COMENTÁRIOS DE JOÃO CALVINO SOBRE A ESPÍTOLA DE SÃO JUDAS


Categoria: Acervo
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Publicado: 05 de Abril de 2015, Domingo, 18h04

COMENTÁRIO SOBRE JUDAS POR JOÃO CALVINO1

O ARGUMENTO
Embora houvesse uma disputa entre os antigos a respeito desta Epístola, como sua leitura é útil, e como não contém nada de inconsistente com a pureza da doutrina apostólica, tendo sido recebida anteriormente como autêntica por alguns dos mais capazes, eu de boa vontade a acrescento às demais. Além disso, sua brevidade não requer uma explicação prolongada do seu conteúdo; e quase na sua totalidade é praticamente idêntica ao capítulo dois da última Epístola.

Uma vez que homens inescrupulosos haviam se introduzido, sob o nome de cristãos, tendo por objetivo principal levar os fracos e inconstantes a um profano menosprezo a Deus, Judas explica primeiro que os fiéis não deveriam ter sido movidos por agentes desta natureza, pelos quais a Igreja sempre foi assaltada. E, por outro lado, ele os exorta a terem muito cuidado com tais pestes. E para torná-los ainda mais odiosos e detestáveis, denuncia sobre estes a ira iminente de Deus, tal como merecia a sua impiedade. Ora, se considerarmos o que Satanás tem empreendido em nossa época, desde o início do evangelho restaurado, e que artifícios ele ainda emprega ativamente para subverter a fé, e o temor a Deus, o que foi um alerta útil no tempo de Judas é mais do que necessário em nossa época. Mas isto se mostrará mais completamente na medida em que prosseguirmos na leitura da Epístola.

1) Judas, servo de Jesus Cristo. Ele se denomina servo de Cristo, não do modo como o nome se aplica a todos os fiéis, mas com respeito ao seu apostolado. Eram considerados peculiarmente servos de Cristo aqueles a quem fora confiado algum ofício público. E sabemos por que os apóstolos costumavam atribuir a si mesmos este nome honorífico—todo aquele que não é chamado arroga-se presunçosamente o direito e a autoridade de ensinar. Nesse caso, o chamado dos apóstolos era uma evidência para eles de que não se impulsionaram ao seu ofício por vontade própria. Por outro lado, em si não era suficiente que fossem designados para o seu ofício, se não o desempenhassem fielmente. E, sem dúvida, aquele que se declara servo de Deus inclui estas duas coisas, ou seja, que Cristo é o conferidor do ofício que exerce, e que ele realiza fielmente o que lhe foi confiado. Muitos agem falsamente, e falsamente se orgulham do que estão muito distantes de ser— devemos sempre examinar se a realidade corresponde à profissão.

E irmão de Tiago. Ele menciona um nome mais celebrado do que o seu, e mais conhecido das igrejas. Embora a fidelidade da doutrina e a autoridade não dependam dos nomes de homens mortais, é uma confirmação para a fé quando a integridade do homem que assume o ofício de mestre nos é assegurada. Além disso, a autoridade de Tiago não é apresentada aqui como a de uma pessoa particular, e sim porque ele era considerado por toda a Igreja como um dos principais apóstolos de Cristo. Ele era filho de Alfeu, conforme eu disse em outro lugar. Não somente isto, mas esta passagem é para mim prova suficiente contra Eusébio e outros que dizem que este era um discípulo chamado Oblias [Tiago], mencionado por Lucas em At 15:13; 21:18, o qual era mais eminente do que os apóstolos na Igreja.2 Mas não há dúvida de que Judas menciona aqui seu próprio irmão porque este era eminente entre os apóstolos. Nesse caso, é provável que ele fosse aquele a quem fora concedida a honra principal pelo restante, de acordo com o que relata Lucas.

Aos santificados por Deus Pai, ou, aos chamados, santificados, etc.3 Por esta expressão, “chamados”, ele denota todos os fiéis, porque o Senhor os tem separado para si. Mas, como o chamado não é nada mais do que o efeito da eleição eterna, às vezes é empregado em lugar desta. Nesta passagem faz pouca diferença em que sentido o entendes, pois não há dúvida de que ele recomenda a graça de Deus, pela qual lhe aprouve escolhê-los como seu tesouro peculiar. E ele sugere que os homens não se antecipam a Deus, e que eles nunca vêm até ele enquanto ele não os atrai.

Do mesmo modo, ele diz que eles eram: santificados em Deus Pai, o que pode ser traduzido como: “por Deus Pai”. No entanto, retive a forma exata da expressão, para que os leitores exercitem o seu próprio julgamento. Pois talvez o sentido seja este—de que, sendo em si mesmos profanos, eles tinham a sua santidade em Deus. Mas a maneira em que Deus santifica é regenerando-nos pelo seu Espírito.

Outra leitura, que a Vulgata adotou, é um tanto áspera: “Aos amados (ἠγαπηµένοις) em Deus Pai”. Por isso a considero corrupta e, de fato, encontra-se apenas em algumas cópias.

Ele ainda acrescenta que eles eram conservados em Jesus Cristo. Pois estaríamos sempre em perigo de morte por causa de Satanás, que poderia nos apanhar como presa fácil a qualquer momento se não estivéssemos a salvo sob a proteção de Cristo, a quem o Pai concedeu para ser o nosso guardião, para que não pereça nenhum daqueles que ele recebeu sob o seu cuidado e abrigo.

Judas então menciona aqui uma tripla benção, ou favor de Deus, com respeito a todos os fiéis—que pelo seu chamado ele fez deles participantes do evangelho; que ele os regenerou, pelo seu Espírito, para a novidade de vida; e que ele os tem preservado por meio de Cristo, para que não decaiam da salvação.

2) Misericórdia. Misericórdia claramente significa o mesmo que graça nas saudações de Paulo. Se alguem desejar uma distinção refinada, pode-se dizer que graça é propriamente o efeito da misericórdia; pois não há outra razão pela qual Deus nos tenha abraçado em amor, senão porque ele se apiedou das nossas misérias. Amor pode-se entender como o de Deus para com os homens, bem como o dos homens uns para com os outros.4 Se for referido a Deus, o sentido é de que aumentasse para com eles, e que a certeza do amor divino fosse diariamente mais e mais confirmada em seus corações. O outro sentido, porém, de que Deus despertasse e confirmasse neles o amor mútuo, não é apropriado.

