa (Ef 1.1-14; 1 Pe 1.2). Fica claro que o Pai, o Filho e o Espírito Santo, existem eternamente como três Pessoas distintas, mas as Escrituras também revelam a unidade dos três membros da Deidade.

As Pessoas da Trindade têm vontades separadas, porém nunca conflitantes (Lc 22.42; 1 Co 12.11). O Pai fala ao Filho, empregando o pronome da segunda pessoa do singular: “Tu és meu Filho amado; em ti me tenho comprazido” (Lc 3.22). Jesus se oferece ao Pai pelo Espírito (Hb 9.14). Declara que veio não para fazer “a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou” (Jo 6.38).

O nascimento virginal de Jesus Cristo revela o interrelacionamento entre os três membros da Trindade. O relato de Lucas diz: “E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; pelo que também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus” (Lc 1.35).

O único Deus é revelado como a Trindade na ocasião do batismo de Jesus Cristo. O Filho subiu das águas. O Espírito Santo desceu como pomba. O Pai falou dos Céus (Mt 3.16,17). Por ocasião da criação, a Bíblia menciona o envolvimento do Espírito (Gn 1.2). O autor da Epístola aos Hebreus, porém, declara explicitamente que o Pai é o Criador (Hb 1.2), e João demonstra que a criação foi realizada “por meio do” Filho (Jo 1.3; Ap 3.14). Quando o apóstolo Paulo anuncia aos atenienses que Deus “fez o mundo e tudo que nele há” (At 17.24), a única conclusão a que podemos razoavelmente chegar (juntamente com Atanásio) é que Deus é “um só Deus na Trindade, e a Trindade na Unidade“.

A ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos é outro exemplo notável do relacionamento dentro da Deidade Trina e Una na redenção. Paulo declara que o Pai de Jesus Cristo ressuscitou nosso Senhor dentre os mortos (Rm 1.4; cf. 2 Co 1.3). Jesus, contudo, declarou enfaticamente que ressuscitaria seu próprio corpo da sepultura na glória da ressurreição (Jo 2.19-21). Noutro texto, Paulo declara que Deus, mediante o Espírito Santo, ressuscitou Cristo dentre os mortos (Rm 8.11; cf. Rm 1.4). Lucas coroa teologicamente a ortodoxia trinitariana ao registrar a proclamação do apóstolo Paulo aos atenienses de que o único Deus ressuscitou a Cristo dentre os mortos (At 17.30,31).

Jesus coloca os três membros da Deidade no mesmo plano ao ordenar aos seus discípulos: “Ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19).

O apóstolo Paulo, judeu monoteísta treinado pelo grande erudito rabínico Gamaliel, hebreu de hebreus; segundo a lei, fariseu (Fp 3.5), deu o carimbo definitivo à teologia trinitariana, conforme revela a sua saudação à igreja em Corinto: “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com vós todos” (2 Co 13.14). Os dados oferecidos pela Bíblia levam-nos decididamente à conclusão de que, dentro da natureza do único Deus verdadeiro, há três Pessoas, sendo que cada uma é co-eterna, co-igual e co-existente.

O teólogo ortodoxo subordina humildemente os seus pensamentos sobre a teologia trinitariana aos dados revelados na Palavra de Deus de maneira bem semelhante ao físico quântico ao formular a teoria paradoxal das partículas de ondas:

Os físicos quânticos concordam entre si que as entidade subatômicas são uma mistura de propriedades de ondas (W), de propriedades de partículas (P), e de propriedades quânticas (h). Os elétrons de alta velocidade, ao serem atirados através de um filme metálico, ou de cristal de níquel (como raios catódicos rápidos ou até mesmo como raios-B), difratam como raios-X. Em princípio, o raio-B é igual à luz solar empregada numa experiência de dupla ranhura ou biprísmica. A difração é um critério de comportamento semelhante a raios nas substâncias; toda a teoria clássica das ondas baseia-se nisso. Além desse comportamento, porém, há muito tempo que os elétrons vêm sendo considerados partículas com carga elétrica. Um campo magnético transversal defletirá um feixe de elétrons e seu padrão de difração. Somente as partículas comportam-se dessa maneira; toda a teoria eletromagnética depende disso. Para explicar todas as evidências, os elétrons devem ser tanto partículas quando ondulatórios [grifos nossos]. Um elétron é um Pwh.

A analogia entre a Trindade e o Pwh ilustra muito bem as precauções preliminares desse capítulo, ou seja: embora o teólogo sempre deve esforçar-se por conseguir a racionalidade na formulação teológica, ele também deve preferir a revelação às restrições finitas da lógica humana. A Escritura, e tão-somente ela, é o ponto de partida para a teologia da Igreja Cristã.

A FORMULAÇÃO HISTÓRICA DA DOUTRINA

Embora Calvino estivesse falando de outro assunto doutrinário, sua advertência é igualmente aplicável à fórmulação trinitariana: “Se alguém, sem muita autoconfiança, tentar desvendar os seus mistérios, não conseguirá satisfazer a sua curiosidade, e entrará num labirinto do qual não achará nenhuma saída“.

De fato, a formulação histórica da doutrina da Trindade é apropriadamente caracterizada como um labirinto terminológico, no qual muitos caminhos levam a becos sem saída, a heresias.

Os quatro primeiros séculos da Igreja Cristã eram dominados por um único tema: o conceito cristológico de Logos. Esse conceito é exclusivamente joanino, e se acha no prólogo do Evangelho de João e na sua Primeira Epístola. A controvérsia eclesiástica daqueles tempos focalizava-se na pergunta: “O que João quer dizer com seu uso da palavra Logos?” A controvérsia atingiu seu auge no século IV, no Concílio de Nicéia (325 d.C.).

No século II, os pais apostólicos tinham uma cristologia pouco desenvolvida. O relacionamento entre as duas naturezas de Cristo, a humana e a divina, não é claramente articulado nas suas obras. A doutrina da Trindade aparece de forma subentendida nos seus tratados de cristologia, porém não explícita.

Os grandes defensores da fé que havia na Igreja Primitiva (Irineu, Justino Mártir) referiam-se a Cristo como o Logos eterno. Nessa época, porém, o conceito do Logos parece ter sido entendido como um poder ou atributo eterno de Deus que, de alguma maneira, inexplicável, habita em Cristo. Um conceito de Logos eternamente pessoal, em íntima relação com o Pai, ainda não havia sido definido ainda.

Irineu Contra os Gnósticos
Entramos no labirinto eclesiástico do desenvolvimento histórico da teologia trinitariana, seguindo nos passos de Irineu. Ele era bispo de Lião, na Gália, e discípulo de Policarpo que, por sua vez, era discípulo do apóstolo João. Em Irineu, portanto, temos um vínculo direto com a doutrina apostólica.