3) Procurando com toda a diligência. Traduzi as palavras σπουδὴν ποιούµενος por “tomando cuidado”; literalmente, são: “fazendo diligência”. Mas muitos intérpretes explicam a sentença neste sentido—de que um forte desejo constrangeu Judas a escrever, tal como dizemos acerca daqueles que estão sob a influência de um forte sentimento—que não podem governar ou conter a si mesmos. Nesse caso, de acordo com esses expositores, Judas estava sob uma espécie de necessidade, porque um desejo de escrever não o permitia descansar. Mas prefiro pensar que as duas cláusulas são separadas—que, embora estivesse inclinado e solícito a escrever, uma necessidade o compeliu. Ele sugere então que, de fato, estava contente e ansioso por lhes escrever, mas a necessidade o urgiu a fazer isto—a saber, porque eram assaltados (segundo o que se segue) pelos infiéis, e precisavam estar preparados para combatê-los.5

Então, em primeiro lugar, Judas testifica que sentiu tanta preocupação com a salvação deles, que ele mesmo quis, e de fato estava ansioso, por escrever- lhes; e, em segundo lugar, para despertar a sua atenção, diz que o estado das coisas exigia que ele fizesse isso. Pois a necessidade acrescenta fortes estímulos. Se não tivessem sido avisados com antecedência de quão necessário era a sua exortação, eles poderiam se tornar preguiçosos e negligentes. Mas quando faz este prefácio, de que escreveu por conta da necessidade da situação deles, era o mesmo que se ele tivesse tocado uma trombeta para despertá-los do seu torpor.

Acerca da salvação comum. Algumas cópias acrescentam “vossa”, mas sem razão, penso eu, pois ele torna a salvação comum a eles e a si mesmo. E acrescenta não pouco peso à doutrina que é anunciada, quando alguém fala de acordo com os seus próprios sentimentos e experiência. É vão o que dizemos, se falamos da salvação para outros, quando nós mesmos não temos nenhum conhecimento real dela. Nesse caso, Judas confessava ser ele mesmo um mestre experimental (por assim dizer) quando se associava aos fiéis na participação da mesma salvação.

E exortar-vos. Literalmente: “exortando-vos”. Mas como ele aponta o objetivo do seu conselho, a sentença deveria ser expressa assim. O que traduzi como: “ajudar a fé, batalhando”, significa o mesmo que lutar para reter a fé, e resistir corajosamente aos assaltos contrários de Satanás.6 Ele os faz lembrar que, para perseverarem na fé, diversas pelejas devem ser enfrentadas, e mantida uma guerra constante. Ele diz que a fé foi uma vez dada, para que soubessem que a obtiveram para este fim, para que nunca fracassem ou caiam.

4) Porque se introduziram alguns. Embora Satanás seja sempre um inimigo dos fiéis, e nunca deixe de acossá-los, Judas lembra aqueles a quem estava escrevendo do estado de coisas naquele tempo. Agora Satanás, diz ele, ataca e vos incomoda de uma maneira peculiar. Por isso é necessário pegar em armas para resisti-lo. Por aqui aprendemos que um pastor bom e fiel deveria considerar sabiamente o que o estado atual da Igreja exige, assim acomodando a sua doutrina às necessidades dela.

A palavra παρεισέδυσαν, que ele usa, denota uma insinuação furtiva e indireta, pela qual os ministros de Satanás enganam os incautos. Satanás semeia seu joio de noite, e enquanto os lavradores estão dormindo, a fim de corromper a semente de Deus. Ao mesmo tempo, ele nos ensina que esta é uma guerra interna, pois neste aspecto Satanás também é astuto, na medida em que suscita para causar dano aqueles que são do rebanho, a fim de que possam se introduzir mais facilmente.

Já antes estavam escritos. Ele invoca aquele julgamento, ou condenação, ou mente réproba, pela qual estes foram levados a perverter a doutrina da piedade; pois ninguém pode fazer tal coisa senão para a sua própria ruina. Mas a metáfora é aduzida desta circunstância porque o conselho eterno de Deus, pelo qual os fiéis são ordenados para a salvação, é designado como um livro. E quando os fiéis ouviram que estes estavam entregues à morte eterna, convinha que cuidassem para que não se envolvessem na mesma destruição. Ao mesmo tempo, o objetivo de Judas era elucidar o perigo, para que a novidade da coisa não perturbasse nem angustiasse nenhum deles. Pois se aqueles já estavam desde há muito ordenados, segue-se que a Igreja só é tentada ou testada de acordo com o conselho infalível de Deus.7

A graça de Deus. Ele expressa agora mais claramente qual era o mal, pois diz que eles abusavam da graça de Deus, assim levando a si mesmos e a outros a tomarem uma liberdade impura e profana no pecado. Mas a graça de Deus se manifestou com um propósito muito diferente—ou seja, que, negando a impiedade e os prazeres mundanos, vivamos sobria, justa e piamente neste mundo. Saibamos, então, que nada é mais pestilento do que homens desta sorte, que da graça de Cristo tomam uma capa para se indultarem na lascívia.8

Porque ensinamos que a salvação é obtida pela misericórdia de Deus somente, os papistas nos acusam desse crime. Mas por que deveríamos usar palavras para refutar a afronta deles, visto que em toda parte urgimos o arrependimento, o temor a Deus e a novidade de vida, e visto que eles mesmos não apenas corrompem todo o mundo com os piores exemplos, mas também pelo seu ensinamento iníquo retiram do mundo a verdadeira santidade e a adoração pura a Deus? Entretanto, prefiro pensar que aqueles de quem Judas fala eram como os libertinos de nosso tempo, conforme se tornará mais evidente a partir do que se segue.

Deus, único Senhor, ou, Deus, que é o único Senhor. Algumas cópias antigas trazem: “Cristo, que é o único Deus e Senhor”. E, de fato, na Segunda Epístola de Pedro, somente Cristo é mencionado, e ali ele é chamado de Senhor.9 Mas ele quer dizer que Cristo é negado quando aqueles que foram redimidos por seu sangue tornam-se novamente vassalos do Diabo, e assim invalidam até onde podem esse preço incomparável. Então, para que Cristo nos retenha como seu tesouro peculiar, devemos nos lembrar de que ele morreu e ressuscitou por nós para que pudesse ter domínio sobre a nossa vida e morte.

5) Mas quero lembrar-vos, ou, recordá-los. Ele ou modestamente se desculpa, para que não parecesse ensinar, como que a ignorantes, coisas desconhecidas a eles; ou, de fato (com o que estou mais de acordo), declara abertamente, de um modo enfático, que não aduzia nada novo ou inaudito antes, a fim de que aquilo que ia dizer pudesse ter mais crédito e autoridade. “Apenas torno a chamar à vossa mente”, diz ele, “aquilo que já aprendestes”. Uma vez que lhes atribui conhecimento, ele diz que precisavam de advertências, para que não pensassem que o trabalho que teve com eles fosse supérfluo. Ele usa a palavra de Deus não apenas para ensinar o que não poderíamos ter conhecido de outro modo, mas também para nos despertar para uma séria meditação das coisas que já entendemos, e para não permitirmos que nos tornemos apáticos num conhecimento frio.

Ora, o sentido é que, após termos sido chamados por Deus, não devemos nos gloriar negligentemente na sua graça, e sim, pelo contrário, andar atentamente no seu temor. Pois, se alguém brinca com Deus assim, o menosprezo pela sua graça não ficará impune. E isto ele prova por três exemplos. Primeiro, ele se refere à vingança que Deus executou sobre aqueles incrédulos que ele havia escolhido como seu povo e libertado pelo seu poder. Praticamente a mesma referência é feita por Paulo em 1 Co 10:1-13. O significado do que ele diz é que aqueles que Deus havia honrado com as maiores bençãos, que ele havia exaltado ao mesmo grau de honra de que desfrutamos hoje, puniu depois severamente. Então futilmente se orgulhavam da graça de Deus todos aqueles que não viviam de uma maneira conveniente com o seu chamado.

A palavra povo é empregada por honra em lugar de nação santa e eleita, como se ele tivesse dito que de nada lhes servira que, por um favor singular, tivessem entrado no concerto. Chamando-os de incrédulos, ele denota a fonte de todos os males. Pois todos os pecados deles, mencionados por Moisés, deviam-se a isto—que eles se recusaram a ser governados pela palavra de Deus. Onde existe a sujeição da fé, aí a obediência para com Deus necessariamente se mostra em todos os deveres da vida.

6) E aos anjos. Este é um argumento do maior para o menor. Pois o estado dos anjos é mais elevado que o nosso, e contudo Deus puniu a deserção deles de um modo terrível. Assim sendo, ele não perdoará a nossa perfídia, se nos afastarmos da graça para a qual nos chamou. Este castigo, infligido sobre os habitantes do céu, e sobre ministros de Deus tanto superiores, certamente deveria estar constantemente diante de nossos olhos, para que em momento algum sejamos levados a desprezar a graça de Deus, e assim nos precipitarmos abruptamente à destruição.

A palavra ἀρχὴ nesta passagem pode ser entendida propriamente como princípio, bem como principado ou domínio. Judas sugere que eles sofreram castigo porque haviam desprezado a bondade de Deus e desertado da sua primeira vocação. E aí segue-se imediatamente uma explicação, pois ele diz que eles haviam deixado a sua própria habitação. Como desertores militares, eles deixaram o posto em que haviam sido colocados.

Devemos também notar a atrocidade do castigo que o Apóstolo menciona. Eles não são apenas espíritos livres, mas poderes celestiais. Agora estão presos por cadeias perpétuas. Eles não apenas desfrutavam da luz gloriosa de Deus, mas seu resplendor brilhava neles, de modo que a partir deles, como que em raios, ela se espalhava por todas as partes do universo. Agora estão imersos em trevas. Mas não devemos imaginar um certo lugar em que os demônios estejam encerrados, pois o Apóstolo simplesmente pretendia nos ensinar quão miserável é a condição deles, visto que, no momento em que apostataram, eles perderam a sua dignidade. Para onde quer que sigam, eles arrastam consigo as suas cadeias, e permanecem envoltos em trevas. Entrementes, o castigo extremo deles é deferido até que chegue o grande dia.

7) Assim como Sodoma e Gomorra. Este exemplo é mais geral, pois ele testifica que Deus, não excetuando a nenhum homem, castiga sem nenhuma diferença todos os infiéis. Judas também menciona no que segue que o fogo pelo qual as cinco cidades pereceram era um tipo do fogo eterno. Nesse caso, Deus mostrou naquele tempo um exemplo notável, a fim de manter os homens em temor até o fim do mundo. Por isso é tantas vezes mencionado na Escritura. Mais ainda, sempre que os profetas queriam designar algum juízo memorável e terrível de Deus, eles o retratavam sob a imagem do fogo sulfuroso, e aludiam à destruição de Sodoma e Gomorra. Portanto, não é sem razão que Judas atinge todas as gerações com terror, mostrando a mesma visão.

Quando ele diz: as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, não aplico estas palavras aos israelitas e aos anjos, mas a Sodoma e Gomorra. Não constitui objeção o fato de o pronome τούτοις ser masculino, pois Judas se refere aos habitantes e não aos lugares. Ir após outra carne é o mesmo que entregar-se a desejos monstruosos. Sabemos que os sodomitas, não contentes com a maneira comum de cometer fornicação, contaminavam-se do modo mais imundo e detestável. Devemos observar que ele os entrega ao fogo eterno, pois aqui aprendemos que o espetáculo terrível que Moisés descreve foi apenas uma imagem de um castigo bem mais severo.

8) E, contudo, também estes. Esta comparação não deve ser forçada muito rigorosamente, como se ele comparasse em todas as coisas estes que menciona com os sodomitas, ou com os anjos caídos, ou com o povo incrédulo. Ele apenas explica que eles eram vasos da ira designados para a destruição, e que não poderiam escapar da mão de Deus, mas que num momento ou em outro ele faria deles exemplos da sua vingança. O seu propósito era atemorizar os fiéis para os quais estava escrevendo, para que não se associassem com eles.