Irineu começou a participar de debates teológicos em fins do século II. É mais conhecido por causa dos seus argumentos contra os gnósticos. Sua grande obra, Contra Heresias, tem sido uma fonte primária de defesa contra as influências espiritualmente malogradas do gnosticismo.

Irineu encaminhou a Igreja, positivamente, ao declarar a unicidade de Deus, que é o Criador dos céus e da terra. Seu compromisso com o monoteísmo protegeu a Igreja contra o perigo do politeísmo, que levaria a um beco sem saída. Irineu também foi cauteloso no que se refere à especulação gnóstica quanto à maneira de o Filho ter sido gerado pelo Pai.

Os gnósticos especulavam continuamente a respeito da natureza de Cristo e da sua relação com o Pai. Alguns gnósticos classificavam Cristo no seu panteão de leões (intermediários espirituais entre a Mente Divina e a Terra), e nisto, trivializavam a sua divindade. Outros (docetistas) negavam a plena humanidade de Cristo, insistindo que Ele não poderia ter se encarnado (apenas parecia ser um homem) e sofrer e morrer na Cruz (cf. Jo 1.14; Hb 2.14; 1 Jo 4.2,3).

Irineu resistia fervorosamente os ensinos dos gnósticos, mediante uma cristologia desenvolvida de modo impressionante, enfatizando tanto a plena humanidade de Jesus Cristo, quanto a sua plena divindade. Na sua defesa da cristologia, Irineu respondeu aos gnósticos com duas frases cruciais que posteriormente reapareceram em Calcedônia: “Filius dei filius hominis factus: (o Filho de Deus tornou-se filho do homem), e Jesus Christus vere homo, vere Deus: (Jesus Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus)“.

Declarações assim exigiam um conceito pelo menos rudimentar no trinitariamos. De outra forma, a alternativa teria sido o diteísmo (dois deuses) ou o politeísmo (muitos deuses). Declara-se, todavia, que Irineu subentendeu um “trinitarianismo econômico”. Noutras palavras: “Ele só lida com a divindade do Filho e do Espírito no contexto da sua revelação e atividade salvífica, ou seja: no contexto da ‘economia’ (plano) da salvação“.

Tertuliano Contra Praxeas
Tertuliano, o “bispo pentecostal de Cartago” (160 – c. de 230), fez contribuições de valor inestimável para o desenvolvimento da ortodoxia trinitariana. Adolph von Harnack, por exemplo, insiste que foi Tertuliano que preparou o terreno para o desenvolvimento subseqüente da doutrina trinitariana ortodoxa.

O tratado de Tertuliano “Contra Praxeas”, contém 50 páginas de polêmica vigorosa contra um certo Praxeas que, supostamente, introduziu em Roma a heresia do monarquianismo ou do patripassianismo. O monarquianismo ensina a existência de um só Monarca, que é Deus. Por conseguinte, é negada a plena divindade do Filho e do Espírito. No entanto, para preservar as doutrinas da salvação, os monarquianos chegaram à conclusão de que o Pai, como Deidade, foi crucificado pelos pecados do mundo. Essa é a heresia chamada patripassianismo. Por isso, segundo Tertuliano disse a respeito de Praxeas: “Ele tinha expelido a profecia e introduzido a heresia, tinha exilado o paracleto e crucificado o Pai“.

Tertuliano informa-nos que, enquanto a heresia de Praxeas varria a Igreja, os crentes de uma forma geral continuavam vivendo na sua simplicidade doutrinária. Embora estivesse resoluto quanto a advertir a Igreja contra os perigos do monarquianismo, entrou na controvérsia em cima da hora, quando a heresia estava se tornando predominante no pensamento dos cristãos.

A tarefa de Tertuliano foi criar um meio por onde fluíssem as implicações inerentes da teologia trinitariana na consciência da Igreja. Embora Tertuliano seja tido como o primeiro erudito a empregar o termo “Trindade”, não é correto dizer que ele “haja inventado” a doutrina, mas, que “escavou” na consciência da Igreja e retirou daí os pensamentos trinitarianos inerentes que já estavam presentes. B. B. Warfield comenta: “Tertuliano tinha de… estabelecer a divindade verdadeira e completa de Jesus… sem citar dois deuses… E considerando o sucesso que conseguiu nesse aspecto, deve ser reconhecido como o pai da doutrina eclesiástica da Trindade“.

Tertuliano torna explícito o conceito de uma “Trindade econômica” (semelhante ao conceito de Irineu, mas com uma definição mais explícita). Enfatiza a unidade de Deus, ou seja: que existe uma só substância divina, um só poder divino – sem separação, divisão, dispersão ou diversidade – há, porém, uma distribuição entre as funções, uma distinção entre as Pessoas.

Orígenes e a Escola Alexandria
No século II a.C., Alexandria, no Egito, substituiu Atenas como o centro intelectual do mundo greco-romano. Posteriormente, academias cristãs floresceram nessa cidade. Alguns dos maiores estudiosos da Igreja antiga pertenciam à escola alexandrina.

A Igreja avançou ainda mais através do labirinto teológico da formulação doutrinária com o trabalho do célebre Orígenes (c. de 185-254). A explicação sobre a eternalidade do Logos pessoal foi feita pela primeira por Orígenes. Com ele, começou a emergir a doutrina ortodoxa da Trindade, embora não fosse cristalizada na sua formulação (progredindo do além do conceito “econômico” de Tertuliano) a não ser no começo do século IV no Concílio de Nicéia (325 d.C.).

Opondo-se aos monarquianos (também chamados unitarianos), Orígenes propôs sua doutrina da geração eterna do Filho (chamada filiação). Ligava essa geração à vontade do Pai, e assim subentendia a subordinação do Filho ao Pai. A conclusão da doutrina da filiação aconteceu não somente pelas designações “Pai” e “Filho”, mas também pelo fato de o Filho ser chamado, de modo consistente, “o Unigênito” (Jo 1.14, 18; 3.16, 18; 1 Jo 4.9).

Segundo Orígenes, o Pai gera eternamente o Filho e, portanto, nunca está sem Ele. O Filho é Deus, porém Ele subsiste (segundo a linguagem teológica posterior, que se relaciona com a existência de Deus) como uma Pessoa distinta do Pai. O conceito oferecido por Orígenes da geração eterna preparou a Igreja para entender que a Trindade subsiste em três Pessoas em vez de consistir em três partes.