Mas aqui ele começa a descrever mais claramente esses impostores. E primeiro diz que eles contaminavam sua carne como que em sonhos—por cujas palavras denota o seu estúpido descaramento, como se tivesse dito que eles se entregavam a todos os tipos de imundície, que os mais perversos abominariam, a menos que o sono retirasse a vergonha, e também a consciência. Nesse caso, este é um modo metafórico de falar, pelo qual ele sugere que eles eram tão grosseiros e estúpidos que se entregavam sem nenhuma vergonha a todo o tipo de infâmia.10

Existe um contraste a ser notado, quando ele diz que eles contaminavam, ou poluíam a carne—ou seja, degradavam o que era menos excelente—e que, no entanto, desprezavam como infame o que é considerado particularmente excelente entre os homens.

Pela segunda cláusula parece que eles eram homens sediciosos, que buscavam a anarquia, a fim de que, estando livres do temor das leis, pudessem pecar mais livremente. Mas estas duas coisas estão quase sempre conectadas—que aqueles que se entregam à iniquidade também querem abolir toda a ordem. Embora, de fato, o objetivo principal deles seja livrar-se de todo o jugo, pelas palavras de Judas parece que eles costumavam falar insolente e injuriosamente dos magistrados, assim como os fanáticos de hoje, que não apenas murmuram porque são impedidos pela autoridade dos magistrados, mas clamam furiosamente contra todo o governo, e dizem que o poder da espada é profano e contrário à piedade. Em suma, eles expulsam arrogantemente da Igreja de Deus todos os reis e todos os magistrados. Dignidades, ou glórias, são ordens ou postos eminentes em poder ou honra.

9) Mas o arcanjo Miguel. Pedro apresenta este argumento de forma mais breve, e declara genericamente que os anjos, muito mais excelentes que os homens, não se atrevem a pronunciar juízo de maldição (2 Pe 2:11).

Mas como se acredita que esta história fosse tirada de um livro apócrifo, por isso tem sido dada menos importância a esta Epístola. Mas, visto que os judeus daquele tempo derivavam muitas coisas das tradições dos pais, não vejo nada de desarrazoado em dizer que Judas se referiu ao que já havia sido transmitido por muitas gerações. Sei que, de fato, muitas puerilidades haviam alcançado o nome de tradição, assim como nos tempos de hoje os papistas relatam como tradições muitas dos desvarios estúpidos dos monges. Mas isto não é motivo para que eles não tivessem alguns fatos históricos não consignados à escrita.

Está fora de controvérsia que Moisés foi sepultado pelo Senhor—ou seja, que o seu sepulcro foi escondido segundo o propósito oculto de Deus. E a razão para esconder o seu sepulcro é evidente a todos—isto é, para que os judeus não apresentassem seu corpo para promover superstição. Então qual o motivo de surpresa quando, tendo o corpo do profeta sido escondido por Deus, Satanás tentasse manifestá-lo; e que os anjos, que sempre estão prontos para servir a Deus, por outro lado o resistissem? E sem dúvida sabemos que Satanás quase em todas as épocas tem se esforçado para transformar os corpos dos santos de Deus em ídolos para os homens insensatos. Portanto, esta Epístola não deveria ser suspeita por conta deste testemunho, ainda que não encontrado na Escritura.

Que Miguel seja apresentado sozinho como disputando contra Satanás não é novidade. Sabemos que miríades de anjos estão sempre prontos a prestar serviço a Deus. Mas ele escolhe este ou aquele para fazer seu negócio conforme lhe agrada. O que Judas relata como tendo sido dito por Miguel, encontra-se também no livro de Zacarias: “O Senhor te repreenda (ou, impeça), Satanás” (Zc 3:2). E é uma comparação, como dizem, entre o maior e o menor. Miguel não se atreveu a falar mais severamente contra Satanás (ainda que um réprobo e condenado) do que entregá-lo a Deus para que fosse refreado. Mas aqueles homens não hesitavam em carregar de censuras extremas os poderes que Deus havia adornado com honras peculiares.

10) Estes, porém, dizem mal do que não sabem. Ele quer dizer que eles não tinham nenhuma inclinação por qualquer coisa que não fosse grosseira, e como que bestial, e por isso não percebiam o que era digno de honra. E, contudo, à loucura acrescentavam audácia, de modo que não temiam condenar coisas acima da sua compreensão. E eles também laboravam sob outro mal, pois, quando eram levados como animais às coisas que gratificavam os sentidos do corpo, não observavam nenhuma moderação, mas se fartavam excessivamente, como porcos que rolam na lama fétida. O advérbio naturalmente está em oposição à razão e ao juízo, pois somente o instinto da natureza controla os animais irracionais, mas a razão deveria governar os homens e refrear os seus apetites.

11) Ai deles. É de se questionar por que ele os censura tão severamente, quando acabara de dizer que não fora permitido a um anjo pronunciar acusação injuriosa contra Satanás. Mas não era o seu propósito estabelecer uma regra geral. Ele apenas explicou brevemente, pelo exemplo de Miguel, quão intolerável era a loucura deles quando censuravam insolentemente o que Deus honrou. Sem dúvida era lícito a Miguel fulminar Satanás com a sua maldição final. E sabemos quão veementemente os profetas ameaçavam os ímpios. Mas, quando Miguel absteve-se da severidade extrema (de outro modo legítima), que loucura seria não observar moderação para com aqueles que se sobressaem em glória? Mas quando pronunciou maldição sobre eles, ele não imprecou tanto o mal sobre eles, mas antes lembrou-os o tipo de final que os aguardava. E fez isto para que não levassem outros consigo à perdição.

Ele diz que aqueles eram imitadores de Caim, o qual, sendo ingrato a Deus e pervertendo a sua adoração por um coração ímpio e mau, perdeu o seu direito de primogenitura. Ele diz que estavam enganados pela recompensa como Balaão, porque adulteravam a doutrina da verdadeira religião por lucro imundo. Mas a metáfora que ele usa expressa algo mais, pois diz que eles transbordavam, ou seja, porque o seu excesso era como água transbordante. Ele diz, em terceiro lugar, que eles imitavam a contradição de Coré, porque perturbavam a ordem e tranquilidade da igreja.

12) Estes são manchas em vossas festas de caridade. Aqueles que lêem: “entre vossas caridades”, conforme penso, não explicam suficientemente o verdadeiro significado. Pois ele chama de caridades (ἀγάπαις) aquelas festas que os fiéis tinham entre si para testemunhar sua unidade fraternal. Tais festas, diz ele, eram desonradas por homens impuros, que depois se alimentavam em excesso—pois nelas havia a maior frugalidade e moderação. Então não era correto que fossem admitidos esses devoradores, que depois se indultavam em excesso em outro lugar.

Algumas cópias trazem: “Banqueteando-se convosco”—leitura que, se aprovada, tem este significado, de que eles não apenas eram uma desgraça, mas também eram incômodos e dispendiosos, uma vez que se empanturravam sem temor, às custas públicas da igreja. Pedro fala de modo um pouco diferente (2 Pe 2:13), dizendo que eles se deleitavam em erros, e banqueteavam-se com os fiéis—como se tivesse dito que agiam inconsideradamente aqueles que alimentavam tão perniciosas serpentes, e que eram extremamente insensatos aqueles que encorajavam o luxo excessivo deles. Hoje em dia eu gostaria que houvesse mais juízo em alguns homens bons que, procurando ser extremamente gentis com homens maus, causam grande dano a toda a igreja.

São nuvens sem água. As duas comparações presentes em Pedro são fornecidas aqui numa só, mas com o mesmo propósito, pois ambas condenam a vã ostentação. Estes homens inescrupulosos, embora prometessem muito, interiormente eram estéreis e vazios, tal como nuvens levadas por ventos tempestuosos, as quais dão esperança de chuva, mas logo se desfazem em nada. Pedro acrescenta a comparação de uma fonte seca e vazia, mas Judas emprega outras metáforas com o mesmo fim—que eles eram árvores murchas, assim como o vigor das árvores desaparece no outono. Ele os chama depois de árvores infrutíferas, desarraigadas, duas vezes mortas, como se tivesse dito que não havia seiva no interior,11 mesmo que aparecessem folhas.

13) Ondas impetuosas do mar. Por que isto foi acrescentado, podemos saber mais perfeitamente a partir das palavras de Pedro (2 Pe 2:17, 18)—era para mostrar que, estando inchados de orgulho, eles exalavam, ou antes expeliam a escuma de superfluidade de palavras em estilo grandiloquente. Ao mesmo tempo não traziam nada de espiritual, seu objetivo sendo, pelo contrário, tornar os homens tão estúpidos como animais irracionais. Tais são, conforme se disse antes, os fanáticos de nosso tempo, que se chamam a si mesmos de libertinos. Podes dizer justamente que eles fazem apenas sons retumbantes, pois, desprezando a linguagem comum, formam para si um não sei que idioma exótico. Eles parecem a um momento levar seus discípulos acima do céu, então repentinamente caem em erros bestiais, pois concebem um estado de inocência no qual não há diferença entre a vileza e a honestidade. Eles concebem uma vida espiritual, quando o temor é extinto, e quando todos se indultam negligentemente. Eles imaginam que nos tornamos deuses, porque Deus absorve os espíritos quando deixam seus corpos. Com o máximo cuidado e reverência a simplicidade da Escritura deveria ser estudada, para que, raciocinando mais refinadamente do que é justo, ao invés de levarmos os homens para o céu, não sejamos, pelo contrário, envolvidos em múltiplos labirintos. Por isso ele os chama de estrelas errantes, porque deslumbravam os olhos com um tipo de luz evanescente.

14) E também Enoque. Prefiro pensar que esta profecia não estava escrita, ao invés de ter sido tirada de um livro apócrifo. Ela pode ter sido transmitida de memória pelos antigos à posteridade.12 Se alguém questionar: Visto que sentenças semelhantes ocorrem em muitas passagens da Escritura, por que ele não citou um testemunho escrito por um dos profetas? A resposta é óbvia: Ele queria repetir desde a mais remota antiguidade o que o Espírito havia pronunciado a respeito deles. E isto é o que as palavras sugerem, pois diz expressamente que este era o sétimo depois de Adão, a fim de recomendar a antiguidade da profecia, porque ela existia no mundo antes do dilúvio.

Mas eu disse que esta profecia era conhecida dos judeus por relato. Mas se alguém pensa de outro modo, não contenderei com ele, e, na verdade, nem a respeito da própria epístola—se é de Judas ou de algum outro. Em coisas duvidosas, apenas sigo o que parece provável.

Eis que vem, ou é vindo, o Senhor. O tempo passado, segundo o modo dos profetas, é usado em lugar do futuro. Ele diz que o Senhor viria com milhares de seus santos.13 E por santos ele se refere aos fiéis, bem como aos anjos— pois ambos adornarão o tribunal de Cristo, quando ele descer para julgar o mundo. Ele diz milhares, como também Daniel menciona miríades de anjos (Dn 7:10), a fim de que a multidão dos ímpios não sobrepuje, como um mar bravio, os filhos de Deus, mas para que pensem nisto—que o Senhor um dia reunirá o seu povo, parte do qual está habitando no céu, invisível a nós, e parte está oculta sob uma grande quantidade de moinha.

Mas a vingança suspensa sobre os ímpios deveria manter os eleitos em temor e vigilância. Ele fala de obras palavras, porque seus corruptores cometeram muito mal, não somente pela sua vida ímpia, mas também pela sua linguagem falsa e impura. E as suas palavras foram duras, por conta da audácia obstinada, pela qual, sendo orgulhosos, agiram insolentemente.14

16) Estes são murmuradores. Aqueles que favorecem seus prazeres depravados são difíceis de agradar, e morosos, de modo que nunca estão satisfeitos. Donde sempre murmurarem e se queixarem, por mais gentilmente que os homens bons os tratem.15 Ele condena a sua linguagem orgulhosa, porque se gabavam altivamente. Mas ao mesmo tempo mostra que eles eram desprezíveis em sua disposição, pois eram servilmente submissos por causa do ganho. E, geralmente, este tipo de inconsistência é visto em homens inescrupulosos desta natureza. Quando não há ninguém para conter a insolência deles, ou quando não há nada que permaneça em seu caminho, o orgulho deles é intolerável, de modo que eles arrogam imperiosamente tudo para si. Mas lisonjeiam abjetamente aqueles a quem temem, e de quem esperam alguma vantagem. Ele emprega pessoas como significando eterna grandeza e poder.