Orígenes deu expressão teológica ao relacionamento entre o Pai e o Filho (posteriormente afirmada no Concílio de Nicéia) como homoousios to patri: “de uma só substância [ou essência] com o Pai”. O modo de entender a personalidade, essencial para a fórmula trinitariana ortodoxa, ainda era imprecisa. O termo latim persona, que significa “papel” ou “ator”, não ajudava no esforço teológico de se entender o Pai, o Filho e o Espírito como três Pessoas, em vez de meros papéis diferentes de Deus. O conceito teológico de hipostases, ou seja: da distinção de Pessoas dentro da Deidade (em contraste com a unidade de substância ou de natureza dentro da Deidade, chamada “consubstancialidade” e que se relaciona com a homousia), permitiu a formulação paradoxal da teologia trinitariana.

A doutrina de Orígenes a respeito da geração eterna do FIlho era uma polêmica contra a noção de que houvera um tempo quando o Filho não existia. Seu conceito da “consubstancialidade” ressaltava a igualdade entre o Filho e o Pai. No entanto, surgiram dificuldades no pensamento de Orígenes por causa do conceito da subordinação apresentado na linguagem do Novo Testamento, e da idéia do papel de submissão do Filho em relação ao Pai, embora a plena divindade do Filho fosse ainda mantida. O que é crítico para a nossa compreensão “é entender a subordinação no sentido de que podemos chamar de econômico“, e não num sentido que se relacione com a natureza da própria existência de Deus. Por isso: “O Filho submete-se à vontade do Pai e executa o seu plano (oikonomia), mas não é por isso inferior ao Pai na sua natureza“.

Orígenes era inconsistente na sua formulação do relacionamento entre o Pai e o Filho, e às vezes apresentava o Filho como um tipo de deidade de segunda categoria, distinto do Pai quanto à sua Pessoa, mas inferior a Ele quanto à existência. Orígenes ensinava essencialmente que o Filho devia a sua existência à vontade do Pai. Essa ocilação no tocante ao conceito do subordinacionismo provocou uma reação maciça dos monarquianos.

O Monarquianismo Dinâmico: A Primeira Tentativa Fracassada
Os monarquianos procuravam preservar o conceito da unicidade de Deus – a monarquia do monoteísmo. Focalizavam a eternidade de Deus como o único Senhor, ou Soberano, em relação à sua criação.

O monarquianismo apareceu em dois tipos diferentes: Dinâmico e Modalístico. O Monarquianismo Dinâmico (também chamado Monarquianismo Ebionita, Monarquianismo Unitariano ou Monarquianismo Adocionista) antecedeu o Monarquianismo Modalístico.

O Monarquianismo Dinâmico negava qualquer noção de uma Trindade eternamente pessoal. A escola monarquiana dinâmica era representada pelos Alogi, homens que rejeitavam a cristologia do Logos. Os Alogi baseavam a sua cristologia exclusivamente nos Evangelhos Sinóticos, e repudiavam a cristologia do Evangelho de João, porque suspeitavam que havia concepções helenísticas no prólogo do seu Evangelho.

Os monarquianos dinâmicos argumentavam que Cristo não era Deus desde toda a eternidade, mas que se tornara Deus em certo momento do tempo. Embora existissem diferenças de opinião quanto ao momento exato determinado para a deificação do Filho, a opinião generalizada era que a exaltação do Filho ocorreu no seu batismo quando, então, foi ungido pelo Espírito. Cristo, pois, mediante a sua obediência, tornou-se o divino Filho de Deus. Cristo era considerado o Filho adotivo de Deus ao invés de ser tido como o eterno Filho de Deus.

O Monarquianismo Dinâmico também ensinava que Cristo foi exaltado progressivamente, ou dinamicamente, à condição de Deidade. O relacionamento entre o Pai e o Filho era percebido não em termos da sua natureza e existência, mas em termos morais. Ou seja: não se considerava que o Filho possuísse igualdade de natureza com o Pai (homoousios: homo significa “idêntico” e ousios significa “essência”). Os monarquianos dinâmicos postulavam que entre Jesus e os propósitos de Deus existe um relacionamento meramente moral.

Um dos defensores antigos do Monarquianismo Dinâmico era o bispo de Antioquia no século III, Paulo de Samosata. Surgiu um grande debate entre a Igreja Oriental e a Escola Antioquiana, de um lado, e a Igreja Ocidental e a Escola Alexandrina, de outro lado. O enfoque do debate era o relacionamento entre o Logos e o homem Jesus.

Harold O. J. Brown observa que “a forma que o adocionismo do Monarquianismo Dinâmico encontrou para conservar a unidade da Deidade foi sacrificando a divindade de Cristo“. O Monarquianismo Dinâmico é, portanto, uma tentativa fracassada de sair do labirinto doutrinário, que termina num beco sem saída, em uma heresia.

Paulo de Samosata teve Luciano como sucessor no Monarquianismo Dinâmico. O aluno mais destacado de Luciano era Ário. Este estava por trás da controvérsia ariana que resultou na convocação dos bispos em Nicéia e na elaboração do famoso Credo Trinitariano (325 d.C.). Antes, porém, de considerarmos o Arianismo, examinemos o segundo tipo de Monarquianismo: o Modalismo.

O Monarquianismo Modalístico: A Segunda Tentativa Fracassada
As influências principais que estavam por trás do Monarquianismo Modalístico eram o gnosticismo e o neoplatonismo. Os monarquianismos modalísticos concebiam o Universo como uma unidade, todo organizado, manifestado numa hierarquia de modos. Os modos (assemelhados a círculos concêntricos) eram considerados vários níveis de manifestações de realidade que emanavam de Deus, “O Único” que existe como “existência pura”, como o Ser Supremo no ponto mais alto da escala Hierárquica (influência neoplatônica).

Os monarquianos modalísticos ensinavam que a realidade diminuía-se à medida que uma emanação se distanciava de “O Único”. Por isso, a categoria mais baixa da existência seria a matéria física do universo. Embora a matéria ainda fosse considerada parte de “O Único”, do qual emana, os modalistas consideravam que ela existia numa forma inferior (influência gnóstica). Pela proposição inversa, pensava-se que a realidade aumentava, ao progredir em direção a “O Único” (também chamado a Mente Divina).

É fácil ver as implicações panteísticas desse conceito da realidade, posto que tudo quanto existe, supostamente tem sua origem nas emanações (modos ou níveis da realidade) da essência do próprio Deus. Alguns modalistas empregavam uma analogia do sol e dos seus raios. O raios solares são da mesma essência do sol, mas não são o sol. Os modalistas supunham que, quanto mais longe os raios ficam do sol, tanto menos são pura luz solar, e que embora os raios participem da mesma essência do sol, são inferiores a este, sendo meras projeções dele.

A aplicação cristológica dessa cosmovisão identificava Jesus como uma emanação de primeira ordem da parte do Pai, reduzindo-o a um nível abaixo do Pai no tocante à natureza de sua existência ou essência. Embora Jesus fosse considerado a mais sublime ordem de existência à parte de “O Único, Ele não deixava de ser inferior a ele, e dependia dele quanto à sua existência, embora fosse superior aos anjos e à raça humana“.

Sabélio (século III) era o maior defensor do monarquianismo modalístico, e o responsável pelo seu maior impacto sobre a Igreja. Originando-se nele a analogia do sol e dos seus raios, negou ser Jesus deidade no mesmo sentido eterno que o Pai o é. Essa idéia levou ao termo teológico homoiousios. O prefixo homoi, significa “semelhante”, e a raiz, ousios, significa “essência”. Sabélio, portanto, argumentava que a natureza do Filho era apenas semelhante à do Pai; não era portanto idêntica à do Pai.

Sabélio foi condenado como herege em 268, no Concílio de Antioquia. A diferença entre homo (“idêntico”) e homoi (“semelhante”) talvez pareça trivial, mas a letra “i” é a diferença fundamental entre as implicações panteísticas do sabelianismo (confundir Deus com a sua criação) e a plena divindade de Jesus Cristo, à parte da qual ficariam grandemente prejudicadas as doutrinas da salvação. O Monarquianismo Modalístico, ao abandonar a plena Divindade e Personalidade de Cristo e do Espírito Santo, foi também uma tentativa fracassada de sair do labirinto doutrinário.

Arianismo: A Terceira Tentativa Fracassada
Embora Ário fosse aluno de Luciano, e, portanto, participasse da linha do Monarquianismo Dinâmico proclamado por Paulo de Samosata, foi além deles na complexidade teológica. Foi criado em Alexandria, onde também foi ordenado presbítero pouco depois de 311, apesar de ser um discípulo da tradição antioquiana. Nos meados de 318, despertou a atenção de Alexandre, o novo arcebispo de Alexandria. Este excomungou em 321 por causa de suas opiniões heréticas a respeito da Pessoa, da natureza e obra de Jesus Cristo.

Ário esforçou-se por ser restaurado à igreja, não por arrependimento, mas a fim de que suas opiniões a respeito de Cristo se tornassem a teologia oficial da Igreja. Nesse esforço, procurou a ajuda de alguns dos seus amigos mais influentes, inclusive Eusébio de Nicomédia e o renomado historiador eclesiástico Eusébio de Cesaréia, bem como vários bispos asiáticos. Continuou ensinando sem a aprovação de Alexandre. Suas especulações provocaram muitos debates e confusão na Igreja.

Pouco depois da excomunhão de Ário, Constantino passou a ser o único imperador de todo o império romano. Constantino ficou muito desgostoso ao descobrir que a Igreja estava vivendo tamanho caos devido a controvérsia ariana que, inclusive, ameaçava a estabilidade política e religiosa do império. Apressou-se então por convocar o primeiro concílio ecumênico, o Concílio de Nicéia, em 325.

Ário ressaltava que Deus Pai é o único Monarca e, portanto, que só Ele é eterno. Deus é “ingênito”, ao passo que tudo o mais, inclusive Cristo, é “gerado” Ário asseverava, incorretamente, que a idéia de ser “gerado” transmite o conceito de ter sido criado. Ao mesmo tempo, deu-se ao trabalho de separar-se das implicações panteísticas da heresia sabeliana, ao insistir que Deus não tinha nenhuma necessidade interna de criar. Desse, também, que Deus criou uma substância (lat. substantia) independente, que Ele empregou para criar todas as demais coisas. Essa substância independente, primeiramente criada por Deus, acima de todas as outras coisas, era o Filho.

Ário propôs que a incomparabilidade do Filho é limitada ao fato de ser a primeira e maior criação de Deus. A encarnação do Filho é concebida, no pensamento ariano, como a união entre a substância criada (o Logos) com um corpo humano. Ensinava que o Logos ocupava o lugar da alma dentro do corpo humano de Jesus de Nazaré.

Harnack tem razão ao observar que Ário “é monteísta rigoroso somente no que diz respeito à cosmologia; como teólogo é politeísta“. Ário, noutras palavras, na cosmologia reconhecia uma única Pessoa, que é Deus; mas na prática, estendia a adoração (reservada para Deus somente) a Cristo, o mesmo Cristo que declarara (em outro contexto) ter sido criado.

A cristologia de Ário reduzia Cristo a uma criatura e, como conseqüência, negava a obra salvífica do Filho de Deus. Com isso, o arianismo foi também uma outra tentativa fracassada de sair do labirinto doutrinário. Pelo contrário, entrou por um corredor sem saída.

A Ortodoxia Trinitariana: Saindo do Labirinto
Trezentos bispos da Igreja Ocidental (alexandrina) e da Igreja Oriental (antioquiana) reuniram-se em Nicéia, no grande concílio ecumênico, que procuraria definir com precisão teológica a doutrina da Trindade. O propósito do concílio era tríplico: (1) esclarecer os termos usados para articular a doutrina trinitariana; (2) desmascarar e condenar os erros teológicos que estavam presentes em vários seguimentos da Igreja; e (3) elaborar um documento que estivesse em harmonia com os princípios bíblicos e as convicções compartilhadas pela Igreja.

O bispo Alexandre estava pronto para a luta contra Ário. Os arianos estavam confiantes de que seriam vitoriosos. Eusébio de Nicomédia preparou um documento, no qual continha o ponto de vista defendido pelos arianos, que foi, confiantemente, apresentado ainda no início do concílio. Por ter negado a divindade de Cristo, provocou a indignação da maioria dos presentes que, com firmeza, rejeitou o documento. Em seguida, Eusébio de Cesaréia (que não era ariano, embora fosse representante da Igreja Oriental) elaborou durante o debate um credo que se tornaria o modelo para o Credo de Nicéia.

O bispo Alexandre (e os alexandrinos em geral) ficou muito preocupado com as opiniões de Ário, pois elas poderiam afetar a salvação pessoal, caso Cristo não fosse plenamente Deus no mesmo sentido que o Pai o é. Para levar o homem à plena reconciliação com Deus, argumentava Alexandre, Cristo forçosamente tem de ser Deus.

O Bispo Alexandre reconhecia a linguagem da subordinação no Novo Testamento, especialmente as referências a Jesus como “Unigênito” do Pai. Indicava que o termo “gerado” deve ser entendido do ponto de vista judaico, pois os que empregavam o termo na Bíblia eram hebreus. O uso hebraico do termo visa ressaltar a preeminência de Cristo. Paulo fala nestes termos, empregando a palavra “primogênito” não com referência à origem de Cristo, mas aos efeitos salvíficos da sua obra de redenção (ver Cl 1.15,18).