17) Mas vós, amados. A uma profecia mui antiga ele acrescenta agora as admoestações dos apóstolos, cuja memória era recente. Quanto ao verbo µνήσθητε, não faz grande diferença se o lês como declarativo ou como uma exortação, pois o sentido permanece o mesmo—de que, sendo fortalecidos pela predição que ele cita, eles devem se atemorizar.

Por últimos tempos ele se refere àqueles em que a condição renovada da Igreja recebeu uma forma fixa até o fim do mundo. E isto teve início na primeira vinda de Cristo.

De acordo com o modo usual da Escritura, ele chama de escarnecedores aqueles que, estando inebriados por um perverso e profano desprezo por Deus, precipitam-se impetuosamente num desprezo brutal pelo Ser Divino, de modo que nenhum temor ou reverência os mantém mais dentro dos limites do dever. Assim como em seus corações não há nenhum temor de um juízo futuro, assim também não há nenhuma esperança de vida eterna. Do mesmo modo o mundo hoje está cheio de epicuristas desprezadores de Deus, os quais, tendo lançado fora todo o temor, escarnecem loucamente de toda a doutrina da verdadeira religião, considerando-a como fabulosa.

19) Estes são os que causam divisões. Algumas cópias gregas trazem o particípio sozinho, outras cópias acrescentam ἑαυτοὺς, “a si mesmos”. Mas o sentido é praticamente o mesmo. Ele quer dizer que eles se separavam da Igreja porque não queriam suportar o jugo da disciplina, uma vez que aqueles que gratificam a carne têm aversão à vida espiritual.16 A palavra sensual, ou animal, opõe-se a espiritual, ou à renovação da graça; e aqui ela se refere a viciosos ou corruptos, tais como são os homens quando não regenerados. Nessa natureza degenerada que derivamos de Adão, não há nada além do que é grosseiro e terreno, de modo que nenhuma parte de nós aspira a Deus, enquanto não somos renovados pelo seu Espírito.

20) Mas vós, amados. Ele explica o modo como poderiam vencer todos os artifícios de Satanás—a saber, tendo o amor unido à fé, e ficando de guarda como que em sua torre de vigia, até a vinda de Cristo. Mas como usa muitas vezes e densamente as suas metáforas, ele apresenta aqui um modo de falar peculiar a si, que deve ser brevemente comentado.

Ele os manda primeiro se edificarem a si mesmos sobre a fé, significando por isto que o fundamento da fé deveria ser mantido, mas que a primeira instrução não é suficiente, a não ser que aqueles que já foram estabelecidos na verdadeira fé prossigam continuamente em direção à perfeição. Ele chama a fé deles de santíssima, a fim de que repousassem totalmente nela, e para que, apoiando-se da sua firmeza, nunca vacilassem.

Mas, visto que toda a perfeição do homem consiste na fé, pode parecer estranho que ele os mande construir outro edifício—como se a fé fosse apenas um começo para o homem. Esta dificuldade é removida pelo Apóstolo nas palavras que seguem, quando ele acrescenta que os homens edificam sobre a fé quando é acrescentado o amor. Exceto, talvez, que alguém prefira considerar este sentido—de que os homens edificam sobre a fé enquanto fazem proficiência nela. E, sem dúvida, o progresso diário da fé é tal que ela mesma se ergue como um edifício.17 Assim o Apóstolo nos ensina que, para crescermos na fé, precisamos ser instantes em oração e manter o nosso chamado pelo amor.

Orando no Espírito Santo. O modo de perseverar é quando somos investidos do poder de Deus. Por isso, sempre que a questão for a respeito da constância da fé, devemos fugir para a oração. E, como geralmente oramos de uma maneira formal, ele acrescenta: no Espírito—como se tivesse dito que tal é a nossa indolência, e que tal é a frieza da nossa carne, que ninguém pode orar corretamente a não ser que seja despertado pelo Espírito de Deus; e que também somos tão inclinados à desconfiança e ao estremecimento que ninguém se atreve a chamar Deus de Pai, exceto através do ensino do mesmo Espírito. Pois dele é a solicitude, dele é o fervor e a veemência, dele é a vivacidade, dele é a confiança em obter o que pedimos—em suma, dele são aqueles gemidos inexprimíveis mencionados por Paulo (Rm 8:26). Sendo assim, não é sem razão que Judas nos ensina que ninguém possa orar como deveria sem ter o Espírito como seu guia.

21) Conservai-vos a vós mesmos no amor de Deus. Ele fez do amor como que o guardião e o governante da nossa vida. Não que pudesse colocá-lo em oposição à graça de Deus, mas que é o caminho correto do nosso chamado quando fazemos progresso no amor. Mas, como muitas coisas nos instigam à apostasia, de modo que é difícil nos mantermos fiéis a Deus até o fim, ele chama a atenção dos fiéis para o último dia. Pois somente esta esperança deve nos suster, para que não nos desanimemos em momento algum. De outro modo, necessariamente cairíamos a todo instante.

Mas deve-se notar que ele não quer que esperemos a vida eterna, exceto através da misericórdia de Cristo, pois ele será de tal modo o nosso juíz, que não terá nenhuma outra regra para nos julgar além daquele benefício gratuito da redenção obtida por ele mesmo.

22) E apiedai-vos de alguns. Ele acrescenta outra exortação, explicando como os fiéis deveriam agir ao reprovar os irmãos a fim de restaurá-los ao Senhor. Ele os lembra de que os tais deveriam ser tratados de diferentes maneiras, cada um de acordo com a sua disposição. Com os mansos e ensináveis devemos usar de bondade; mas outros, que são duros e perversos, devem ser subjugados pelo terror.18 Este é o discernimento que ele menciona.

O particípio διακρινόµενοι, não sei por quê, é traduzido num sentido passivo por Erasmo. De fato, pode ser traduzido de ambos os modos, mas o seu sentido ativo é mais adequado para o contexto. O sentido então é de que, se desejamos ter em consideração o bem-estar daqueles que se desviam, devemos considerar o caráter e a disposição de cada um, de modo que aqueles que são mansos e tratáveis sejam restaurados ao caminho reto de um modo gentil, como sendo objetos de piedade. Mas, se algum for perverso, deve ser corrigido com mais severidade. E, como a aspereza é por pouco detestável, ele a desculpa com base na necessidade, pois, de outro modo, aqueles que não seguem bons conselhos prontamente não podem ser salvos.