Alexandre respondeu a Ário, argumentando de que a condição de o Filho ser o Unigênito é antecedida nas Escrituras, conforme mostra João 1.14 (o Filho é o Unigênito da parte do Pai), que indica que Ele compartilha da mesma natureza eterna de Deus (assim se harmoniza com a “geração eterna” do Filho, segundo Orígenes). Aos ouvidos de Ário, que não se retratou, isso soava como um reconhecimento de que Cristo fora criado. Estava se esforçando desesperadamente por livrar a teologia das implicações modalísticas que, segundo as palavras posteriormente atribuídas ao seu opositor principal, Atanásio, incorriam no perigo de “confundir as Pessoas entre si”. Era, portanto, crucial fazer a distinção entre Cristo e o Pai.

O bispo Alexandre prosseguiu, declarando que Cristo é “gerado” pelo Pai, mas não no sentido de emanação ou criação. Teologicamente, o grande desafio da Igreja Ocidental era a explicação do conceito de homoousia sem cair na heresia modalística.

Atanásio geralmente recebe o crédito de ter sido o grande defensor da fé no Concílio de Nicéia. A parte maior da obra de Atanásio, porém, foi consumada depois desse grande concílio ecumênico.

Atanásio era inflexível, e embora deposto pelo Imperador em três ocasiões durante sua carreira eclesiástica, lutava com valentia em favor do conceito de Cristo ser da mesma essência (homoousios) que o Pai, e não meramente semelhante ao Pai quanto à sua essência (homoiousios). Durante o seu turno como bispo e defensor da ortodoxia (conforme revelou ser), era praticamente “Atanásio contra o mundo”.

A escola alexandrina acabou triunfando sobre os arianos, e Ário voltou a ser condenado e excomungado. Na fórmula confessionária da doutrina da Trindade em Nicéia, Jesus Cristo é o “Filho Unigênito de Deus; gerado de seu Pai antes da fundação do mundo, Deus de Deus, Luz de Luz, Verdadeiro Deus de Verdadeiro Deus; gerado, não feito; consubstancial com o Pai”.

Posteriormente, a Igreja viria a empregar o termo “proceder” em lugar de “geração” ou “gerado”, com o propósito de expressar a subordinação salvífica do Filho ao Pai. O Filho procede do Pai. Um tipo de primazia ainda é atribuída ao Pai com relação ao Filho, mas essa primazia não é cronológica; o Filho sempre existiu como o Verbo. Mesmo assim, o Filho foi “gerado” pelo Pai ou “procedeu” do Pai, e não o Pai do Filho.

Esse “proceder” do Filho em relação ao Pai (já no século VIII, chamada “filiação”) é entendido teologicamente como um ato necessário da vontade do Pai, de modo que fique impossível existir o conceito do Filho não provindo do Pai. Daí, a “procedência” do Filho estar eternamente no presente, um ato que perdura, nunca terminando. O Filho, portanto, é imutável (Ml 3.6). A filiação do Filho, certamente, não é no sentido de ter sido gerada outra pessoa com a sua divina essência, pois o Pai e o Filho são igualmente Deidade e, portanto, da mesma natureza indivisível. O Pai e o Filho (com o Espírito) existem juntos em subsistência pessoal (o Filho e o Espírito são pessoalmente distintos do Pai na sua existência eterna).

Embora a exposição das complexidades lingüísticas do Credo de Nicéia pareça frustrante para nós hoje, levando-se em conta a distância de 1600 anos, é importante considerarmos a necessidade crucial de se manter a fórmula paradoxal do Credo de Atanásio: “Um só Deus na Trindade, e a Trindade na Unidade“. A exatidão teológica é crítica, pois os termos ousia, hupostasis, substantia e subsistência nos oferecem um entendimento conceptual do que é a ortodoxia trinitariana, como no caso do Credo de Atanásio: “O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus. E, porém, não são três deuses, mas um só Deus“.

Entre 361-81, a ortodoxia trinitariana passou por mais refinamentos, mormente no tocante ao terceiro membro da Trindade, o Espírito Santo. Em 381, em Constantinopla, os bispos foram convocados pelo Imperador Teodócio, e as declarações da ortodoxia de Nicéia foram reafirmadas. Além disso, houve uma menção explícita do Espírito Santo em termos de deidade, como o “Senhor e Doador da vida, procedente do Pai e do Filho; o qual, com o Pai e o Filho juntamente é adorado e glorificado; o qual falou pelos profetas“.

O título “Senhor” (gr. kurios), empregado nas Escrituras em alguns textos para atribuir e explicitar a divindade, é destinado aqui (no Credo de Nicéia-Constantinopla) ao Espírito Santo. Logo, aquEle que procede do Pai e do Filho (Jo 15.26) subsiste pessoalmente desde a eternidade dentro da Deidade, sem divisão ou mudança quanto à sua natureza (Ele é essencialmente homoousios com o Pai e o Filho).

As propriedades pessoais (as operações interiores de cada Pessoa dentro da Deidade) atribuídas a cada um dos membros da Trindade são assim entendidas: o Pai é ingênito; o Filho é gerado; o Espírito Santo procede dEles. A insistência nessas propriedades pessoais não é tentar explicar a Trindade, mas fazer a distinção entre as fórmulas ortodoxas trinitarianas e as fórmulas heréticas modalísticas.

As distinções entre os membros da Deidade não se referem à sua essência ou substância, mas ao relacionamento. Noutras palavras: a ordem da existência na Trindade, no tocante ao ser essencial de Deus, está espelhada na Trindade salvífica: “São, portanto, três, não na posição, mas no grau; não na substância, mas na forma; não no poder, mas na sua manifestação“.

O processo contínuo da pesquisa da natureza do Deus vivo cede lugar, a essa altura, à adoração. Juntamente com os apóstolos, os pais da Igreja, os mártires, e os maiores teólogos no decurso da história da Igreja, temos de reconhecer que “toda a boa teologia termina com uma doxologia” (cf. Rm 11.33-36). Considere esse hino clássico de Reginald Heber:

Santo! Santo! Santo! Deus Onipotente!
Tuas obras louvam teu nome com fervor;
Santo! Santo! Santo! Justo e compassivo!
És Deus triúno, excelso Criador!

A TRINDADE E A DOUTRINA DA SALVAÇÃO

As opiniões não-trinitarianas, tais como o modalismo e o arianismo, reduzem a doutrina da salvação a uma charada divina. Todas as convicções cristãs básicas que se centralizam na obra da Cruz pressupõem a distinção pessoal dos membros da Trindade. Refletindo, podemos perguntar se é necessário crer na doutrina da Trindade para ser salvo. A resposta histórica e teológica é que a Igreja não tem usualmente exigido uma declaração explícita de fé na doutrina da Trindade para a pessoa ser batizada. Mas a Igreja certamente espera uma fé implícita no Deus Trino e Uno como aspecto essencial do nosso relacionamento pessoal com os papéis distintivos de cada uma das Pessoas da Deidade, na obra salvífica em prol da humanidade.

A doutrina da salvação (inclusive a reconciliação, a propiciação, a redenção, a justificação e a expiação) depende da cooperação dos membros distintivos do Deus Trino e Uno (Ef 1.3-14). Por isso, renunciar deliberadamente a doutrina da Trindade ameaça gravemente a nossa esperança de salvação pessoal. As Escrituras incluem todos os membros da raça humana na condenação universal do pecado (Rm 3.23), e por isso, todos “precisam da salvação; a doutrina da salvação requer um Salvador adequado, ou seja: uma cristologia adequada. Uma cristologia sadia exige um conceito satisfatório de Deus, isto é, uma teologia especial e sadia – que nos traz de volta à doutrina da Trindade“.

O conceito modalístico da natureza de Deus deixa totalmente abolida a obra mediadora entre Deus e as pessoas. A reconciliação (2 Co 5.18-21) subentende deixar de lado a inimizade ou a oposição. Qual inimizade é deixada de lado? As Escrituras revelam que Deus está em inimizade contra os pecadores (Rm 5.9), e que as pessoas, nos seus pecados, também estão em inimizade contra Deus (Rm 3.10-18; 5.10).

O Deus Trino e Uno é revelado na Bíblia de modo explícito na redenção dos pecadores e na sua reconciliação com Deus. Deus “envia” o Filho ao mundo (Jo 3.16,17). A sombra do Calvário, Jesus se submete com obediência à vontade do Pai: “Meu Pai, se é possível, passa de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26.39). O relacionamento sujeito-objeto entre o Pai e o Filho fica claramente evidente aqui. O Filho suporta a vergonha do madeiro maldito, trazendo a paz (reconciliação) entre Deus e a humanidade (Rm 5.1; Ef 2.13-16). Enquanto a vida se esgota rapidamente do seu corpo, Jesus, no Calvário, olha para o céu, e pronuncia suas últimas palavras: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). Se duas pessoas distintivas não forem reveladas aqui, no ato salvífico da cruz, esse evento seria uma mera charada de um único Cristo (que só poderia ser neurótico).

No Modalismo, o conceito da morte de Cristo como uma satisfação infinita está perdido. O sangue de Cristo é o sacrifício pelos nossos pecados (1 Jo 2.2). A doutrina de propiciação tem a conotação de um aplacar ou evitar a ira mediante um sacrifício aceitável. Cristo é o Cordeiro sacrificial de Deus (Jo 1.29). Por causa de Cristo, a misericórida de Deus é oferecida em vez da ira que merecemos por causa dos nossos pecados. Sugerir, porém, como faz o Modalismo, que Deus é uma só Pessoa e que faz de si mesmo a si mesmo uma oferta pelo pecado, estando Ele ao mesmo tempo irado e misericordioso, deixa parecer que Ele é caprichoso. Noutras palavras: a Cruz seria um ato sem sentido no que diz respeito ao conceito de uma oferta pelo pecado.

O apóstolo João identifica Jesus como nosso Paracleto (ajudador ou conselheiro). Temos, portanto, alguém que fala com o Pai em nossa defesa (1 Jo 2.1). Agir assim pressupõe um Juiz que é diferente do próprio Jesus, antes de Ele desempenhar semelhante papel. Porque Cristo é o nosso Paracleto: “Ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1 Jo 2.2). Temos, portanto, plena segurança da nossa salvação porque Cristo, nosso Ajudador, é também a nossa Oferta pelo pecado.

Jesus veio ao mundo não “para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10.45). O conceito de “resgate” e de suas palavras cognatas nas Escrituras é usado com referência a um pagamento que garante a libertação de presos. A quem Cristo pagou o resgate? Se for negada a doutrina ortodoxa da Trindade (negando-se uma distinção entre as Pessoas da Deidade, conforme o quer o Modalismo), Cristo teria de ter pago o resgate ou à raça humana ou a Satanás. Posto que a humanidade está morta em transgressões e em pecados (Ef 2.1), nenhum ser humano teria o direito de exigir que Cristo lhe pagasse resgate. Sobraria, portanto, Satanás para fazer a extorsão de Cristo, em nível cósmico. Nós, porém, nada devemos a Satanás. E a idéia de Satanás exigir resgate pela humanidade é blasfêmia, por causa das suas implicações dualistas (a idéia de que Satanás possui poder suficiente para estorquir de Cristo a própria vida deste; ver João 10.15-18).

Pelo contrário: o resgate foi pago ao Deus Trino e Uno para satisfazer as plenas reivindicações da justiça divina contra o pecador caído. Tendo o Modalismo rejeitado o trinitarianismo, a heresia modalística perverte, de modo correspondente, o conceito da justificação. Embora mereçamos a justiça de Deus, somos justificados pela graça mediante a fé em Jesus Cristo somente (1 Co 6.11). Tendo sido justificados (tendo sido declarados sem culpas diante de Deus) mediante a morte e ressurreição de Jesus, somos, portanto, declarados justos diante de Deus (Rm 4.5,25). Cristo declara que o Espírito é “outra” Pessoa distinta de si mesmo, porém do “mesmo tipo” (allon, Jo 14.16). O Espírito Santo emprega a obra do Filho no novo nascimento (Tt 3.5), santifica o cristão (1 Co 6.11) e nos dá acesso (Ef 2.18), mediante o nosso Grande Sumo Sacerdote, Jesus Cristo (Hb 4.14-16), à presença do Pai (2 Co 5.17-21).

Um Deus que muda inteiramente seus atos é contrário à revelação da natureza imutável do Todo-poderoso (Ml 3.6). Semelhante Modalismo é deficiente no que diz respeito salvação, pois nega a alta posição sumo-sacerdotal de Jesus Cristo. As Escrituras declaram que Cristo é o nosso intercessor divino à destra de Deus, nosso Pai (Hb 7.23;8.2).

Fica claro que a doutrina essencial da expiação vicária, na qual Cristo carregou nossos pecados na sua morte, depende do conceito trinitariano. O Modalismo subverte o conceito bíblico da morte penal e vicária de Cristo como satisfação da justiça de Deus e, em última análise, anula a obra da Cruz.