Além disso, ele emprega uma metáfora surpreendente. Quando há perigo de fogo, não hesitamos em arrebatar violentamente aqueles que desejamos salvar, pois não seria suficiente apontar com o dedo, ou estender gentilmente a mão. Assim também deveria ser tratada a salvação de alguns, porque eles só virão a Deus se puxados rudemente. Muito diferente é a tradução antiga, cuja leitura, no entanto, é encontrada em muitas cópias gregas. A Vulgata traz: “Repreendei os julgados” (Arguite dijudicatos). Mas o primeiro sentido é mais adequado, e penso que está de acordo com a leitura antiga e genuína. A palavra salvar é transferida para os homens, não porque sejam os autores, mas os ministros da salvação.

23) Odiando até a túnica. Esta passagem, que de outro modo pareceria obscura, não terá nenhuma dificuldade quando a metáfora for corretamente explicada. Ele queria que os fiéis não apenas se guardassem do contato com os vícios, mas, para que nenhum contágio os alcançasse, ele os lembra de que tudo o que faz limite com os vícios e está próximo deles deve ser evitado. Assim como, quando falamos da lascívia, dizemos que todos os incitamentos aos prazeres deveriam ser removidos. A passagem também se tornará mais clara quando toda a sentença estiver completa—isto é, que devemos odiar não apenas a carne, mas também a túnica, que, pelo contato com aquela, é infectada. A partícula καὶ até serve para dar maior ênfase. Assim sendo, ele não admite que o mal seja nutrido através da indulgência, de modo que manda que todos os preparativos e todos os acessórios, como dizem, sejam cortados.

24) Ora, àquele que é poderoso para vos guardar. Ele encerra a Epístola com oração a Deus, com o que mostra que nossas exortações e esforços nada podem fazer exceto através do poder de Deus acompanhando-os.19

Algumas cópias trazem “os” ao invés de “vos”. Se recebermos esta leitura, o sentido será: “De fato, é o vosso dever esforçardes por salvá-los; mas somente Deus é quem pode fazer isto”. Contudo, a outra leitura é a que eu prefiro, na qual há uma alusão ao verso precedente. Pois, após ter exortado os fiéis a salvarem o que estava perecendo, para que entendessem que todos os seus esforços seriam vãos a não ser que Deus operasse por meio deles, ele testifica que aqueles não poderiam ser salvos de outro modo senão através do poder de Deus. Nesta última cláusula na verdade existe um verbo diferente, φυλάξαι, que significa guardar. Assim a alusão é a uma cláusula mais remota, quando ele disse: Guardai-vos.

FIM DA EPÍSTOLA DE JUDAS

NOTAS
1 Tradução para o português: Rodrigo Reis de Faria (rodrigoreisdefaria@gmail.com). Fonte: Calvin’s Commentaries (traduzido para o inglês por John King, disponível no site: sacred-texts.org).

2 Alguns têm afirmado que Tiago, mencionado nas passagens há pouco citadas de Atos, não era o apóstolo Tiago, mas outro Tiago—um discípulo, e um dos setenta, que também era chamado Oblias. Mas isto não é certo. Ed.

3 Beza traduz as palavras assim: “Aos chamados, santificados por Deus Pai, e preservados por Jesus Cristo”—ou seja, aos efetivamente chamados (tal como a palavra geralmente significa), reservados e separados por Deus do mundo ímpio, e guardados por Cristo, tendo sido confiados ao seu cuidado e proteção. Ed.

4 Assim como a misericórdia é a de Deus, também é mais consistente considerar “paz” e “amor” como sendo os de Deus: “que a misericórdia” de Deus, “e a paz” de Deus, “e o amor” de Deus, “sejam aumentados (ou multiplicados) a vós”. Ed.

5 Nesse caso a tradução seria: “Amados, tomando todo o cuidado para escrever-vos acerca da salvação comum, considerei (ou achei) necessário escrever-vos para exortar-vos a batalhar pela fé uma vez entregue aos santos”. Macknight e alguns outros dão outro sentido para a primeira cláusula—um sentido mais literal: “Amados, apressando-me em escrever-vos, concernente à salvação comum, julguei necessário”, etc. A essa pressa o apóstolo dá uma razão no verso seguinte: “Pois se introduziram alguns homens”, etc. Este é o sentido mais óbvio da passagem. Ed.

6 O sentido do verbo é combater, lutar, brigar ou contender. É uma palavra derivada dos jogos, e expressa um esforço intenso. Nossa versão transmite bem o seu significado: “batalhar pela fé”. Ou, as palavras podem ser traduzidas como: “combatei vigorosamente pela fé”—não com a espada, diz Beza, mas com a sã doutrina e o exemplo de uma vida santa. Ed.

7 As palavras literalmente são: “Que foram há muito (ou, em algum momento no passado) prescritos para (ou, quanto) a este julgamento”. A referência é à profecia—tais intrusos com o propósito de corromper a verdade haviam sido preditos, e esta intrusão com tal propósito era um julgamento para entregá-los aos enganos de Satanás. A palavra πάλαι refere-se indefinidamente ao que é passado, ou de há muito tempo, ou a algum momento no passado. Vede Mt 11:21 e Mc 15:44. A referência pode ser a profecias antigas ou às de nosso Salvador e seus Apóstolos. Ed.

8 A “graça de Deus” aqui é evidentemente o evangelho. Eles transformavam, diz Grotiuso evangelho numa doutrina libidinosa. Ed.

9 Griesbach exclui Θεὸν, “Deus”, do texto. Nesse caso, a passagem corresponderia em sentido a 2 Pe 2:1—literalmente: “negando o único soberano e Senhor nosso, Jesus Cristo”. A palavra δεσπότην, soberano, ou mestre, é usada por Judas assim como por Pedro. Não era a graça, mas o poder governante de Cristo que era negado. Eles se gloriavam da sua graça, mas não se submetiam a ele como rei. Por isso é usada a palavra δεσπότην—alguém que exerce poder absoluto. Podemos traduzir as palavras como: “negando nosso único soberano e Senhor, Jesus Cristo”. Ed.