A cristologia ariana é condenada pelas Sagradas Escrituras. O relacionamento entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo fundamenta-se na natureza divina que compartilham entre si, e que, em última análise, é explicada em termos na Trindade. “Qualquer que nega o Filho também não tem o Pai; e aquele que confessa o Filho tem também o Pai” (1 Jo 2.23). O reconhecimento apropriado do Filho requer a fé na sua divindade, bem como na sua humanidade. Cristo, como Deus, é suficiente para satisfazer a justiça do Pai; como homem, Ele cumpriu a responsabilidade moral da humanidade diante de Deus. Na obra da Cruz, a justiça e a graça de Deus nos são reveladas. A eterna perfeição de Deus e as imperfeições pecaminosas da humanidade são reconciliadas mediante o Deus-Homem, Jesus Cristo (Gl 3.11-13). A heresia ariana, na sua negação da plena divindade de Cristo, está sem Deus Pai (1 Jo 2.23) e, portanto, sem nenhuma esperança de vida eterna.

A NECESSIDADE TEOLÓGICA-FILOSÓFICA DA TRINDADE

As propriedades (qualidades inerentes) eternas e a perfeição absoluta do Deus Trino e Uno são decisivas para o conceito cristão da soberania de Deus sobre a sua criação. Deus, sendo Trindade, é completo em si mesmo (soberano), e, conseqüentemente, a criação é um ato livre de Deus, e não uma ação necessária de sua existência. Por essa razão, “antes de ‘no princípio’ existia algo diferente de uma situação estática“.

A fé cristã oferece uma revelação clara e compreensível de Deus, proveniente de fora da esfera do tempo, pois Deus, como Trindade, tem desfrutado de eterna comunhão e comunicação entre suas três Pessoas distintas. O conceito de um Deus pessoal e que se comunica, desde toda a eternidade, está arraigado na teologia trinitariana. Deus não existia em silêncio e de forma estática para então, certo dia, optar por romper a tranqüilidade daquele silêncio e falar. Pelo contrário: a comunhão eterna dentro da Trindade é essencial para o conceito da revelação. (A alternativa de um Ser divino solitário que murmura de si para si na sua solidão é um pouco inquietante.) O Deus Trino e Uno tem se revelado à humanidade, dentro da humanidade, de modo pessoal e proposicional.

A personalidade de Deus, como Trindade, também é a fonte e significado da personalidade humana. “Sem semelhante fonte“, observa Francis Schaeffer, “sobra tão-somente para os homens uma personalidade que provém do impessoal (com o acréscimo do tempo e do acaso)“.

Por toda a eternidade, o Pai amava o Filho, o Filho amava o Pai, e o Pai e o Filho amavam o Espírito. “Deus é amor” (1 Jo 4.16). Logo, o amor é um atributo eterno. Por definição, o amor é necessariamente compartilhado com outro, e o amor de Deus é um amor que fez que com Ele doasse a si mesmo. Por isso, o amor eterno dentro da Trindade outorga sentido real ao amor humano (1 Jo 4.17).

Excurso: O Pentecostalismo da Unicidade
No Acampamento de Reavivamento Mundial em Arroyo Seco, perto de Los Ângeles, em 1913, surgiu uma séria controvérsia. Durante um culto de batismo, o evangelista canadense R. E. McAlister argumentou que os apóstolos não invocavam o Nome trino e uno – Pai, Filho e Espírito Santo – no batismo, mas batizavam no nome de Jesus somente.

Durante a noite, John G. Schaeppe, um imigrante de Danzig, Alemanha, teve uma visão, e acordou o acampamento, gritando que o nome de Jesus precisava ser glorificado. A partir de então, Frank J. Ewart começou a ensinar que aqueles que tinham sido batizados segundo a fórmula trinitariana precisavam do novo batismo que invocava somente o nome de Jesus. Logo, outros começaram a espalhar a “nova questão”. Juntamente com isso veio a aceitação de uma só Pessoa na Deidade, agindo em modos ou cargos diferentes. O reavivamento em Arroyo Seco acendera a centelha dessa nova questão.

Em outubro de 1916, o Concílio Geral das Assembléias de Deus foi convocado em St. Louis com o propósito de formar barricadas de defesa para proteger a ortodoxia trinitariana. Os representantes da Unicidade viram-se diante de uma maioria que lhes exigia que aceitassem a fórmula batismal trinitariana e a doutrina ortodoxa de Cristo, ou deixassem a comunhão. Cerca de um quarto dos ministros realmente se retirou. Mas as Assembléias de Deus estabeleceram-se na tradição doutrinária da “fé pregada pelos apóstolos, atestada pelos mártires, substanciada nos Credos, exposta pelos pais“, ao lutar em favor da ortodoxia trinitariana.

Tipicamente, o Pentecostalismo da Unicidade declara: “Não cremos em três personalidades separadas na Deidade, mas cremos em três cargos preenchidos por uma só pessoa“.

A doutrina da Unicidade (modalística) tem, portanto, o conceito de Deus como um só Monarca transcendente, cuja unidade numérica é rompida por três manifestações contínuas feitas à humanidade como Pai, Filho e Espírito Santo. As três faces do único Monarca são realmente imitações divinas de Jesus, a expressão pessoal de Deus mediante à sua encarnação. A idéia da personalidade exige, segundo os Pentecostais da Unicidade, corporalidade e, por essa razão, acusam os trinitarianos de adotar o triteísmo.

Pelo fato de Cristo ser “corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9), os Pentecostais da Unicidade argumentam que Ele é essencialmente a plenitude da Deidade indiferenciada. Noutras palavras: acreditam que a tríplice realidade de Deus é “três manifestações” do único Espírito habitando dentro da Pessoa de Jesus. Acreditam que Jesus é a personalidade única de Deus, cuja “essência é revelada como Pai no Filho e como Espírito através do Filho“. Explicam, ainda, que a pantomia divina de Jesus é “cristocêntrica, porque Jesus, como ser humano, é o Filho, e que como Espírito (na sua divindade). Ele revela – e realmente é o Pai – e envia – e realmente é o Espírito Santo como o Espírito de Cristo que habita no cristão“.

Já argumentamos que o sabelianismo do século III é herético. Na sua negação das distinções eternas entre as três Pessoas na Deidade, o Pentecostalismo da Unicidade acabou caindo no mesmo erro teológico do Modalismo clássico. A diferença, conforme foi declarado antes, é que os Pentecostais da Unicidade concebem a “trimanifestação” de Deus como simultânea em vez de sucessiva – sendo esta última a crença do modalismo clássico. Argumentam que, tendo por base Colossenses 2.9, o conceito da personalidade de Deus é reservado exclusivamente para a presença imanente e encarnada de Jesus. Por isso, os Pentecostais da Unicidade geralmente argumentam que a Deidade está em Jesus, mas que Jesus não está na Deidade.