10 Os “sonhos” estão conectados às três coisas que seguem: a contaminação da carne, o desprezo pelo governo e a difamação das dignidades. Por isso não é de modo nenhum correta a idéia transmitida pela nossa versão, na qual é introduzida imundície. Parece ser feita alusão às pretensões de falsos profetas em tempos passados (vede Jr 23:25-27). Os falsos profetas ensinavam o que pretendiam receber em sonhos, uma vez que sonhos, bem como visões, eram concedidas a profetas verdadeiros (vede Jl 2:28). Não é improvável que os que são referidos aqui pretendessem ter recebido o que ensinavam através de sonhos sobrenaturais, pois, de outro modo, como poderiam enganar os outros, especialmente concernente a erros tão grosseiros e palpáveis tais como os mencionados aqui? O verso oito está, quanto à sua construção, conectado ao sete. ὡς e ὁµοίως são termos correspondentes. “Como Sodoma e Gomorra, etc., são postas por exemplo, do mesmo modo como também estes seriam”. Este é o sentido da passagem: 8. “Do mesmo modo, de fato, serão estes sonhadores—ou seja, um exemplo de vingança divina—os quais poluem a carne, desprezam a dominação, e injuriam as dignidades”. Pedro os ameaçou com “repentina destruição” (2 Pe 2:1). Aqui são mencionadas três coisas que se aplicam aos três casos anteriormente aduzidos: como os sodomitas, eles contaminavam a carne; como os anjos caídos, eles desprezavam a dominação; e como os israelitas no deserto, eles insultavam as dignidades—pois foi especialmente por se oporem ao poder dado a Moisés que os israelitas manifestaram a sua incredulidade. Ed.

11 “Duas vezes mortas” é considerada por alguns uma expressão proverbial significando aquilo que está completamente morto. Ou, de acordo com Macknight, significa que eles estavam mortos quando professavam o Judaísmo, e mortos após terem feito profissão do evangelho. Ed.

12 Esta é a opinião mais comum. Não há evidência de que tal livro fosse conhecido em algum momento após esta epístola ser escrita. E o livro assim chamado provavelmente era uma falsificação, ocasionada por esta referência à profecia de Enoque. Vede o Prefácio de Macknight a esta Epístola. Até recentemente, considerava-se perdido; mas, em 1821, o falecido arcebispo Laurence, tendo encontrado uma versão etíope, publicou-a com uma tradução. Ed.

13 Literalmente: “com suas santas miríades”. Ed.

14 Parece haver uma falta de ordem no verso 15. A execução do juízo é mencionada primeiro, e depois a condenação dos ímpios. Mas é uma ordem que corresponde exatamente a inúmeras passagens da Escritura: a ação final primeiro, e depois o que tende em direção a ela. Ed.

15 Podemos traduzir as palavras como: “murmuradores e críticos”, ou seja, conforme significa a palavra, na sua própria sorte: eles rosnavam e murmuravam contra os outros, e estavam descontentes com a sua própria condição. E no entanto andavam de tal modo (ou seja, indultando seus prazeres) que tornava pior a sua sorte e ocasionava ainda mais murmuração. Ed.

16 Esta é a interpretação comum, e no entanto parece inconsistente com o que se diz antes acerca destes homens—que eles se insinuavam furtivamente, e se “banqueteavam” com os membros da Igreja. ἑαυτοὺς, embora mantido por Griesbach, é excluído por Wetstein e outros, estando ausente da maioria dos outros manuscritos. O verbo ἀποδιορίζω significa separar duas porções por meio de uma divisa, e, por conseguinte, metaforicamente separar ou causar divisões: “Estes são os que causam divisões”. Eles estavam fazendo a mesma coisa que aqueles mencionados por Paulo em Rm 16:17. Eles estavam produzindo discórdias na Igreja, e não separações dela. E, continuando nela, eles se tornavam “manchas e máculas” para os seus membros. Ed.

17 É melhor entender “fé” aqui metonimicamente, no sentido da palavra ou doutrina da fé—o evangelho; e o sentido seria mais evidente se traduzíssemos ἑαυτοὺς por “uns aos outros”, tal como significa em 1 Ts 5:13: “20. Mas vós, amados, edificando-vos uns aos outros sobre a vossa santíssima fé (sobre a santíssima doutrina em que credes), orando pelo 21. Espírito Santo, conservai-vos a vós mesmos no amor a Deus, esperando a misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo para a vida eterna. E, de fato, tende compaixão de alguns, discernindo; mas a outros salvai com temor”, etc. Toda a passagem soaria melhor assim, quando o dever de uns para com os outros é especificamente assinalado. Ed.

18 Embora a maioria concorde que por “temor” seja indicado aqui o terror, ou seja, que as pessoas referidas devem ser aterrorizadas pelo juízo que as aguarda; o que segue parece favorável a outra visão—de que temor significa a preocupação e o cuidado com o qual elas deveriam ser tratadas. Pois o ato de salvá-las é comparado ao de um homem arrebatando alguma coisa do fogo—o que, ao fazer, deve ser cuidadoso para que ele mesmo não se queime. E, a seguir, a outra comparação, de um homem evitando uma veste infectada para não se contaminar, favorece a mesma visão. Por isso nossa versão parece estar correta—“com temor”. Ed.

19 A doxologia é como segue: “Ao único Deus sábio (ou, somente ao Deus sábio) nosso Salvador, seja glória e grandeza, poder e domínio, agora e por todos os séculos.” “Domínio” (ἐξουσία) é o direito de governar, autoridade ou poder imperial; “poder” (κράτος) é força para efetuar o seu propósito, onipotência; “grandeza” (µεγαλωσύνη) compreende conhecimento, sabedoria, santidade e tudo o que constitui o que é realmente grande e magnificente; e “glória” (δόξα) é o resultado de todas estas coisas que pertencem a Deus—tudo termina na sua glória. O resultado final é mencionado primeiro, depois as coisas que levam a ele. É reconhecendo o seu poder soberano, a sua capacidade de exercer esse poder—sua onipotência, e sua grandeza em tudo o que constitui a grandeza—que lhe damos a glória, a honra e o louvor devidos ao seu nome. Ed.


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