Colossenses 2.9 afirma porém (conforme a Igreja formulou em Calcedônia em 451), que Jesus é a “plenitude da revelação da natureza de Deus” (theotêtos, divindade) mediante a sua encarnação. A totalidade da essência de Deus está encorporada em Cristo (Ele é plena deidade), embora as três Pessoas não estejam simultaneamente encarnadas em Jesus.

Embora os Pentecostais da Unicidade confessem a divindade de Jesus Cristo, o que eles realmente querem dizer é que Jesus, como o Pai, é deidade, e como o Filho, é humanidade. Ao argumentarem que o termo “Filho” deve ser entendido como a natureza humana de Jesus, e que o termo “Pai” é a designação da natureza divina de Cristo, imitam seus antecessores antitrinitários (há muito tempo falecidos) ao comprometerem as doutrinas da salvação.

É certo que Jesus declarou “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). Mas isso não significa que Jesus e seu Pai sejam uma só Pessoa (conforme argumentam os Pentecostais da Unicidade), pois o numeral grego neutro hen (“um”) é empregado pelo apóstolo João em vez do masculino heis. Logo, a referência é à união essencial, e não à identidade absoluta.

Conforme já foi declarado, a distinção tipo sujeito-objeto entre o Pai e o Filho é revelada com grande clareza nas Escrituras, quando Jesus, na sua agonia, ora ao Pai (Lc 22.42). Jesus também revela e defende a sua identidade ao apelar ao testemunho do Pai (Jo 5.31,32). Jesus declara de modo explícito: “Há outro [gr. allos] que testifica em mim” (v. 32). Aqui, o termo allos denota, mais uma vez, uma pessoa diferente daquela que está falando. Também em João 8.16-18, Jesus diz: “E, se, na verdade, julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque não sou eu só, mas eu e o Pai, que me enviou. E na vossa lei está também escrito que o testemunho de dois homens é verdadeiro. Eu sou o que testifico de mim mesmo, e de mim testifica também o Pai, que me enviou“. Aqui, Jesus cita o Antigo Testamento (Dt 17.6; 19.15) com o propósito de revelar, mais uma vez, a sua identidade messiânica (como sujeito), apelando ao testemunho do seu Pai (como objeto) a respeito do próprio Jesus. Insistir (como fazem os Pentecostais da Unicidade) que o Pai e o Filho são numericamente um só, serviria apenas para desacreditar o testemunho que Jesus deu de si mesmo como Messias.

Além disso, os Pentecostais da Unicidade ensinam que, para a pessoa ser verdadeiramente salva, é preciso que seja batizada “em nome de Jesus” somente. Com isso, dão a entender que os trinitarianos não são cristãos verdadeiros. Nisso, os Pentecostais da Unicidade incorrem no erro de colocar as obras como meio de salvação, contrariando o que a Bíblia diz: a salvação pela graça, mediante a fé somente (Ef 2.8,9). No Novo Testamento, encontramos por volta de 60 referências que falam da salvação pela graça, somente mediante a fé, independentemente do batismo nas águas. Se o batismo foi um meio necessário à nossa salvação, por que o Novo Testamento não enfatiza fortemente tal doutrina? Pelo contrário: vemos Paulo dizendo: “Cristo enviou-me não para batizar, mas para evangelizar; não em sabedoria de palavras, para que a cruz de Cristo não se faça vã” (1 Co 1.17).

Deve ser mencionado, ainda que Atos dos Apóstolos não pretende preceituar uma fórmula batismal para ser utilizada pela Igreja, pois a frase “em nome de Jesus” não ocorre exatamente da mesma maneira duas vezes em Atos.

No sentido de reconciliar o mandamento de Jesus no sentido de batizar “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19), com a declaração de Pedro: “cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo” (At 2.38), consideraremos três explicações possíveis.

1. Pedro desobedeceu ao mandamento claro do seu Senhor. Isso, obviamente, nem é uma explicação, e deve ser rejeitada por ser ridícula.

2. Jesus estava falando em termos ocultos, que exigiriam algum tipo de perspicácia mística antes de ser possível compreender seu sentido. Noutras palavras, Ele realmente estava nos mandando batizar somente em nome de Jesus, embora alguns não percebam esse significado velado de nosso Senhor. Não há, porém, a mínima justificativa para tirar tal conclusão. É contrária ao gênero específico de literatura bíblica envolvida (didádico-histórico) e também, pelo menos por implicação, à impecabilidade de nosso Senhor Jesus Cristo.

3. Uma explicação melhor é fundamentada na autoridade apostólica de Atos, no que diz respeito às credenciais ministeriais dos apóstolos. Quando a frase “em nome de Jesus Cristo” é invocada pelos apóstolos em Atos, significa “com a autoridade de Jesus Cristo” (cf. Mt 28.18). Por exemplo: em Atos 3.6 os apóstolos curam mediante a autoridade do nome de Jesus Cristo. Em Atos 4, os apóstolos são convocados para serem interrogados a respeito das obras poderosas que faziam: “Com que poder ou em nome de quem fizestes isso?” (v. 7). O apóstolo Pedro, cheio do Espírito Santo, adiantou-se e proclamou corajosamente: “Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, aquele a quem vós crucificastes e a quem Deus ressuscitou dos mortos, em nome desse é que este está são diante de vós” (v. 10). Em Atos 16.18, o apóstolo Paulo libertou, “em nome de Jesus Cristo”, uma jovem da possessão demoníaca.

Os apóstolos estavam batizando, curando, libertando e pregando, mediante a autoridade de Jesus Cristo. Conforme escreveu Paulo: “E, quanto fizerdes por palavras ou por obras, fazei tudo em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Cl 3.17). Concluímos, portanto, que a declaração apostólica “em nome de Jesus Cristo” equivale a dizer: “pela autoridade de Jesus Cristo”. Não existe, portanto, nenhum motivo para acreditar que os apóstolos fossem desobedientes ao imperativo do Senhor, que mandou batizar em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28.19), ou que Jesus estava usando linguagem oculta. Pelo contrário: no próprio livro de Atos, os apóstolos batizavam pela autoridade de Jesus Cristo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.

A doutrina da Trindade é o caráter distintivo da revelação que Deus fez de si mesmo nas Sagradas Escrituras. Fiquemos, pois, firmes em nossa confissão de um só Deus, “eternamente existente em si mesmo… como Pai, Filho e Espírito Santo“.

 

Fonte: Teologia Sistemática, CPAD. Santley M. Horton


Gostou do artigo? Comente!
Nome:

E-Mail:

Comentário:



- Nenhum comentário no momento -

Desde 3 de Agosto de 2008